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Allan de Abreu e Luiz Fernando Toledo
Edição 185, janeiro 2022
Um caso exemplar de contrabando de madeira amazônica para os Estados Unidos – e o papel de Ricardo Salles
Colado na porta de um dos escritórios da loja localizada no bairro do Bronx, no norte da ilha de Manhattan, em Nova York, o adesivo anuncia: “I love wood”. Ali, todos parecem gostar de madeira. A loja vende o material a preço de ouro e tem preferência pela Tabebuia serratifolia, nome científico do ipê amarelo, estrela do mercado por sua dureza, sua resistência e pelo traço suave de seus veios. Na tarde de 12 de novembro passado, nos fundos da loja, empilhados em prateleiras, havia enormes deckings de ipê, como é chamado o corte que resulta em pranchas alongadas e grossas. Da loja, depois de trabalhado nas marcenarias ao gosto do freguês, o ipê, ou “iron wood”, reaparecerá nos terraços do Upper East Side, nas coberturas do Soho, nas varandas do Brooklyn. “É uma madeira de luxo, exótica, muito cobiçada no mercado norte-americano”, diz o porta-voz para o tema de florestas do Greenpeace, Daniel Brinds.
Entre os funcionários da loja do Bronx, nenhum sabia informar com precisão sobre a origem daquele ipê, cujo metro cúbico é vendido ali por 6 mil dólares. “Sei que a madeira é importada do Brasil, mas não sei dizer diretamente de onde vem”, disse uma funcionária, mal disfarçando a impaciência. Ninguém sabia, ou dizia não saber, que os deckings de “ipe wood” ou “tropical hardwood” nos fundos da loja escondem uma história exemplar de crime ambiental, saga descoberta pela piauí que começou no sul do Pará em fevereiro de 2019 e que o Ibama chegou a apurar em sigilo até a investigação ser enterrada, sem qualquer punição aos criminosos, por uma decisão do então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ele próprio sob investigação por suspeita de colaborar com um esquema de contrabando internacional de madeira da Amazônia.
Em parceria com o consórcio internacional de jornalismo investigativo Organized Crime and Corruption Reporting Project (OCCRP) e o Center for Climate Crime Analysis (CCCA), a piauí identificou um lote de ipê extraído ilegalmente no Pará e conseguiu reconstituir todo o trajeto da madeira clandestina até a loja em Nova York. O lote é constituído por 53 metros cúbicos de ipê amarelo, o equivalente à derrubada de 14 árvores, suficiente para carregar dois caminhões. Da floresta no Pará, essa quantidade de madeira saiu custando em torno de 21 mil reais. Quando chegou às lojas de Nova York, depois de percorrer 5,6 mil quilômetros por terra e mar durante três meses, seu preço já estava em 1,8 milhão de reais. No percurso, entre fevereiro e abril de 2019, valorizou 89 vezes, cinco vezes mais do que a cocaína – não à toa, atraiu o interesse da maior facção criminosa do país, o PCC (Primeiro Comando da Capital).
Os detalhes da reconstituição da trilha do ipê amarelo, espécie campeã de exportação pelo Brasil, comprovam a participação de um importante traficante de cocaína ligado à facção e a colaboração com o crime por parte de setores do poder público, cuja missão é justamente combater o contrabando de madeira, além de evidenciar que a saga do ipê não é um fenômeno aleatório, motivado pela pobreza, mas resultado de um projeto criminoso organizado. Encorajados pelo governo Bolsonaro, madeireiros e grileiros avançam com força na destruição da floresta. Entre agosto de 2020 e julho de 2021, 13,2 mil quilômetros quadrados de mata foram devastadas no bioma, o maior índice em 15 anos, segundo levantamento do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) divulgado em novembro. Um terço desse desmatamento ocorreu em terras públicas. No Pará, estado líder na destruição da Amazônia, 3,3 milhões de metros cúbicos de madeira (suficiente para encher 37 mil caminhões) foram extraídos ilegalmente dessas áreas entre 2008 e 2020, de acordo com estimativa da CCCA baseada em dados do Inpe.
“É fato que uma grande quantidade de madeira de origem ilegal entra nos mercados europeu e norte-americano atualmente. Prova disso é a inconsistência substancial entre a quantidade de áreas na Amazônia autorizadas para extração madeireira e a quantidade de madeira produzida. Isto indica que uma grande quantidade de madeira é originária de áreas não autorizadas”, diz Rhavena Madeira, diretora do CCCA no Brasil.
Quando a noite começa a cair no sul do Pará, dezenas de caminhões deixam o fundo da mata rumo ao asfalto da BR-163, a rodovia de quase 4,5 mil quilômetros que liga Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará. Velhos e barulhentos, os veículos movem-se devagar, abarrotados de pesadas toras de ipê, jatobá e cumaru, todas madeiras de alto valor comercial e extraídas criminosamente, horas antes, da Floresta Nacional do Jamanxim, uma das mais desmatadas do país. Os motoristas confiam no breu noturno para driblar a fiscalização. É um cuidado exagerado, herdado de outros tempos, pois atualmente a presença de fiscais dos órgãos ambientes é praticamente nula na região.
Boa parte dos caminhões tem o mesmo destino: o distrito de Isol, no município de Novo Progresso, um lugarejo poeirento às margens da BR-163, com uma dúzia de ruas sem asfalto e casas simples. No distrito, onde estão instaladas cinco grandes serrarias, respira-se madeira, literalmente. O cheiro das toras cortadas impregna o ar, em meio ao ronco incessante das serras. Em fevereiro de 2019, no período de apenas doze dias, Isol recebeu um carregamento de 970 metros cúbicos de ipê amarelo nas formas de toras, pranchas e deckings. A madeira encheu 25 caminhões.
Examinando as guias florestais, documentos oficiais que registram todo o percurso da madeira no estado do Pará, descobriu-se que aquela madeira fora apreendida e doada pelo Ibama à prefeitura de Itaituba, cidade às margens do rio Tapajós, distante 400 quilômetros de Novo Progresso. A prefeitura, por sua vez, vendeu o material em leilão, por 335 mil reais, para a JMS Alexandre Serraria. Dentro desse imenso lote de madeira, estavam os 53 metros cúbicos de ipê cujo percurso a piauí rastreou. Encerrado o leilão em Itaituba, a madeira, ainda segundo as guias florestais, foi transportada por quase 500 quilômetros em direção ao sul, até chegar ao distrito de Isol, onde fica a sede da JMS Alexandre Serraria. Em seguida, a JMS vendeu o lote de 53 metros cúbicos de ipê para a Canaã do Norte Madeiras, cuja sede também fica em Isol. A Canaã do Norte, por sua vez, revendeu para uma terceira empresa, que levou a madeira até o porto de Barcarena, na região metropolitana de Belém, de onde o carregamento partiu com destino aos Estados Unidos.
Essa é a história oficial.
A história real começa com uma fraude. A prefeitura de Itaituba jamais fez um leilão de 970 metros cúbicos de ipê amarelo. “Nunca vendemos ipê algum e nem venderíamos”, diz o procurador-geral de Itaituba, Diego Cajado Neves. “Precisamos muito de madeira para construir pontes e palafitas.” Suely Mara Vaz Guimarães de Araújo, ex-presidente do Ibama, o instituto que cuida do meio ambiente no país, confirma: “Essa venda por parte da prefeitura não faz sentido. Se a prefeitura tivesse recebido doação de madeira por parte do Ibama, não poderia ter vendido.” Era a primeira fraude.
A segunda fraude está no transporte da madeira por 500 quilômetros até o distrito de Isol. As guias florestais informam que o transporte foi feito por 68 veículos – constam os números das placas nos documentos. Ao checar as informações, a piauí descobriu que seis dessas placas não são de caminhões com carrocerias capazes de levar a madeira. Correspondem a dois carros de passeio – um Fiat Palio e um Gol – e quatro motocicletas, que jamais conseguiriam levar toda aquela carga por 500 quilômetros. Tudo indica que a história do leilão de madeira pela prefeitura de Itaituba foi apenas um subterfúgio criado por contrabandistas de madeira para “esquentar” ipês extraídos ilegalmente da floresta do Jamanxim.
Segundo a Junta Comercial do Pará, o proprietário da JMS é João Marcos da Silva Alexandre, um rapaz de 28 anos que, ao menos no papel, ingressou cedo na atividade madeireira: em 2015, com apenas 22 anos, abriu sua primeira empresa do ramo, em Novo Progresso, e construiu um currículo de infrator. Segundo dados do Ibama, a JMS acumula 300 mil reais de multas por infrações ambientais. Hoje, Alexandre trabalha como pedreiro em Sinop, no Mato Grosso, com salário aproximado de 1,5 mil reais – pouco para quem, no papel, é um grande atacadista do setor madeireiro. Em depoimento a um fiscal do órgão ambiental, o “gerente geral” da empresa, Douglas Gaspar Barbosa, disse que Alexandre “emprestou o nome” para a abertura da firma em troca do pagamento das mensalidades de um curso superior de engenharia civil em Cuiabá, mas não informou quem seria o real dono da empresa. (Barbosa, que não foi localizado pela reportagem, é filho de um antigo servidor do Ibama demitido em 2006 por corrupção e grilagem de terras).
Já a sede da Canaã nem fica no distrito de Isol. Em outubro passado, a piauí visitou a região e constatou que seu endereço formal não existe. Embora todos se conheçam no distrito, nenhum dos dez moradores abordados pela reportagem disse conhecer a serraria nem seu proprietário. Um deles, que pediu para não ser identificado por medo de retaliação, deu uma pista: existe no distrito a figura do “vendedor de nota”, dono de empresas que só existem no papel e que servem para “esquentar” madeira extraída ilegalmente da Floresta Nacional do Jamanxim.
O dono formal da Canaã do Norte apresenta os mesmos indícios de ser um testa de ferro no esquema. Com 31 anos, Antonio Carlos Rodrigues de Oliveira, conhecido por Tonhão, tornou-se um dos maiores grileiros de áreas públicas no Pará. A exemplo de Alexandre, ele também abriu sua primeira madeireira muito jovem, aos 20 anos de idade, em 2010. Dois anos depois, fiscais do Ibama constataram que a empresa era fantasma, o que lhe rendeu uma ação penal na Justiça por ter inserido dados falsos no Sistema de Comercialização e Transporte de Produtos Florestais, o Sisflora, programa que o Pará usa para controlar a circulação de madeira no estado. A intenção de Tonhão, de acordo com a acusação do Ministério Público, era “esquentar” 2,1 mil metros cúbicos de madeira ilegal. Ele também é réu em quatro ações civis na Justiça Federal, acusado de desmatar ilegalmente 2,8 mil hectares em áreas protegidas no sul do Pará.
No início da década de 2010, quando já era dono de sua primeira madeireira, Tonhão trabalhava como tratorista para o pecuarista e ex-vereador de Novo Progresso Armando Anversa Faccin, que já foi condenado judicialmente a reparar uma área desmatada por “atividade madeireira ilegal”. Tonhão também foi funcionário do ex-vice-prefeito de Novo Progresso, Ricardo Faccin, sobrinho do ex-vereador. Os Faccin negam ter relações comerciais com Tonhão. “Ninguém da nossa família nunca trabalhou no setor madeireiro”, garante o ex-vice-prefeito. Hoje, Tonhão, o grande grileiro, tem uma modesta barraca de lanches no Centro de Novo Progresso. Ele não quis dar entrevista. “Desculpe, amigo, não tenho informação sobre esses assuntos”, escreveu no WhatsApp, antes de bloquear a piauí no aplicativo.
Criada em 2006 pelo então presidente Lula, a Floresta Nacional do Jamanxim ocupa 1,3 milhão de hectares a poucos quilômetros da margem oeste da BR-163. Deveria ser uma floresta intocada, mas a proximidade da estrada, principal via de escoamento da soja de Mato Grosso para os portos do Pará, vem arrasando com a mata. De acordo com o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), Jamanxim é a terceira floresta nacional mais desmatada da Amazônia. Quase 15% de sua área foi substituída por pastos. Imagens de satélite mostram a floresta sendo rasgada por centenas de quilômetros de estradas de terra, que os locais chamam de “ramais”. Em 2017, o governo de Michel Temer enviou um projeto ao Congresso reduzindo em 27% o tamanho da unidade de conservação, mas recuou após intensas críticas por parte de ambientalistas e de organizações não-governamentais.
Espremido de um lado por Jamanxim e de outro pelas terras indígenas Baú e Mekragnotire, do povo caiapó, o perímetro urbano de Novo Progresso, com seus 25 mil habitantes, fica às margens da BR-163. Os primeiros moradores, vindos de Mato Grosso e da Região Sul, chegaram durante a construção da rodovia, em 1973, durante a ditadura militar (nota do website: esse fato gerado pela famigerada ditadura militar de translocar os sulistas, principalmente gaúchos, que depois formaram o movimento dos sem terra, foi a grande tragédia nacional gestada pelos militares e que agora volta com esse ex-capitão. Tristeza que esse setor público é aquele que deveria proteger o território e o povo brasileiro, pelo menos é pago para isso. Para conhecer profundamente esse fato, ver a série ‘Década da destruição’ da rede de tevê inglesa ITV que está sob o cuidados da Universidade Católica de Goiás.). Desde então, a destruição da floresta é a grande atividade econômica do município, seja para extrair madeira, abrir novos pastos ou desbravar áreas de garimpo. Na cidade, há dezenas de pontos de venda de máquinas para o garimpo e lojas de compra e venda de ouro. A estátua de um garimpeiro, com mais de dois metros de altura, enfeita o cruzamento das duas principais avenidas. A devastação catapulta a violência: de acordo com dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Novo Progresso registrou um índice de 100 mortes violentas por 100 mil habitantes em 2020, mais que o dobro do verificado no Pará e no Brasil, no mesmo período. O crime organizado anda lado a lado com a destruição da floresta.
Até o prefeito Gelson Luiz Dill, do MDB, tem seu quinhão de terra em área pública. Sua fazenda Carapuça, às margens do rio de mesmo nome, ocupa 784 hectares no meio do parque nacional do Jamanxim (a leste da BR-163), parte ocupado por pasto e boi. Em novembro de 2015, Dill registrou a área em seu nome no Cadastro Ambiental Rural (CAR). Criado pelo governo federal em 2012, o CAR é um sistema autodeclaratório cujo objetivo é regularizar as áreas de proteção ambiental dentro de cada propriedade rural – cabe ao dono registrar o polígono do imóvel e delimitar a reserva de mata nativa a ser preservada. Apesar da finalidade ambiental, o CAR tem sido utilizado para viabilizar a posse ilegal de terras públicas, sobretudo na Amazônia.
Na cartilha do grileiro, o primeiro passo é registrar no CAR determinada área dentro de unidades de conservação ou terras indígenas, todas públicas, como se fosse particular. Em seguida ele invade a área e retira a madeira com valor de mercado. Depois vem o fogo e o plantio de capim, formando o pasto para o boi, que atesta a ocupação da área, à espera de uma nova lei que atualize a data limite para a regularização fundiária do local – a norma atualmente em vigor valida a posse de áreas em terras públicas até 2008.
Apesar de o registro de propriedade ter sido feito em 2015, Dill garante que a terra já estava em suas mãos antes da criação do parque de Jamanxim em 2006. “Quem invadiu não foram os produtores rurais, mas o governo federal, na época do PT. Se tem alguém injustiçado nessa história é o produtor”, diz. Dill é bolsonarista, assim como a maioria esmagadora dos habitantes de Novo Progresso, onde 72,7% da população votaram em Jair Bolsonaro no primeiro turno de 2018. Na entrada da cidade, um outdoor parcialmente rasgado traz a foto do presidente ao lado da frase “Por Deus, por nossas famílias e por quem produz”.
A volúpia do desmatamento que há décadas alimenta Novo Progresso encontra pouca resistência nos órgãos públicos de repressão. Exceto por equipes do Ibama que vez ou outra ocupam o escritório local do órgão para operações pontuais, a fiscalização é quase nula na região. Durante o dia, percorrendo a floresta pelos “ramais”, a sensação é a de que o percentual de floresta derrubada é muito maior do que apontam os satélites do Inpe, com áreas imensas reduzidas a tocos de árvores calcinados em meio ao capim alto que será o alimento do boi. Não é raro ouvir o barulho das motosserras, operadas por homens contratados informalmente pelos “gatos”, os intermediadores de mão de obra na região, sob condições degradantes. “Já vi um homem morrer na minha frente quando o tronco que a gente serrava caiu pro lado dele”, diz um desses trabalhadores, de 36 anos, que só se identificou com seu primeiro nome, Redenilson.
Tonhão, o ex-funcionário da família Faccin e dono da Canaã do Norte, por onde passou o carregamento de ipê amarelo, tratou de reservar o seu quinhão na grande farra da grilagem e do desmatamento dentro da Jamanxim. Em abril de 2016, registrou para si, por meio do CAR, uma área de 5,7 mil hectares (equivalente ao bairro Barra da Tijuca, no Rio) dentro da floresta. Batizou sua área como Fazenda Toca da Onça. O passo seguinte, como convém à cartilha do grileiro, foi desmatar o local. Atualmente, metade da propriedade é ocupada por pastos, de acordo com dados do Inpe. Não há acesso à Toca da Onça por terra. Dez quilômetros antes da fazenda, uma barreira com corrente e cadeado impede a passagem na única estrada de chão batido, muito mal conservada, que leva à propriedade. Nas imediações, é possível detectar um ou outro ipê amarelo, que muito provavelmente só segue intacto na natureza porque não atingiu o ponto de corte. De 2016 a 2020, o CCCA, parceira da piauí nesta reportagem, estima que foram extraídos 80 mil metros cúbicos de madeira da Toca da Onça, dos quais 76,5 mil (95%) em 2019, exatamente o ano em que a madeireira de Tonhão comprou o lote ilegal de ipê amarelo que foi parar em Nova York.
Treze dias depois de pagar 50 mil reais pela madeira da JMS, a Canaã do Norte, de Tonhão, revendeu o carregamento para outra empresa, a Coexpa Comércio e Exportação de Produtos da Amazônia, com sede em Belém. Embolsou 437 mil reais, nove vezes mais do que pagara duas semanas antes, e isso sem fazer qualquer beneficiamento na madeira que justificasse um lucro tão grande. O procurador Ubiratan Cazetta, do Ministério Público Federal no Pará, explica os números da operação. “É comum os contrabandistas de madeira simularem altos lucros na compra e venda de madeira para justificar a entrada do dinheiro obtido com a venda final do próprio produto ou de outros crimes, como corrupção e tráfico de drogas. É um caso típico de lavagem.”
Assim como a JMS e a Canaã do Norte, a Coexpa também tem um histórico de infrações ambientais: a empresa já foi autuada em 225 mil reais pelo Ibama, e seu proprietário, Bruno Leão Atayde, é réu em duas ações penais na Justiça estadual paraense, acusado de delitos contra o meio ambiente. Consultada sobre o lote ilegal de ipê amarelo, a Coexpa emitiu uma nota em que afirma ter prestado todas as informações para “o pleno esclarecimento dos fatos perante os órgãos ambientais competentes”. Na nota, a Coexpa acrescenta que faz “rigoroso procedimento de análise interna” de seus produtos e fornecedores, avaliando “requisitos como licenciamento ambiental, existência de lastro comprobatório de origem de produtos, antecedentes de autuação ambiental, bem como regularidade nos sistemas oficiais de controle, tanto em âmbito estadual como federal.” Não disse nada sobre a falsificação das guias florestais do ipê, que estão na origem da fraude.
As guias florestais apontam um caminho estranho para o ipê. Depois de viajar 500 quilômetros em direção ao sul entre os dias 7 e 18 de fevereiro de 2019, os 53,3 metros cúbicos pegaram o caminho inverso, viajando 800 quilômetros em direção ao norte, no dia 11 de março de 2019, rumo ao porto de Santarém. Tudo indica que, na verdade, a viagem foi outra: a madeira foi retirada criminosamente de algum ponto da região de Novo Progresso (possivelmente da Fazenda Toca da Onça, de Tonhão, no meio do Jamanxim) e levada em caminhão para o porto de Santarém, de onde a Coexpa tratou de escoá-la em balsas pelo rio Amazonas, até o porto de Barcarena, na área metropolitana de Belém, já com destino certo: a empresa J. Gibson McIlvain, grande atacadista de madeiras do estado norte-americano de Maryland e importadora frequente de ipês brasileiros.
Enquanto o ipê viajava pelo Amazonas, a Aimex (Associação da Indústrias Exportadoras de Madeira do Estado do Pará), da qual a Coexpa faz parte, pressionava o Ibama para recuar na decisão de inserir o ipê amarelo na lista de espécies sob risco de extinção, organizada pela Cites (Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas da Flora e da Fauna Silvestres, ligada à ONU). A proposta surgira no fim de 2018, ainda na gestão de Michel Temer, e, caso fosse implantada, tornaria mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, com a exigência de certificado de origem da madeira pelo exportador (o que inviabilizaria a remessa, para o exterior, do lote dessa espécie vendido pela Canaã do Norte à Coexpa). “Não se justifica estabelecer procedimentos que estão indo na contramão das medidas adotadas pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, de desregulamentar procedimentos de controle desnecessários”, escreveu a presidência da Aimex em ofício ao Ibama.
A pressão sobre o governo brasileiro também vinha dos importadores, sobretudo os norte-americanos (segundo o Ibama, 90% do ipê extraído no Brasil é exportado). Naquele mês de março de 2019, Salles viajou para os Estados Unidos na comitiva do presidente Bolsonaro. Não consta na agenda oficial dele reuniões com representantes das importadoras de madeira norte-americanas, mas, coincidência ou não, exatamente naqueles dias o governo recuou da intenção de inserir o ipê na lista da Cites. Em comunicado à Câmara dos Deputados, o ministro Ricardo Salles disse haver “falta de estudos científicos específicos” e “necessidade de consultas mais detalhadas” ao Ibama. Desde então, a proposta segue engavetada.
Naquele fim de março, logo após o ministro voltar ao Brasil, lobistas da IWPA (International Wood Products Association), entidade que reúne as maiores importadora de madeira dos Estados Unidos, inclusive a J. Gibson MacIlvain, comentaram o recuo do governo brasileiro em relação ao ipê. “Isso confirma o que ouvimos do pessoal da embaixada do Brasil na sexta-feira”, escreveu Joseph O’Donnell, diretor da IWPA, para uma lobista da entidade, em e-mail de 26 de março daquele ano obtido pela piauí. Finalmente, o caminho estava livre para a exportação do ipê. Ao chegar ao porto de Barcarena, o lote de deckings foi dividido em três contêineres embarcados no navio cargueiro Balsa em 10 de abril de 2019. No dia seguinte, a embarcação zarpou do Pará com destino ao porto de Cristóbal, Panamá. Oito dias depois, o carregamento foi inserido em outro navio, que rumou para Baltimore, um dos principais dos Estados Unidos, no estado de Maryland, onde chegou em 14 de maio. Do porto de Baltimore, a madeira viajou mais 27 km até a sede da J. Gibson McIlvain, localizada no município de Perry Hall. A J. Gibson McIlvain não vende diretamente para o consumidor final, apenas para pátios em todos os Estados Unidos – entre eles, a loja no Bronx, em Nova York.
A J.Gibson McIlvain não possui nenhuma ação por crime ambiental nos Estados Unidos e, durante as investigações tanto da piauí quanto do Ibama, não apareceu nenhuma suspeita de que a empresa tivesse conhecimento prévio da origem ilegal do ipê amarelo que recebeu. Procurada, a empresa não se manifestou. Em seu site, a McIlvain se diz orgulhosa do processo rigoroso que utiliza para garantir qualidade e legalidades da madeira da Amazônia. “O processo começa com a concessão de terras no Brasil. O governo local tem um excelente programa florestal e é fácil rastrear o histórico de negócios e as fontes de cada fábrica”, diz.
No Brasil, comercializar madeira de origem ilegal é crime com pena de até quatro anos de reclusão, sem multa. Nos Estados Unidos, a punição, prevista no Lacey Act, é mais dura: vai até cinco anos de prisão, com multa de 500 mil dólares, o que equivale a quase 3 milhões de reais ao câmbio atual. O combate ao contrabando de madeira nos EUA melhorou com o fim da gestão de Donald Trump, na avaliação de Daniel Brindis, do Greenpeace. Mas poderia ser mais efetivo. Uma das falhas da fiscalização, diz ele, é o excessivo apego à formalidade documental. “O governo se apega muito ao que está no papel, mas já está provado que, em alguns casos, os documentos podem ser fraudados na origem”, diz ele. “Infelizmente, o governo norte-americano ainda é suscetível ao lobby do setor madeireiro.” Para Rhavena Madeira, do CCCA, falta efetividade na aplicação da Lacey Act. “Esses regulamentos têm deficiências de implementação e limitações de investigação ligados à dificuldade da rastreabilidade”, afirma. “O mesmo ocorre na Europa. As autoridades competentes dificilmente conseguem identificar todos os operadores atuantes na cadeia e em muitos países não há operações de controle e fiscalização sistemáticas. Faltam procedimentos e interpretações uniformes.”
Em agosto de 2020, cinco meses após engavetar a proposta de tornar mais rígida a fiscalização da exportação do ipê, o então ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi além: nomeou André Heleno Silveira, um agente da Abin (Agência Brasileira de Inteligência) sem qualquer experiência na área ambiental, para cuidar da Coordenação de Inteligência de Fiscalização do Ibama, um setor vital no combate ao crime organizado por trás da destruição da Amazônia. Semanas depois, Salles designou o policial militar aposentado Walter Mendes Magalhães Júnior como superintendente do órgão no Pará. Silveira e Magalhães Júnior cuidaram de desmontar os núcleos de inteligência, tanto na matriz em Brasília quanto na filial em Belém, respectivamente (o Ibama possui pequenos núcleos de inteligência distribuídos pelos 26 estados), trocando servidores experientes por pessoas sem qualificação. “Claramente o objetivo era inviabilizar qualquer investigação mais aprofundada contra os grileiros, madeireiros e garimpeiros”, diz um funcionário de alto escalão do órgão federal, sob anonimato, para evitar retaliações.
Meses mais tarde, em maio de 2020, tanto Salles quanto Magalhães Júnior foram alvos da Operação Akuanduba, da Polícia Federal, que investiga a participação de ambos em um esquema de facilitação do contrabando de madeira amazônica de origem ilegal – também são apurados os crimes de prevaricação, advocacia administrativa e corrupção. Segundo a PF, após Salles encontrar-se em Brasília com representantes da Aimex, do Pará, em fevereiro de 2020, Magalhães Júnior, supostamente por ordem do então ministro, assinou licenças de exportação retroativas para legalizar 153 mil metros cúbicos de ipê e jatobá extraídos ilicitamente no Pará e apreendidos no mês anterior nos Estados Unidos. Pouco depois de a investigação da PF vir à tona, Salles deixou o cargo de ministro.
Examinada em retrospectiva, a extinção do setor de inteligência em 2019 favoreceu as quadrilhas que atuam no contrabando de madeira ilegal para exterior. Não há notícia de que o sucateamento do setor de inteligência tenha tido o objetivo específico de impedir a descoberta da conexão do ipê amarelo exportado para Nova York, mas o fato é que a decisão do ministro favoreceu os contrabandistas.
Ainda no primeiro semestre de 2019, os fiscais do Ibama suspeitaram do tal leilão de madeira que teria sido promovido pela prefeitura de Itaituba. No início de 2019, a prefeitura teria pedido à Secretaria de Meio Ambiente do Pará que registrasse os créditos de uma imensa quantidade de madeira em favor da serraria JMS: ao todo, eram 8,6 mil metros cúbicos, dos quais 2,3 mil de ipê, suspostamente arrematados no leilão. A inserção dos créditos no Sisflora, o sistema do governo paraense que controla o transporte de madeira, é uma forma de legalizar o produto. A secretaria aceitou o suposto pedido da prefeitura sem contestar.
Os falsos créditos de madeira para a JMS foram incluídos no Sisflora pelo então gerente do sistema, Victor André Holanda Pessoa, que ocupava o cargo de chefe de Cadastro, Transporte e Comercialização de Produtos Florestais da Secretaria do Meio Ambiente do Pará. Holanda Pessoa chegara ao cargo em janeiro de 2019, pouco antes de fazer a inserção dos dados. E chegara por cima. Fora indicado por Persifal de Jesus Pontes, então chefe da Casa Civil do governador do Pará, Hélder Barbalho. A indicação, no entanto, era mais do que uma temeridade.
Na época, Holanda Pessoa já era um dos principais alvos de uma operação da Polícia Federal que investigava um grande esquema de tráfico de cocaína dos portos brasileiros para a Europa protagonizado pelo PCC. Filho de piloto e ligado à facção paulista, Pessoa tinha uma logística própria para o transporte aéreo de cocaína: levava grandes cargas da droga por helicóptero do Paraguai para um hangar em Americana, no interior paulista, e de lá, em pequenos aviões, para outro galpão no aeroporto de Tomé-Açu, no interior do Pará. Dali, transportava a cocaína em carros e caminhões até os portos de Belém e Barcarena, de onde a droga zarpava, oculta em contêineres, rumo a Europa. Em abril de 2018, nove meses antes de ser nomeado pelo governo Barbalho, Holanda Pessoa teve um carregamento de 513 quilos de pasta base de cocaína apreendido pela PF no interior paulista. O motorista do caminhão que leva a droga foi preso em flagrante – e Pessoa, meses depois, ganhou a promoção para gerenciar o Sisflora no governo do Pará.
O narcotraficante do PCC ficou apenas quatro meses no cargo – ele seria um dos 50 presos no ano seguinte pela Polícia Federal, acusados de tráfico internacional de drogas, na Operação Além-Mar. Seu padrinho, Persifal de Jesus Pontes, também caiu, mas por outro motivo: é acusado de fraudar a compra de respiradores para pacientes infectados com o coronavírus. Foi no ambiente comandado por esse tipo de figuras que os contrabandistas legalizaram fraudulentamente a grande carga de madeira amazônica (incluindo o ipê amarelo que foi parar em Nova York). Com isso, conseguiram vendê-la para 18 estados brasileiros e para o exterior, auferindo um lucro total estimado pelos fiscais do Ibama em 26,98 milhões de reais. “A madeira tem pelo menos duas grandes utilidades para o narcotráfico: serve para lavar o dinheiro da atividade e também para ocultar a própria droga nos navios rumo à Europa e Estados Unidos”, diz Aiala Colares de Oliveira Couto, professor da UFPA (Universidade Federal do Pará) que investiga o crime organizado na Região Norte.
Antes que Pessoa fosse responsabilizado pelo contrabando da madeira, a investigação do Ibama foi interrompida com o desmonte do setor de inteligência do órgão ambiental patrocinado por Ricardo Salles. “Estávamos perto de puxar esse novelo quando tudo foi por água abaixo”, afirma um fiscal do órgão sob anonimato, devido ao temor de retaliação. Com isso, o trabalho dos fiscais foi remetido para a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, que, por sua vez, considerou não haver crime de âmbito federal e mandou o caso ao Ministério Público do Pará – que denunciou até agora apenas um personagem da fraude: o dono da Coexpa, Bruno Atayde Leão, por crime ambiental. Consultado pela piauí, Pessoa, que atualmente responde em liberdade ação penal em que é acusado de tráfico de drogas, associação criminosa e lavagem de dinheiro, disse ter recebido as acusações “com perplexidade” e mandou dizer que está à “disposição das autoridades competentes para, ao modo e tempo correto, prestar quaisquer esclarecimentos que porventura se façam necessários”. (colaborou Eduardo Goulart)
ALLAN DE ABREU
(siga @allandeabreu1 no Twitter)
Repórter da piauí, é autor dos livros O Delator, Cocaína: A Rota Caipira e Cabeça Branca (Record)
LUIZ FERNANDO TOLEDO
(siga @toledoluizf no Twitter)
é mestrando em jornalismo de dados pela Universidade Columbia (NY) e foi editor da OCCRP no Brasil até 2021. É um dos diretores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji).