Amazônia: um lugar de riqueza estonteante sob ataque implacável

O fazendeiro Jaim Teixeira faz um levantamento da paisagem nos limites de sua propriedade, próximo ao Trairão, no estado do Pará. Teixeira colocou fogo na floresta para derrubá-la para que pudesse criar pasto para seu gado, embora queimar a floresta primária na seja ilegal. Crédito: Larry C. Price

https://insideclimatenews.org/news/19122021/amazon-rainforest-brazil-jair-bolsonaro-climate-change/

Por Georgina Gustin

19 de dezembro de 2021

Considerada como o contrapeso do planeta para o aquecimento global, no entanto o presidente brasileiro leva o desmatamento a proporções terríveis. Alguns acreditam que a destruição é tão severa que deveria ser chamada de “ecocídio”.

TRAIRÃO, Brasil — Jaim Teixeira examina sua propriedade em uma motocicleta, vestindo jeans e uma camisa de mangas compridas à prova de sol para protegê-lo do calor de tirar o fôlego da selva. 

É o fim da estação seca e, como tudo e todos nesta parte da Amazônia, o fazendeiro magro de 51 anos está coberto por uma fina poeira cor de tijolo.

Perto dali, uma nuvem de fumaça sobe na borda do dossel da selva, indo em direção ao céu até se tornar uma névoa indistinta. Árvores em chamas estalam e cospem. Uma cai com um golpe. E logo uma outra. 

Teixeira ateou o fogo no dia anterior para limpar pastagens para seu gado. Os fazendeiros do Brasil e os homens da fronteira da floresta tropical chamam isso de limpeza. Limpeza… É a maneira mais conveniente de domar uma selva que se estende por milhares de quilômetros em todas as direções.

“Eu sei que é ilegal”, diz ele, apontando para a fumaça. “Se eu tivesse um salário, não precisaria fazer isso. Mas de que outra forma posso alimentar minha família?”

Nenhuma licença permite que uma pessoa queime as árvores antigas da Amazônia.

“Para floresta virgem”, disse Teixeira, “você tem que fazê-lo ilegalmente”. 

Então, as pessoas fazem. 

O fazendeiro Jaim Teixeira em pé no topo de um toco de árvore carbonizado em sua propriedade perto do Trairão. Crédito: Larry C. Price

A Amazônia é envolvente e exuberante, um lugar de riqueza estonteante. Mas uma poderosa teia de forças extrativas também está em ação aqui.

Todos os dias, milhares de mineiros, madeireiros, fazendeiros e pecuaristas queimam ou cortam cerca de 4.000 hectares de floresta, trabalhando para satisfazerem uma demanda crescente pelos recursos que ela contém. Eles são minúsculas engrenagens em uma máquina global que destruiu quase um quinto da floresta tropical brasileira – uma área do tamanho da Califórnia – nos últimos 35 anos, levando mais de 10.000 espécies de plantas e animais à extinção.

A Amazônia é a maior de um cinturão de florestas que envolve a parte tropical do planeta. É uma selva tão quente e úmida que gera sua própria chuva (nt.: sabe-se, há de 40 anos, por estudos científicos que 75% de toda a água que a Amazônia contém está acima do solo! Ou seja, nas árvores, nas folhas, na evapotranspiração e nas condensações que formam os rios voadores que tornam fértil todo o sudeste, o Pantanal e o sul do Brasil). Sua teia de rios é a maior do mundo e contém cerca de um sexto da água doce do mundo.

A floresta tropical abriga mais de 10% de todas as espécies vegetais e animais, com novas sendo descobertas, em média, a cada dois dias. Sob sua cobertura, insetos voam, parecendo personagens da Pixar; mamíferos raros e minúsculos com rostos humanamente sérios correm ao longo dos galhos, o canto dos pássaros ressoa pelas folhas. Tudo está pulsando e oxigenado, circulando entre a vida e a morte e de volta à vida. 

Nesse ciclo, os solos e a vegetação da Amazônia armazenam entre 150 bilhões a 200 bilhões de toneladas de carbono – cerca de cinco vezes as emissões mundiais de gases de efeito estufa, ajudando a estabilizar a atmosfera e oferecendo um contrapeso ao aquecimento global.

Se o planeta perder a Amazônia, será quase impossível manter esse equilíbrio. 

“Uma vasta quantidade de carbono seria convertida de matéria orgânica em dióxido de carbono e isso aumentaria o dióxido de carbono que já estamos colocando na atmosfera com a queima de combustíveis fósseis”, disse Scott Denning, um cientista atmosférico da Universidade Estadual do Colorado. “Isso seria uma catástrofe para a humanidade e para tudo o mais.”

Chamas consumindo um pedaço da floresta amazônica na propriedade do fazendeiro Jaim Teixeira. Crédito: Larry C. Price

Partes da Amazônia estão espalhadas por nove países, da Bolívia no sul à Venezuela e Colômbia no norte, mas o Brasil tem de longe a maior parte, com 60 a 70 por cento da floresta tropical. O Brasil também sofre com algumas das maiores taxas de destruição e degradação da floresta úmida nos trópicos. 

Por cerca de uma década, começando em 2009, as taxas de desmatamento caíram e depois se estabilizaram, depois que o governo brasileiro impôs proteções mais fortes para a floresta tropical. Mas em 2019, com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, um ex-capitão militar de extrema direita, essa tendência começou a se reverter rapidamente. Desde que ele assumiu o cargo, a taxa anual de desmatamento aumentou drasticamente, 60 por cento a partir de 2020, de acordo com um instituto de pesquisa brasileiro. Bolsonaro chamou os dados do governo sobre o desmatamento de uma “mentira”. 

Em novembro, nas negociações anuais das Nações Unidas sobre o clima, realizadas em Glasgow, o Brasil prometeu acabar com o desmatamento ilegal até 2028, mas um novo relatório do governo revelou que o desmatamento havia aumentado – mais uma vez – em relação ao ano anterior.

A reversão foi tão forte, tão convincentemente ligada às políticas e retóricas anti-ambientais de Bolsonaro, dizem seus críticos, que grupos de defesa, tribos indígenas e alguns dos mais proeminentes advogados de direitos humanos do mundo acreditam que o presidente deve ser processado. O papel de Bolsonaro na destruição da Amazônia, eles acreditam, o torna um criminoso no mesmo nível de ditadores genocidas ou arquitetos de crimes de guerra. 

Em outubro, um dia antes de Teixeira incendiar sua floresta e enquanto milhares de pequenos incêndios queimavam na Amazônia, um grupo ambientalista austríaco foi o último a acusar Bolsonaro de crimes contra a humanidade, em uma denúncia apresentada no Tribunal Penal Internacional de Haia. A denúncia segue outras três, movidas em nome de grupos indígenas brasileiros. 

As queixas podem ajudar a persuadir o tribunal internacional a adotar um novo crime – ecocídio – como o quinto na lista dos crimes mais graves do mundo, junto com genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e guerra ilegal. Seria o primeiro crime a ser adicionado desde o julgamento dos nazistas em Nuremberg após a Segunda Guerra Mundial, e o primeiro a fazer da natureza, não da humanidade, a vítima.

O crime de ecocídio foi oficialmente definido este ano por um painel jurídico independente como “atos ilegais ou arbitrários cometidos com o conhecimento de que há uma probabilidade substancial de danos graves e generalizados ou de longo prazo ao meio ambiente.”

As queixas ao tribunal levarão anos para se desenrolar, se é que algum dia acontecerão. Mas eles trazem para o cenário jurídico mundial um conflito de longa data entre as indústrias que exploraram os recursos da Amazônia – e são a base da economia brasileira moderna – e os povos indígenas que viveram na floresta tropical por milênios. 

O resultado desse conflito agora tem consequências para todo o planeta.

Tribos indígenas na Amazônia estão na linha de frente da batalha climática de uma forma que o resto da população mundial não está, e cada vez mais, pesquisas científicas demonstram que os direitos às terras indígenas são essenciais para resolver a crise climática. Quando as tribos têm posse clara de suas terras, a floresta permanece intacta. E quando a floresta permanece intacta, o carbono, que de outra forma seria perigoso, fica preso nas raízes e no solo, controlado pelo manejo indígena

“Sem a floresta, nós, indígenas, não podemos viver e a humanidade não pode viver”, disse o cacique Almir Narayamoga Suruí, um líder tribal representado nas denúncias, em entrevista em sua aldeia na reserva Sete de Setembro. Então, ele acrescentou, Bolsonaro “está fazendo genocídio contra o mundo”.

Um enorme caminhão tipo tandem transportando soja para o norte até a cidade portuária de Santarém, na Amazônia, passando por uma placa política promovendo o presidente Jair Bolsonaro na “Rodovia da Soja” – BR 163. Crédito: Larry C. Price

‘Carne, Bíblias e Balas’

Centenas de milhares de Jaim Teixeiras vivem em toda a Amazônia e compartilham uma história semelhante.

Como Teixeira, muitos vieram do sul, do Rio de Janeiro ou de São Paulo, para escapar de vidas de esmagadora pobreza urbana (nt.: a autora do texto desconhece que mais do que do RJ e de SP, esses agricultores foram do Rio Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná, expulsos da terra pela ‘modernização da agricultura’ associada à soja e pela usurpação indevida de territórios dos povos originários. Foram induzidos pelo regime militar, durante a ditadura, a fazerem a ocupação do centro-oeste e do norte com o discurso de ‘integração nacional’ e de ocupação a qualquer preço da Amazônia. Tanto que hoje se considera que esses três estados são os grandes geradores dos agronegocistas da soja e da pecuária que arrasam os biomas que ainda eram preservados até 30 ou 40 anos atrás. Daí vem o trágico ‘agronecrócio’, ou seja, a morte a qualquer preço desde que os ganhos fiquem só com muitíssimos poucos brasileiros.). Nas décadas de 1970 e 1980, o governo brasileiro deu lotes de terra a mais de 1 milhão de brasileiros ao longo de novas estradas construídas pelo exército que abriram a Amazônia ao desenvolvimento. As casas de um cômodo desses colonos ainda estão por toda parte, cobertas de vegetação espontânea, abandonadas depois que seus proprietários venderam suas terras.

Teixeira lembra do dia em que chegou ao norte, vindo ao Rio de Janeiro, 18 de julho de 1980, data em que sua modesta história de sucesso começou a se delinear.

Quando jovem, ele comprou um terreno. Então ele comprou mais alguns. Ele se casou e teve três filhos. Ele construiu uma casa com telhado de cerâmica e eletricidade. Teixeira agora tem 140 cabeças de gado em 200 hectares – pequeno se comparado a alguns (nt.: esses alguns podem ser aqueles que têm mais de 600 mil hectares!), mas uma conquista para um cara que nunca fez o ensino médio. Ele criou uma vida na selva.

Teixeira não sabe para onde vai o gado. Ele os vende na cidade para um homem que os leva para o norte, para Santarém ou Itaituba. Sua fazenda é apenas uma das dezenas de milhares que fornecem gado para a indústria de carnes brasileira, com a JBS – a maior empresa de carnes do mundo, com sede em São Paulo – que está no topo do topo.

Uma gigantesca pastagem desmatada, devastada para a criação de gado, a oeste de Juara, no estado de Mato Grosso. Crédito: Larry C. Price

Desde a década de 1960, quando as políticas governamentais empurraram a fronteira agrícola para o interior da Amazônia, o número de vacas no país explodiu. Naquela época, nos arredores de Brasília, a capital modernista e planejada, a JBS era uma pequena fazenda, mas crescia rapidamente à medida que saciava o apetite da nova cidade. A Amazônia era o lar de cerca de 5 milhões de vacas. Hoje, tem quase 90 milhões de bovinos de corte, quase metade dos 200 milhões do Brasil – mais do que qualquer outro país do mundo. Essa explosão de gado, impulsionada pela demanda por hambúrgueres e bifes, é a principal causa do desaparecimento da floresta amazônica. A pecuária brasileira é a maior fonte de emissões de gases de efeito estufa relacionados ao desmatamento na América Latina.

Para agricultores pobres como Teixeira, a indústria da carne significou uma vida. Para criar gado, tudo o que você precisa fazer é queimar um pouco da floresta e deixar algumas vacas pastarem na grama que cresce no solo recém-limpo. Você não precisa de equipamento ou muito capital. Você precisa de terra, mas há muito. Muitos fazendeiros simplesmente começam a limpar e criar pastagens em terras que oficialmente não possuem. Mais da metade do atual desmatamento na Amazônia ocorre em terras públicas que foram tomadas ilegalmente. 

Os grandes frigoríficos brasileiros – JBS, junto com Marfrig e Minerva – prometeram parar de comprar gado de terras desmatadas. 

Uma porta-voz da Marfrig disse que a empresa pretende eliminar o desmatamento em toda a sua cadeia de abastecimento até 2025 na Amazônia e 2030 na vizinha região do Cerrado. Uma porta-voz da Minerva disse que “100 [por cento] das compras feitas pela Minerva Foods são monitoradas em todas as regiões operacionais” do Brasil e apontou para uma auditoria do governo que mostra altos índices de conformidade com seus esforços de desmatamento. Um porta-voz da JBS disse que a empresa “não tolera o desmatamento ilegal” e pretende “alcançar uma cadeia de abastecimento totalmente ilegal e sem desmatamento até 2025”.

O trabalhador Ulessas Barco joga combustível em um dos muitos incêndios que finalmente consumirão um campo recém desmatado. Os campos, agora nus, eram floresta tropical antes de serem cortados e queimados. O proprietário planeja cultivar soja nessa área desmatada. Crédito: Larry C. Price

Mas os críticos dizem que a cadeia de suprimentos é teimosamente obscura e esses compromissos não significam muito. Um fazendeiro passa suas vacas para outro fazendeiro, que cria os animais em pastagens que não foram recentemente desmatadas, dando ao gado uma ‘certificação’ de recorde limpo.

Em toda a vastidão da Amazônia oriental e meridional – o chamado Arco do Desmatamento – vacas brancas cobrem todos os campos verdes e se juntam para aproveitarem a sombra embaixo das árvores deixadas para trás. Do céu, parecem grãos de arroz.  

Muitas das vacas são criadas por fazendeiros ricos com milhares de hectares (nt.: com A.Maggi e SLC, por exemplo, dois grandes grupos gaúchos, originários do Rio Grande do Sul). Alguns deles são prefeitos de cidades ou congressistas brasileiros. Alguns são apenas pequenos fazendeiros como Teixeira. No conjunto, são a base do poder rural de Bolsonaro, os ruralistas que acreditam na “carne, bíblias e balas”, como diz o ditado.

O governo Bolsonaro não respondeu aos pedidos do Inside Climate News para comentar este artigo.  

A retórica pró-desenvolvimento e anti-meio ambiente de Bolsonaro encorajou fazendeiros, junto com madeireiros e mineiros, a derrubarem mais floresta tropical com aparente impunidade. Mas queimar e cortar floresta virgem ainda é ilegal, e agências federais, embora enfraquecidas pelo Bolsonaro, tentam punir os violadores. Agentes do Ibama, órgão ambiental do governo, podem destruir maquinários agrícolas e cobrar multas em terras de fazendas, impossibilitando sua comercialização.

Para Teixeira, e milhares como ele, vale a pena correr o risco. Amanhã ou depois, quando as chamas morrerem, ele plantará sementes de grama nas cinzas e logo suas vacas pastarão ali.

“Não temos educação. Não temos nada”, disse ele. “Isso é o que temos que fazer.”

Um trator passa por uma plantação de soja ao longo da “Rodovia da Soja”, no estado de Mato Grosso. A floresta intacta fica ao norte e oeste. Crédito: Larry C. Price

‘ Uma Ilha de Árvores’

Quando João Cohen se mudou para seu pedaço de floresta na Amazônia há 30 anos, ele matou 36 víboras mortais enquanto desmatava para plantar mandioca. O lugar era selvagem e emaranhado, sem ninguém por perto. Ele chegou a pé, percorrendo um caminho estreito a alguns quilômetros da estrada principal que leva à cidade portuária de Santarém. Às vezes, pegadas de onça eram impressas de forma tão recente no solo vermelho do caminho que ele jurava que ainda estavam quentes.

Agora sua propriedade é uma ilha de árvores, cercada por campos de soja que se estendem até o horizonte, um mar verde voltado para a exportação. Cohen, 78, passa a maior parte do tempo hoje em dia defendendo-se das ofertas de compra de suas terras ou garantindo que seus vizinhos não as invadam. 

“Este pequeno pedaço de floresta está protegido”, disse ele, sentando-se com o rosto severo na varanda de sua casa azul brilhante. “Não está à venda. Não está à venda. Quantas vezes posso dizer ‘Não’?” Quando o irmão de um prefeito local fez uma oferta e, com ela, uma ameaça implícita, Cohen pediu à filha que ligasse duas vezes por dia para ver como ele estava.

João Cohen, 78, mora há 30 anos em uma pequena propriedade a sudoeste de Santarém, cercada por uma floresta tropical intocada. Ao longo das décadas, a área ao seu redor foi convertida em fazendas e campos de soja. Aqui ele está em meio a pés de mandioca. Crédito: Larry C. Price

João Cohen mora sozinho em sua pequena fazenda perto de Santarém, onde faz plantações para o mercado local. Ele é constantemente pressionado a vender suas terras por fazendeiros que querem cultivar soja lá. Crédito: Larry C. Price

Depois de comprar a terra décadas atrás, Cohen limpou apenas o suficiente para ganhar a vida, cultivando pimenta-do-reino, principalmente. Ele tem uma fonte de água doce desejável e um riacho para regar suas plantações. Mas o desmatamento para abrir espaço para as enormes fazendas de soja mudou não apenas a paisagem, mas o clima. Agora, às vezes, o riacho seca.

“Quando cheguei aqui, o clima era muito diferente. Havia tanta floresta”, disse ele. “As motosserras comeram tudo.” Agora a chuva mal chega e, quando chega, as tempestades são tão violentas que o assustam (nt.: quem quiser conhecer como foi essa ‘invasão’ patrocinada pela ditadura militar, acessar à série de documentários, feitos pelo falecido produtor inglês, Adrian Cowel, da rede de tevê ITV, denominada ‘Década da Destruição’). 

A ciência apóia o que Cohen está experimentando em primeira mão. Com mais florestas derrubadas para soja e gado, as secas estão piorando na Amazônia; as chuvas estão se tornando mais erráticas e intensas.

O boom da soja no Brasil transformou o país no maior produtor mundial de soja, ultrapassando os Estados Unidos. Nesse processo, os produtores de soja engoliram grandes áreas da Amazônia. Um acordo assinado em 2006 pelos principais comerciantes de grãos para parar de comprar soja de terras recentemente desmatadas teve sucesso na redução do desmatamento na Amazônia. Mas os críticos dizem que isso empurrou a produção de soja para o Cerrado, um bioma de savana que é extremamente importante para a estabilização do clima, mas recebe menos atenção do que seu vizinho selvagem. Quase metade do Cerrado foi destruída, grande parte para soja e a maior parte ilegalmente .

A maior parte da soja brasileira vai para a China – mais de US $ 20 bilhões em vendas por ano – como ração animal para a indústria de suínos em constante expansão naquele país, vendida aos chineses por empresas americanas, incluindo Bunge, ADM e Cargill, a maior empresa privada nos Estados Unidos.

Uma lavoura de soja no estado de Mato Grosso. Crédito: Larry C. Price

Ao longo da “Rodovia da Soja” no Estado de Mato Grosso, Brasil.

Há um padrão na Amazônia: os madeireiros vêm primeiro, geralmente seguidos pelos mineiros que usam as incursões que os madeireiros fizeram na selva. Em seguida, os fazendeiros se mudam e criam pastos onde as árvores ficavam, e os fazendeiros plantam soja e milho nessas pastagens. Mais recentemente, a demanda por soja tornou-se tão grande que partes da Amazônia e do Cerrado estão sendo convertidas diretamente em soja. 

“Era uma floresta linda e densa cinco anos atrás. Nesta área não havia fazendas gigantes”, disse Iza Maria Castro Dos Santos do Povo Tapuia, uma ativista indígena que vive em Santarém. “Hoje existem tratores gigantes. Antes eram as motosserras. O que eles costumavam derrubar em um dia, eles podem fazer em uma hora. ”

Uma porta-voz da ADM disse que a empresa não adquire seus produtos de nenhuma área recém-desmatada na Amazônia. Uma porta-voz da Cargill disse que a empresa está empenhada em eliminar o desmatamento de suas cadeias de abastecimento “no menor tempo possível” e que “não se abastecerá de agricultores que desmatam ilegalmente ou em áreas protegidas”. A empresa tem “as mesmas expectativas de nossos fornecedores”, disse ela. A Bunge não respondeu aos pedidos de comentários para este artigo, mas afirmou em declarações anteriores que eliminará o desmatamento de sua cadeia produtiva até 2025.

A pressão só vai aumentar, dizem os especialistas. A produção de soja em todo o Brasil deve crescer ainda mais nos próximos anos, com a abertura de novas “fronteiras agrícolas”, especialmente no norte do país. Existem planos em andamento para mais portos ao longo de mais rios e uma nova ferrovia para transportar grãos para os cursos de água.

Isso significa mais floresta virgem e savana convertida em terras agrícolas e mais proprietários de terras em pequena escala na mira de uma indústria em expansão.

Os caminhões que transportam madeira cortada legalmente devem ter etiquetas de licença visíveis nas extremidades das toras. O motorista deste caminhão, na Transgarimpeira, próximo a Itaituba, confirmou que seu carregamento de madeiras de lei é ilegal e sem as etiquetas exigidas. Crédito: Larry C. Price

Santarém, perto da confluência dos rios Tapajós e Amazonas, fica no final da BR 163 – a chamada Rodovia da Soja – que corre 3.500 quilômetros ao norte através do Cerrado e da bacia amazônica. Durante a estação seca, de maio a outubro, um comboio de caminhões com reboques articulados de 30 metros de comprimento, transporta grãos para o norte ao longo de sua superfície irregular e profundamente esburacada. Eles passam por cidades fronteiriças que se formaram ao longo desta artéria, com seus hotéis diaristas, concessionárias de motosserras e matadouros, entre eles um panorama implacável de campos de soja, com silos com elevadores de grãos apontando para o céu como um gigante de lata do conto do Mágico de Oz. 

A estrada para na beira do Tapajós, onde um terminal de grãos imponente construído pela Cargill transporta soja para o resto do mundo. Os turistas caminham ao longo do calçadão do rio à noite, comendo sorvete, com as luzes do terminal da instalação, em forma de montanha-russa, da Cargill piscando ao longe. Se não fosse a Amazônia, você poderia confundi-la com um parque de diversões à beira-mar. 

Amanhecer no porto de Santarém e no terminal da Cargill por onde sai a soja. Crédito: Larry C. Price

Mas a instalação não é um lugar popular para alguns. A Cargill a construiu em uma praia pública, perto de um sítio arqueológico indígena importante, dizem os críticos, que levaram a empresa à justiça e perderam.

“É como um monstro ali”, disse Tapuia, que fez parte do esforço para inviabilizar o plano do terminal da Cargill.

Esse monstro ajudou a tornar Santarém um lugar próspero, com escolas, hospitais e infraestrutura – um lugar onde um velho como Cohen pode estar mais seguro do que sozinho em uma ilha de árvores cercada por campos de soja. A filha quer que o pai se mude para a cidade, longe das pressões da selva.

Ele não vai.

“Não há como alguém tocar na minha floresta”, disse ele. “Quero construir uma casa sob a mangueira e morar lá para sempre em meu lar eterno. Ninguém nunca vai comprar esta terra. Vou assustá-los como um fantasma perdido. ”

Terminal da Cargill em Santarém. Crédito: Larry C. Price

‘É um Ecocídio’

O chefe Suruí, líder da tribo Paiter-Suruí, emerge de sua casa de concreto em uma manhã de sol estrondosa e se senta em um banco sob o telhado de palha de palmeira da sala de estar cerimonial de sua tribo.

Ele está segurando uma cesta de larvas de um inseto que popularmente se chama gongo (nt.; larva da família de um besouro ‘Pachymerus nucleorum‘ que se alimentam de palmeiras), que enfia na boca como amendoim. Damon, o cachorrinho branco que o segue por toda parte, senta-se aos pés do chefe.

Suruí é famoso, no Brasil e fora dele, por seu ativismo político, e considerado um herói por seu povo por apelar aos líderes do governo para o apoio que ajudou a sobrevivência da tribo. Ele muitas vezes é afetado pelas exigências de seu cargo – um dia falando às Nações Unidas em Nova York, no outro vivendo uma vida modesta em sua vila de casas de telhado de zinco, cerca de 1.200 quilômetros ao sul de Manaus, no estado de Rondônia . 

O cacique Almir Narayamoga Suruí, junto com outro proeminente líder indígena Txucarramãe/Kaiapó, Raoni Metuktire, pediram ao Tribunal Penal Internacional em janeiro que investigasse o presidente Jair Bolsonaro por cometer crimes contra a humanidade. Crédito: Larry C. Price

Suruí se conectou com uma equipe de advogados sediados em Paris no ano passado para registrar a queixa contra Bolsonaro porque, disse ele, acredita que o presidente colocou seus aliados em posições de poder, permitindo-lhes administrar agências que esmagaram os direitos indígenas e enfraqueceram as proteções ambientais . 

“O governo tem um papel importante para garantir o futuro”, afirmou. “Se o governo não aceitar esse dever, é um ecocídio”.

Suruí não está apenas zangado com Bolsonaro que, segundo ele, abriu as portas para mais agronegócios, mineração e extração de madeira em terras públicas e indígenas. Ele também está zangado com as corporações que estão se aproveitando da leniência de Bolsonaro e financiando grupos de lobby que estão promovendo leis para desmantelar as proteções indígenas e ambientais.

“Coisas ilegais acontecem porque há um grande mercado. O negócio dá lucro na hora”, disse Suruí. “As pessoas não pensam nas consequências.”

Os Paiter-Suruí vivem em aldeias comunais em meio a milhares de hectares de floresta tropical, mas estão sob pressão do agronegócio, pecuaristas, madeireiros e fazendeiros para arrendar ou vender os direitos de suas terras nativas. Crédito: Larry C. Price

Ele disse que espera que o tribunal internacional, ao tornar o ecocídio um crime, possa intervir, mas sabe que o tribunal avança lentamente.

“Sei que vai demorar muito e não tenho muita esperança”, disse ele. “Mas sei que com este processo o mundo vai aprender o quanto estamos infelizes com a política brasileira.”

Caminhando pela floresta tropical ao redor da aldeia, ele aponta uma enorme área de floresta que foi queimada por madeireiros em 2019, em retaliação à resistência da tribo à invasão. Agora crescem café, mandioca, cupuaçu e cacau. 

“É possível produzir com responsabilidade”, disse ele. “Não precisamos desmatar nem mais um centímetro da Amazônia.”

Mauí Suruí pratica com seu arco e flecha durante uma caminhada na floresta tropical fora da aldeia de sua tribo no território Sete de Setembro. Crédito: Larry C. Price

‘O sonho de todos os mineiros’ 

Odacir “Gringo” Leseux (nt.: gaúcho, nascido em Rodeio Bonito no Rio Grande do Sul, em 1962) foi preso três vezes por minerar ilegalmente na floresta amazônica. 

“Eles me pegaram com diamantes em minhas mãos. Os federais me pegaram em minha casa”, disse ele, com naturalidade. “Mas esse era o meu trabalho. Eu poderia alimentar minha família. Eu comprei aquela casa.”

Com chapéu de aba de camurça, camisa pólo e shorts jeans, Leseux parece alguém que costumava apostar em galgos em uma pista de corrida em Miami. Como quem depende de um pouco de sorte.

“A mineração é uma ilusão”, disse ele. “Você só faz moedas, mas fala de milhões. Esse é o sonho de todos os mineiros. É tudo uma questão de sonhos. ”

Leseux está viajando por uma estrada chamada Transgarimpeira, ou “Transminadores”, que se estende a oeste da BR 163, a cerca de 20 horas de carro a nordeste do território Suruí. É um terreno familiar para ele: Faz garimpos aqui há anos e guarda algumas de suas coisas em um dormitório próximo a Boa Esperança, um dos assentamentos mineiros ao longo do caminho.

Como milhares de mineiros de pequena escala – conhecidos como mineradores selvagens ou garimpeiros – ele não tem planos de parar de procurar joias na floresta tropical. 

Fabrizio Schwingle, dono de um restaurante da cidade de Cuiabá, várias centenas de quilômetros ao sul, está procurando ouro perto de Boa Esperança, onde passa a maior parte do ano morando sob uma lona em um acampamento improvisado na selva. Um gerador zumbe na orla da floresta, operando uma máquina de escoamento que se parece com uma hélice Steampunk. Galinhas bicam em meio ao lixo e garrafas de plástico vazias que cobrem o chão da floresta. Uma galinha deixou seus ovos ao lado de um gerador que morreu há meses.

Odacir “Gringo” Leseux. Crédito: Larry C. Price

O mineiro José Nascimento coleta suas ferramentas na operação de mineração de ouro Boa Esperança, nas profundezas da selva do estado do Pará, cerca de 300 quilômetros ao sul de Itaituba. Crédito: Larry C. Price

“Tenho uma churrascaria em Cuiabá”, disse Schwingle, com o suor escorrendo do rosto. “Mas ouro é um vício.” 

Esse vício é possibilitado pelo crescimento da demanda global e pela alta dos preços do ouro.

Nos últimos anos, a corrida do ouro na Amazônia levou a mais incursões em terras tribais e mais destruição da floresta tropical. Um estudo recente descobriu que cerca de 30 por cento do ouro extraído no Brasil é extraído ilegalmente e, do início de 2019 ao final de 2020, novas áreas de mineração destruíram mais de 200 quilômetros quadrados de floresta. Um projeto de lei apresentado por Bolsonaro permitiria mais mineração em terras indígenas e, se for aprovado no congresso brasileiro, os pesquisadores estimam que o desmatamento pode aumentar outros 20 por cento.

“O pai de Bolsonaro era um mineiro selvagem”, disse Raoni Rajão, pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais e coautor do estudo. “Ele tem a percepção de que os mineiros selvagens são empreendedores e heróis.”

A mineração não gera os mesmos altos níveis de desmatamento que a soja ou o gado, observou Rajão, mas envenena a água (nt.: com o mercúrio) e está levando a conflitos crescentes com tribos indígenas. “Você tem violência. O sofrimento da população indígena”, afirmou. “Essa é a questão mais preocupante.”

A Transgarimpeira passa por aglomerados de assentamentos conhecidos como currutela (nt.: espaços do baixo mundo com prostíbulos e bares) e pequenas cidades que se parecem com “Deadwoods” (nt.: cidade que exitiu nos EUA na época do ‘Far West’) da Amazônia. Têm nomes que prometem fortuna, como Jardim do Ouro e oferecem todas as distrações e necessidades habituais: pensões, bares com mesas de sinuca, igrejas e “besouros negros” – um quarto, bordéis improvisados ​​embrulhados em folha de plástico preta. As prostitutas são pagas em ouro.

“Conheço uma senhora que vendeu a casa em Manaus e passa 20 dias em uma currutela, depois na outra”, disse Leseux.

O mineiro Wellison Cruz extrai minério na área de mineração de ouro de Boa Esperança. Crédito: Larry C. Price

Acima de sua mina a céu aberto em Boa Esperança, José Nascimento, que explora a Amazônia há décadas, caminha ao longo de um aterro alto de terra, olhando para baixo para dois jovens funcionários que lançam jatos de água de alta pressão em encostas de terra. A água vai para um cocho e é empurrada pela pressão da água para uma rampa, onde os sólidos caem em um sistema de captação rústico. Mais tarde, usando mercúrio e um pano, Nascimento vai espremer esses sólidos, extraindo pequenas quantidades de ouro e mercúrio. Em uma semana muito boa, ele vai acabar com cerca de 200 gramas de ouro.

“Quando produzimos ouro, fico muito feliz”, disse ele, erguendo os olhos da aba de um boné de beisebol com as palavras “Amazon Gold”. “Às vezes eu trabalho um ou dois anos – nada. Então bum! ”

Nascimento está otimista com o futuro. “Ainda tenho floresta virgem lá”, disse ele, apontando para o pedaço de floresta tropical que ele arranjou com o proprietário para derrubar e minerar. “Essa área? É tudo ouro.”

Questionado se ele teme que a mineração esteja destruindo a floresta tropical, ele ignora. “Meu impacto é baixo em comparação com a riqueza que produzo”, disse ele. “Você sabe o quanto um fazendeiro destrói? Dois mil hectares. ”

“Isso será muito diferente”, disse ele, porque as árvores voltarão a crescer.

Seu colega mineiro, Leseux, foi fazendeiro por um tempo, mas foi atraído para o ouro e os diamantes no final dos anos 1980. Às vezes, ele deseja ter ficado com a agricultura, disse Leseux.

“Eu estava no Mato Grosso, plantando soja e arroz. Vim visitar uma mina em Juína e nunca mais saí ”, disse, referindo-se a uma cidade desse estado. “Eu sei que se eu nunca tivesse deixado grãos, eu seria um homem rico hoje.”

Mas a emoção da mineração ilícita agora está em seu sangue. Em breve, ele partirá para o estado de Roraima, mais ao norte. Ele ouviu rumores de grandes ganhos lá.

“É uma grande adrenalina”, disse ele. “O tempo todo você está fugindo da polícia. Mas então você vai bem longe na floresta e está livre. ”

Odacir “Gringo” Leseux, à esquerda, trabalha com um mineiro na mineração de ouro Boa Esperança. A folha de metal contém uma lama de mercúrio e ouro que será processada para liberar ouro puro. Crédito: Larry C. Price

Um Território Sob Ameaça

Em uma manhã nublada de outubro, o chefe Juarez Munduruku se reuniu com sua família em uma mesa em sua casa de palha. Um de seus netos deu biscoitos a um papagaio verde. Um mico olhou para baixo de uma torre de água. Uma arara voou em círculos ao redor da vila, chamada Sawré Muybu, que fica a cerca de 400 quilômetros ao sul de Santarém. 

O chefe parecia preocupado.

Por meio de um canal no YouTube que as tribos amazônicas assinam para obter informações sobre desdobramentos e acontecimentos políticos em terras indígenas, o cacique soube que membros de outra tribo, os Kaingang, foram mortos em um território ao sul. As mortes, disse ele, resultaram de um desentendimento entre os membros Kaingang sobre o arrendamento de algumas de suas terras para produtores de soja. A demanda por novas terras para o cultivo de soja tornou-se tão grande que o agronegócio está buscando se expandir para territórios indígenas, criando conflitos dentro de algumas tribos sobre a permissão do arrendamento e distribuição dos rendimentos.

Cacique Juarez Munduruku na aldeia indígena Munduruku de Sawré Muybu, cerca de 400 quilômetros ao sul de Santarém, ao longo do rio Tapajós, no estado do Pará. Crédito: Larry C. Price

O cacique atribui essas tensões crescentes diretamente a Bolsonaro, que deixou claro que o desenvolvimento da Amazônia anda de mãos dadas com a remoção da proteção das terras indígenas. 

“O arrendamento de terras é algo que tem origem no governo”, diz ele. “Mais cedo ou mais tarde será problemático. Isso vai dividir as tribos. A divisão não é boa. ”

Questionado se sua própria tribo está de acordo sobre permitir o desenvolvimento em suas terras, ele hesita por um momento: “Acho que sim”.

A Amazônia é o lar de mais de 400 grupos indígenas, 80 dos quais são “isolados” e vivem em isolamento voluntário do mundo moderno. Mas a tribo Munduruku, como os Paiter-Suruí e outros, vive uma espécie de vida hibridizada, próxima da natureza e da floresta tropical, mas entrelaçada com uma economia moderna. 

RoseAnnie Munduruku em sua cozinha em Sawré Muybu. Munduruku viajou recentemente à capital brasileira para protestar contra as posições do presidente Jair Bolsonaro sobre terras indígenas. Crédito: Larry C. Price

Em Sawré Muybu, uma garotinha segura um filhote de macaco de uma espécie rara, órfão de sua mãe. Crédito: Larry C. Price

As pressões do mundo exterior significaram que eles foram forçados a se envolver com ela para defender suas terras e direitos. Como o chefe Suruí, os Munduruku se tornaram uma força política proeminente, atraída para o ativismo por causa das incursões ilegais nas terras de sua tribo. 

Em Sawré Muybu, RoseAnnie Munduruku mora com seus quatro filhos e neto em uma casa modesta, onde redes balançam sobre o concreto e o chão de terra e uma televisão exibe desenhos animados sem som. Ela é conhecida como a cozinheira da aldeia, capaz de transformar habilmente os peixes locais, incluindo a piranha, em pratos noturnos.

Seus filhos vão para a escola da aldeia, alojada em uma cabana com telhado enferrujado, onde os alunos desenharam lições e personagens nas paredes. Alguns deles são grafites pró-indígenas, transmitindo a raiva que irritou esta e outras comunidades indígenas desde que Bolsonaro assumiu o cargo.

Crianças que frequentam a escola em Sawré Muybu, onde um parente do guaxinim, um quati, passeia pela sala de aula. Crédito: Larry C. Price

Ao longo do inverno brasileiro e verão no hmisfério norte, uma onda sem precedentes de protestos indígenas varreu o país, principalmente no “Eixo Monumental” de Brasília – parecido ao National Mall em Washington, DC – onde milhares de pessoas marcharam contra as propostas do Bolsonaro ou apoiadas por indústrias aliadas com o presidente.

RoseAnnie Munduruku raramente sai da aldeia, mas em agosto passado, ela viajou de ônibus – dois dias e duas noites – para participar de um protesto em Brasília contra uma das propostas de Bolsonaro que enfraqueceria os direitos indígenas às suas terras.

“O que eu faço de melhor é cozinhar”, disse a avó de 48 anos, desafiadora, enquanto pegava os pratos da mesa de jantar. “Eu não estava lá para cozinhar.”

RoseAnnie Munduruku prepara espécies nativas de peixes da Amazônia, incluindo piranhas, enquanto segura sua neta de 4 meses. Munduruku mora com seus quatro filhos e um neto em uma casa modesta em Sawré Muybu. Crédito: Larry C. Price

Um trabalho arriscado

Em uma parede dentro dos escritórios de um grupo de defesa dos direitos indígenas chamado Kanindé, está uma imagem gigante: uma foto em preto e branco de uma menina de 4 anos usando um cocar de penas, seu rosto sorridente voltado para o sol.

Vinte anos depois que a foto dela foi tirada, Txai Suruí está sentada na sala onde ela está pendurada, digitando em seu laptop. Membro da tribo Paiter-Suruí, ela agora é uma defensora do clima e dos direitos indígenas, integrante de uma ressurgência de jovens ativistas na Amazônia.

“Se você olhar um mapa, você vê onde há floresta é onde estão os indígenas”, disse Suruí. “O resto está destruído.” 

Ser ativista é um trabalho arriscado no Brasil. Um relatório recente descobriu que 20 ativistas indígenas e ambientais foram mortos aqui no ano passado. Os funcionários da Kaninde estão bem cientes disso. O modesto escritório está equipado com câmeras de segurança e protegido por barras de metal.

Ativista Txai Suruí no escritório da Kanindé em Porto Velho, capital do estado de Rondônia. Crédito: Larry C. Price

Ivaneide Bandeira, que é chefe de Suruí e fundadora do grupo em 1991, disse que recebe ameaças de pessoas que acredita estarem ligadas a políticos locais e grupos da indústria. “Não posso sair sozinha”, disse ela.

Em outubro, Suruí viajou a Glasgow para a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, conhecida como COP26. Lá ela se encontrou com líderes globais, falou em um painel sobre o papel da juventude indígena no enfrentamento da crise climática e marchou na rua com uma placa que dizia “Pare o Bolsonaro para o Futuro do Planeta”.  

A presença de grupos indígenas amazônicos nas negociações sobre o clima não é nova, mas as pesquisas por trás de seu papel na prevenção da crise climática estão crescendo. Nas semanas que antecederam a COP26, grupos de defesa divulgaram um novo relatório dizendo que os povos indígenas não eram apenas os melhores administradores da conservação florestal – como a pesquisa mostrou antes – mas que essa administração se traduziu em quantidades significativas e específicas de armazenamento de carbono.

Ivaneide Bandeira, fundadora da Kanindé, em seu escritório em Porto Velho. A imagem dela é a do Txai Suruí aos 4 anos. Crédito: Larry C. Price

Um estudo descobriu que as terras indígenas e o território da comunidade contêm cerca de 250 bilhões de toneladas métricas de carbono em 24 países tropicais, mas também observou que essas comunidades só têm direitos legais sobre menos da metade dessa área. Isso, dizem os autores, enfraquece a capacidade das comunidades indígenas de proteger a terra e o carbono armazenado em suas florestas e solos.

Outro estudo descobriu que as comunidades indígenas em 64 países armazenaram mais de 290.000 milhões de toneladas métricas de carbono, cerca de 33 vezes as emissões globais de energia em 2017. Na Amazônia, um estudo mais recente descobriu que 94 por cento das terras indígenas eram sumidouros de carbono em comparação com as não Terras indígenas na Amazônia, que eram emissoras líquidas de carbono. 

“As comunidades dessas florestas estão completamente conectadas com a natureza”, disse ela. “Eles são a solução.”

Rubecleia Munduruku, 15, caminhando com sua filha de 4 meses para a casa de sua mãe em Sawré Muybu. Crédito: Larry C. Price

‘Eles mentem’  

O cacique Munduruku desce o rio Tapajós em um jon boat, através do vale em que seus ancestrais viveram por centenas de anos. Um feixe de facões repousa na proa do barco. O chefe, sua esposa e alguns parentes estão sentados no banco de trás, tomando café em uma garrafa térmica.

De vez em quando, fazem passeios como esse, para verificar as terras da tribo, que ocupam milhares de hectares de cada lado do rio, importante afluente do Amazonas.  

Nos últimos 10 anos ou mais, mais mineiros e madeireiros entraram sorrateiramente, montando acampamentos e cavando em busca de ouro ou pedras preciosas, ou vindo com motosserras, pegando uma árvore de mogno aqui, uma árvore ipê ali, comendo a floresta tropical como cupins. O rio, não poluído há sete ou oito anos, agora está cheio de lodo, agitado por barcaças que dragam o fundo do rio em busca de ouro. A água tem a sensação e a aparência de chá com leite.

O cacique Juarez Munduruku testa seu arco depois de amarrar a arma enquanto descia o rio Tapajós em direção a sua confluência com o rio Jamanxim para verificar relatos de corte ilegal de madeira em suas terras tribais. À esquerda está Paca Munduruku, um jovem líder tribal em ascensão. Crédito: Larry C. Price

A terra é tão vasta e com vegetação densa que o povo Munduruku não tem olhos suficientes para patrulhá-la. As agências governamentais também não têm os corpos – ou a vontade – e, sob o Bolsonaro, o monitoramento se tornou ainda mais anêmico.

“A destruição – sabemos que está acontecendo em todos os lugares”, disse o chefe, antes da excursão. “O desmatamento vem de um lado, o fogo do outro.”

O barco chega à beira do rio. Um homem se aproxima, explicando que ele é um cristão evangélico e está ali para pegar suprimentos em um acampamento a cerca de 50 quilômetros de distância. Ele pede desculpas ao chefe por estar em suas terras. Mais tarde, o grupo vê o conteúdo da caminhonete do homem: uma motosserra, óleo de motor, diesel e sal, usados ​​para conservar alimentos durante longas estadias na selva. Na base de algumas árvores próximas há uma pilha de palmitos – colhidos ilegalmente. 

O chefe é um homem de boas maneiras, com cabelo grisalho cortado rente que sugere negócios. Quando ele ri, o que faz com facilidade, um leque de rugas se espalha pelo canto dos olhos. Mas, à medida que seu barco se afasta do cais, seu rosto normalmente plácido fica turvo. Ele morde um palito de pena de arara e se contrai com raiva. 

“Eles estão roubando”, disse ele. 

Nos últimos dois anos, o chefe e seus colegas líderes tribais encontraram escavadeiras e caminhões em pontos ao longo do rio. Os intrusos estavam claramente invadindo as terras tribais, mas o chefe simplesmente pediu que eles fossem embora. Na próxima vez que os encontrar, disse ele, vai colocar fogo em seus equipamentos.

“Eles dizem coisas. Eles dizem que não vão voltar ”, disse o chefe Munduruku. “Eles mentem.”

O chefe Juarez Munduruku inspeciona palmitos cortados ilegalmente empilhados ao longo das margens do Rio Jamanxim. Cada bastão representa a destruição de uma palmeira madura (nt.: o palmito é o tecido meristemático tenro e branco que serão as futuras folhas fibrosas e verdes para a produção de fotossíntese). A colheita foi encontrada empilhada ordenadamente esperando para ser recolhida por madeireiros ilegais. Crédito: Larry C. Price

Uma das queixas apresentadas ao tribunal internacional diz que houve 41 incursões recentes em terras Munduruku, que foram “sujeitas a um aumento evidente de violações por mineiros selvagens, coletores de palmito e madeireiros, incentivados pelo Presidente Jair Bolsonaro.” A denúncia também indica que a sede de uma associação de mulheres Munduruku foi incendiada no início deste ano. 

Os Munduruku ainda aguardam a demarcação formal dos limites de seu território, o que conferiria maior proteção às suas terras. Quando iniciaram o processo de demarcação há sete anos, o cacique e outros integrantes da tribo passaram a receber ameaças de garimpeiros e madeireiros aliados de políticos locais.

“Vindos da vila, cinco caras vieram me procurar”, lembra o Chefe Munduruku. “Os caras chegaram muito perto de mim. Um se virou quando eles estavam saindo e tirou uma foto. Seu comportamento era de assassinos. Eu tomei isso como uma ameaça. Não dormi depois disso.”

Ele disse ter sido seguido em Itaituba, a cidade grande mais próxima, e durante o desembarque em Burbure, de onde saem os barcos com destino a Sawré Muybu. 

Lá, barcaças de ouro ficam à beira do rio, esperando por reparos em meio a abutres e lixo, enquanto a música techno ecoa na selva de um bar próximo. Os mineiros em Burbure encaram os Munduruku, que sempre viajam com pelo menos dois outros membros da tribo por segurança.

“Se eu estivesse com medo, não poderia estar nessa luta”, disse o chefe. “Estou lutando pelo que é meu. Não estamos tentando roubar.”

Munduruku foi nomeado chefe em 1999 e agora está na casa dos 60 anos. Ele é pai de oito filhos; e avô de 22. Como Suruí, ele passa a maior parte do tempo viajando, apelando para líderes corporativos e governamentais no Brasil e em outros lugares para impedir a destruição da faixa de floresta tropical de sua tribo.  

“Tenho muita saudade da minha família. Meus netos”, disse ele, falando sobre suas viagens. “Os sons dos bugios pela manhã, os pássaros. Sinto muita saudade de meu povo. A vida selvagem que cerca a tribo – antas, porcos, paca. Vemos coisas que nem sabemos o que são. Tudo isso é a Amazônia para mim.”

Os madeireiros ou mineiros que cortam a floresta, seja derrubando-a no atacado ou algumas árvores de cada vez, e os fazendeiros que a “limpam” com chamas, muitas vezes insistem que as árvores voltarão a crescer. Bolsonaro apresenta o mesmo argumento: a floresta é renovável e vai se recuperar do que seu governo chama de “utilização econômica”.

Mas a ciência diz o contrário. As imponentes madeiras nobres – mogno, ipê e sumaúma – levarão séculos para atingir sua altura máxima. Um metro quadrado de floresta tropical pode conter sete ou oito espécies de árvores, milhões de micróbios, incontáveis ​​espécies de insetos e animais que dependem de uma rede de interações com a vegetação, chuva e solo que evoluiu ao longo de milhões de anos.

É infinitamente complexo e interconectado.

“Se for desmatada, a floresta voltará a crescer”, disse o cacique. “Mas não como era.”

Uma faixa de floresta tropical cortada e queimada em Lino do Vale, no estado do Pará. Crédito: Larry C. Price

O jornalista Scott Wallace atuou como consultor neste projeto.

Georgina Gustin

Repórter, Washington, DC

Georgina Gustin cobre agricultura para o Inside Climate News e tem relatado sobre as interseções entre agricultura, sistemas alimentares e meio ambiente durante grande parte de sua carreira de jornalista. Seu trabalho ganhou vários prêmios, incluindo o Prêmio John B. Oakes de Jornalismo Ambiental Distinto e o Jornalista Agrícola Glenn Cunningham do Ano, que ela compartilhou com colegas do Inside Climate News. Ela trabalhou como repórter para o The Day em New London, Connecticut, o St. Louis Post-Dispatch e CQ Roll Call, e suas histórias foram publicadas no The New York Times, no Washington Post e no National Geographic’s The Plate, entre outros. Ela é formada pela Escola de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade de Columbia e pela Universidade do Colorado em Boulder.

Este artigo é parte de uma série produzida em parceria com a NBC News e a  Undark Magazine, uma revista digital editorialmente independente e sem fins lucrativos que explora a interseção da ciência com a sociedade.

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, janeiro de 2022.