Defensores da Terra no Brasil: “A soja que a Europa importa está manchada de sangue”

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Alejandro Tena

Público, 05-05-2022

O desmatamento sobre a Amazônia e as florestas do Brasil não para. A derrubada de árvores no chamado pulmão do planeta atingiu recordes em 2021, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), e a perda sofrida por esse ecossistema subiu 62% em relação ao ano passado.


Essa curva catastrófica de destruição ambiental está diretamente relacionada à chegada de Jair Bolsonaro ao Governo, mas também aos ciclos de consumo da Europa, continente que demanda cada vez mais recursos e matérias-primas que, como a soja, contribuem para a perda de áreas naturais no Sul Global.

Nesta semana, uma delegação de indígenas afetados pelo desmatamento e de membros da sociedade civil brasileira desembarcaram na Espanha, justamente para denunciar a fatalidade da extração ilegal de madeira e para exigir compromisso dos dirigentes europeus.

“A soja que a Europa está importando do Brasil está manchada de sangue”, disse Valéria Pereira Santos, representante da Comissão Pastoral da Terra e integrante da Coordenação Executiva da Campanha Nacional em Defesa do Cerrado, território brasileiro onde se concentra a maior produção de soja para a fabricação, em sua maioria, de ração animal.

“As comunidades estão sendo expulsas e o Governo consente. Nos últimos anos, houve uma flexibilização das leis ambientais que favoreceu a que, quando todos os países se protegiam da pandemia, o Brasil potencializasse o . Em 2020, a maioria dos setores do país estava em crise, mas essas empresas continuavam crescendo e lucrando”, disse.

A busca de lucros à custa dos recursos naturais do país também deixa uma escalada de violência contra as comunidades tradicionais e povos indígenasJabson Nagelo da Silva, indígena Macuxi do território Serra da Moça, destaca que a perseguição vem de empresas, de “pistoleiros” contratados como matadores para silenciar as vozes críticas, mas também de parte dos poderes públicos que legitimam esses comportamentos e apoiam as grandes companhias que operam nos territórios.

Bolsonaro cumpriu o que prometeu quando chegou ao poder: não proteger, nem demarcar sequer uma única terra indígena”, denuncia, para lembrar que as instituições responsáveis por garantir os direitos das comunidades foram desmanteladas desde que a extrema direita chegou ao poder.

A crueldade se reflete no território em forma de ameaças às lideranças locais, mas também se estende ao restante da população que vê seu modo de vida desaparecer pouco a pouco. “Em volta das demarcações não há nada, tudo já está desmatado e sem recursos. Além disso, há uma grande preocupação com o uso de agrotóxicos nas plantações de soja. São mais de 500 fertilizantes e agrotóxicos que contaminam as águas utilizadas para irrigar e para o consumo”, detalha o indígena.

Uma violência empresarial que emana do Estado

Na delegação que chegou a Madri na quarta-feira, está André Campos, jornalista especializado em investigar os danos sociais e ambientais por trás das cadeias de abastecimento e integrante de Repórter Brasil. “Trabalho há 15 anos com direitos humanos e questões ambientais e nunca foi tão difícil exercer minha profissão como agora”, comenta.

Informar ou buscar questionar o setor de soja e das novas agroindústrias que chegam ao país latino-americano é um ato de risco. Os pistoleiros não buscam silenciar apenas os dirigentes locais que levantam a voz, mas também aqueles que tentam lançar luz com suas câmeras e suas reportagens.

“Há pouco, um companheiro da minha organização foi preso em Matopiba por gravar plantações de soja. A segurança privada o deteve e tentou apreender as gravações e tudo o que ele tinha. Mas não foram só os pistoleiros das empresas, também receberam a ajuda do Polícia que atendeu a sua chamada”, denúncia.

As Forças do Estado estão envolvidas nesse processo, mas algumas vezes isso nem é necessário. “Há um clima de impunidade gerado pelo próprio Governo, que apontando publicamente para ativistas e jornalistas, permite que os outros atores sociais se sintam empoderados para exercer a violência”, alerta.

“A violência é tanto privada como pública”, acrescenta Pereira. “Na verdade, quando a violência é privada, sempre há um componente público. Bolsonaro está apoiando com seu discurso e financiando as grandes corporações que desmatam e perseguem os líderes territoriais. Está armando os grandes latifundiários e, além disso, recentemente, a Polícia Militar criou um grupo chamado Patrulha Rural que, em vez de velar pelas pessoas, encarrega-se de proteger os grandes produtores”, denuncia a representante da Comissão Pastoral da Terra. “As portas estão abertas para que a violência possa circular livremente”.

A Europa vira o rosto

Grande parte da destruição ambiental gerada nos ecossistemas brasileiros da Amazônia ou do Cerrado está diretamente ligada às importações que a Europa faz do Brasil. Tanto que uma recente investigação publicada pelo grupo de jornalistas Carro de Combate mostrou como as empresas espanholas da carne estão engordando seus porcos com rações fabricadas com matérias-primas ligadas ao desmatamento ilegal. O relatório citou algumas multinacionais, como Cargill e Bunge, que atuam no velho continente e certificam seus produtos com critérios de sustentabilidade.

“Existe uma relação direta entre a violência que é desencadeada no Brasil e o padrão de consumo da Europa, que não para de aumentar”, manifesta Pereira. “Não é possível propor soluções sem pensar ou envolver a União Europeia”, alerta a defensora da Terra.

Campos, por sua vez, lembra que as próprias normas e políticas ambientais de Bruxelas contra a crise climática estão incentivando o desmatamento em massa no Brasil e em outras partes do mundo. “A aposta está na busca de combustíveis alternativos ao petróleo e que sejam renováveis. Aqui, entram os biocombustíveis que são fabricados a partir da soja cultivada nas terras que são devastadas. Como você combate as mudanças climáticas, se está incentivando uma cadeia de abastecimento diretamente ligada ao desmatamento?”, questiona. “Aqui, na Espanha, existem usinas de biocombustíveis que importam matérias-primas manchadas por essas práticas”.