“Por que quem invade terras indígenas não é tratado como terrorista?”

Imagem do contraste agronegócio e Reserva do Xingu. Foto ISA.

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Este foi o grande questionamento de Sônia Guajajara em evento do MPF, em Brasília.

25/01/2019

Com o objetivo de empreender o diálogo com o governo acerca da garantia dos direitos constitucionais indígenas, nesta quarta-feira (23) o Ministério Público Federal (MPF) realizou o evento “Diálogo: Perspectivas dos Direitos Constitucionais Indígenas” na sede da Procuradoria-Geral da República, em Brasília. Com a presença de lideranças indígenas, embaixadores e diplomatas – da Alemanha, Luxemburgo, Reuni Unido, Canadá, Suíça, Países Baixos, Suécia, Bélgica, Dinamarca, Noruega e União Europeia –, procuradores da República, Ministros e demais representantes do governo de Jair Bolsonaro, o diálogo levantou inúmeros questionamentos e uma diversidade de contradições.

“Não pode haver retrocesso em políticas públicas no novo governo”

A Procuradora-Geral da República, Raquel Dodge, diz ser dever do Estado fomentar e garantir os direitos constitucionais dos povos e comunidades indígenas ao afirmar que “não pode haver retrocesso em políticas públicas no novo governo”. Seguido de um alerta, “há muitas normas da Constituição de 1988 que ainda não foram cumpridas”, uma delas é o “mandamento constitucional de que, até o ano de 1993, todas as terras indígenas estivessem demarcadas. […] É um dever constitucional imposto ao Poder Executivo que não foi cumprido. E mais uma vez, diante de um novo governo, a pergunta é refeita: quando as demarcações estarão concluídas para que haja, como a Constituição assegura, o usufruto exclusivo dos povos indígenas estar na terra?”.

Conforme a Ministra de Estado da Mulher, Família e (MDH), Damares Alves, “fica garantido a todos vocês: o diálogo está aberto. O governo Bolsonaro veio buscando diálogo. Acho que nos primeiros dias isso ficou bem demonstrado”. No entanto, não se pode esquecer que ainda no dia 1º de janeiro de 2019, logo após sua posse, Bolsonaro, editou a Medida Provisória (MP) 870/2019, que transfere a Fundação Nacional do Índio (Funai) para o MDH. Antes, o órgão encontrava-se no Ministério da Justiça (MJ).

Além de retirar da Funai algumas de suas principais atribuições, como a identificação e delimitação de terras indígenas e a emissão de licenças ambientais para empreendimentos, tais atribuições foram transferidas para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa). A ministra disse ainda que não falaria naquele momento sobre políticas indigenistas e saiu sem falar com a imprensa ou responder aos questionamentos da plenária.

“Sabemos que o Ministério da Agricultura é afetado sim pelos interesses do agronegócio e contrário aos povos indígenas”.

Neste contexto Luiz Eloy Amado, indígena do Povo Terena e integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), explica que “uma das grandes preocupações é a demarcação e proteção dos territórios e povos indígenas, a Constituição já prevê isso como direito, mas é preciso que o Estado de fato garanta estes direitos já estabelecidos”.

Ele também questiona a retirada da Funai do Ministério da Justiça, o que põe em risco os territórios. “Nós sabemos que o Ministério da Agricultura é afetado sim pelos interesses do agronegócio, que é um dos contrários aos povos indígenas”. Eloy ainda aponta com preocupação a necessidade de garantir os índices de desenvolvimento dos territórios, mas na “perspectivas do povo indígena, que não é a mesma dos brancos”, aponta o advogado Terena.

A Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, aponta a responsabilidade que é trabalhar com a vida das pessoas, pois um ato falho pode causar muito sofrimento. “Não existe no Brasil, na América e no mundo algum movimento que luta mais por direitos do que os povos indígenas. Foram eles que pressionaram o Brasil, a América e o mundo a compreender que a violência de um ato de conquista e invasão do território, escraviza corpos, impede o exercício de direitos culturais, o exercício da língua e impede a vida”, aponta a procuradora. Ela ainda destacou a diversidade das expressões culturais dos povos, “são muito diferentes entre si e fizeram escolhas diferentes ao longo da história e o grande desafio é este, ouvir”.

“Excesso de demarcações”

Na mesa de “Política Indigenista Brasileira e Desenvolvimento Sustentável”, o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, ousou afirmar que há “excesso de demarcações” de terras indígenas e unidades de conservação ambiental, seguida de críticas à política de demarcação. Segundo ele, o tamanho das terras prejudica a fiscalização. “Em casos de excessos de demarcações, nós também fragilizamos aquelas que poderiam ter mais foco e mais substância. Toda vez que o conceito é excessivamente aumentado, nós temos uma fragilidade no cerne das questões”, afirma o ministro.

“Há ‘excesso de demarcações’ de terras indígenas e unidades de conservação ambiental”

De pronto a afirmação foi rebatida pelo indígena Fulni-ô, Wilke Torres de Melo. “O momento eleitoral já passou, para tanto é necessário que seja assumido à causa indígena e ambiental. As terras que se encontram na Amazônia Legal são terras que precisam ser conservadas. Ministro, isso não passa por uma questão de ideologia, isso passa por compromisso com as políticas pública e ambiental do país”.

Outro fator que o Estado brasileiro precisa considerar é que os povos indígenas não são contra o desenvolvimento, mas são contra a forma pela qual é imposto. Os povos no Brasil viveram formas distintas de contato, portanto, um único território não pode ser levado como parâmetro para a criação de uma política pública indigenista. Se formos pensar, a forma de mundo dos povos é diferente na concepção de tempo, na relação com a natureza, com os encantados e isso precisa ser respeitado. “Para fazer essa afirmação é preciso entender que essas terras pertencem à União e estão em usufruto dos indígenas e a grande maioria delas está na floresta amazônica legal, mas fora dela há muito mais terras não demarcadas”, aponta Wilke que faz parte da Apib.

“Ministro, isso não passa por uma questão de ideologia, isso passa por compromisso com as políticas pública e ambiental do país”

Nesta mesma perspectiva, Luciano Maia, Vice-Procurador-Geral da República afirma que “demarcar terra indígena significa proteger os bens da União, não demarcar significar corromper o direito dos índios e degradar o meio ambiente. Nossa floresta Amazônica, não é obra do acaso, ela é obra de intervenção dos povos da floresta, é obra dos povos indígenas que fazem sua preservação e manutenção, garantindo não apenas as árvores e terra, mas também os rios aéreos”. Os índios são os sujeitos que mais conhecem, defendem e protegem a terra, o conhecimento, o meio ambiente e vida, finaliza Maia.

“Demarcar TI significa proteger os bens da União, não demarcar significar corromper o direito dos índios e degradar o meio ambiente”

O diálogo organizado pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão (6ª CCR) buscou debater ainda a política indigenista do Governo Federal. Sandra Terena, Secretária Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, foi encarregada pela ministra Damares Alves, que diz amar demasiadamente os povos indígenas, para apresentar a nova estruturação do Ministério. Segundo sua exposição, a tarefa de demarcação das terras indígenas deverá passar ao Incra, vinculado ao Ministério da Agricultura, contudo, o processo só terá início após a aprovação prévia de um Conselho Interministerial, sem a participação de nenhuma organização não-governamental e muito menos, de indígenas.

“deixe o índio ser índio e pronto”

Num evento cheio de contradições, o presidente do Cimi (Conselho Indigenistas Missionário), Dom Roque Paloschi, iniciou sua fala contando uma história sobre a cobertura de um jornalista da Radiobrás (Empresa Brasileira de Comunicação) na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, que em resumo afirma “deixe o índio ser índio e pronto”. Dom Roque destaca ainda a preocupação com os povos indígenas, mais que isso, com a constituição de uma política indigenista. “O Papa Francisco, quando faz um chamado para o cuidado da Casa Comum, ele chama a atenção para o conjunto da vida, se o desaparecimento de uma espécie já é grave, ainda mais grave é o desaparecimento de um povo, e isso não pode mais acontecer”, referindo-se ao fato de que, pelo menos, seis terras indígenas sofreram invasões no início de 2019, por parte de madeireiros, fazendeiros e posseiros no Maranhão, Mato Grosso, Pará e Rondônia. “Esperamos que o juramento de fidelidade à Constituição do presidente [Jair Bolsonaro] seja cumprido”, finaliza Dom Roque.

Todas as falas dos representantes dos governo no evento contradizem os discursos que o presidente Jair Bolsonaro tem feito, de que no seu governo não haverá nenhuma terra indígena demarcada. São estas contradições que Sônia Guajajara, representante da Apib e a Subprocuradora-Geral da República, Ela Wiecko, questionaram.

“Quanto mais eu escuto as falas do governo, mais eu fico assustada, temos muito o que resolver com relação as questão indígena no Brasil. Por trás disso tudo, o que estão dizendo é que os indígenas não precisam mais de terras”, denuncia Sônia, que ainda envia um recado à ministra Damares: “para nós, quem ama os indígenas, demarca”, referindo a necessidade urgente que os povos tradicionais no Brasil têm em ter seus territórios demarcados.

“para nós, quem ama os indígenas, demarca”

A representante da APIB ainda aponta com preocupação a definição das demarcações de terras indígenas no Brasil estarem sob responsabilidade de um Ministério que recebe apoio do agronegócio e da bancada ruralista no Congresso. “A Medida Provisória adotada pelo governo Bolsonaro contradiz tudo o que foi colocado hoje por parte deste governo. A demarcação das terras indígenas está nas mãos de um ruralista, liberou o porte e posse de armas. Estão fazendo um etnocídio, acabando com nós enquanto povos. Não podemos permitir que nossos territórios sejam entregue as mineradoras e ruralistas, ainda mais agora, que a ameaça vem do próprio Estado Brasileiro”, denuncia Sônia Guajajara, seguido de outro questionamento: “Se quem ocupa terra é terrorista, por que este tratamento não é dado a quem ocupa as terras indígenas?”.

Por sua vez, Ela Wiecko não ficou atrás nas denúncias e questionamentos, afinal, se tratava de um diálogo. Segundo ela, as medidas adotadas pelo governo não garantem os direitos dos indígenas. “Eu não entendi nesse organograma onde fica a Funai, o que exatamente ela vai proteger, se a demarcação de terras já não está mais com a entidade? Eu quero muito que vocês [representantes do governo] pensem sobre estas críticas”. Ela também indaga o fato de nas “metas dos 100 dias” não constar em nenhum momento nada sobre os indígenas, ao contrário do que foi dito durante todo o dia. “Sugiro que vocês voltem, conversem com os ministros e nos tragam ajustes que contemplem os povos indígenas”, finaliza a Subprocuradora-Geral da República.