Debal Deb caminha pela trilha enlameada que sai da porta de sua cabana de sapê e vai até o campo, à frente de um grupo de pupilos. Ele para ao lado de um dos jardins da pequena chácara, se agacha e gentilmente envolve uma panícula de arroz em suas mãos. “Essa é a bainha da muda de arroz”, diz aos acompanhantes. “E esse é o nó”, mostra.
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A reportagem é publicada por Opera Mundi, 12-10-2014.
Os pupilos, oito ao todo, vieram de vários lugares da Índia para a Basudha (“Mãe Terra” em Bengali), a fazenda demonstrativa e o centro de trocas de sementes de Deb no remoto povoado de Kerandiguda, na região leste do país. Eles estão aqui para aprender como identificar e avaliar diferentes variedades de arroz, e não poderiam ter encontrado lugar melhor para isso.
Fonte: http://goo.gl/YgJqoM |
Em apenas 2,3 acres de terra, Deb cultiva 940 variedades de sementes crioulas de arroz que ele vem coletando de pequenos agricultores ao longo dos últimos 17 anos. Todos os anos, essas sementes são germinadas no estilo indiano tradicional, utilizando potes de argila e urina de vaca. Elas são então transferidas para canteiros de dois metros quadrados, colhidas e armazenadas em potes de barro, e catalogadas a partir de códigos que as identificam por nome e características.
“O que temos aqui é, ao que tudo indica, a última coleção do que restou da diversidade de arroz no leste da Índia”, diz Deb. “Nós as plantamos todos os anos, para que elas permaneçam vivas.”
A “arca das sementes” de Deb é um testemunho da surpreendente fecundidade da natureza e da sabedoria de agricultores tradicionais. Armazenadas nos potes de barro estão variedades de sementes que são capazes de resistir a mudanças no clima e na temperatura, variações nos nutrientes do solo e falta de água, e até algumas sementes com aromas especiais. As variedades mais raras na coleção de Deb são as sementes Jugal e Sateen. “Elas não existem em nenhum outro lugar do mundo”, diz ele, com orgulho.
Após serem colhidas, algumas dessas sementes são armazenadas para que sejam plantadas no ano seguinte, enquanto o resto é utilizado em um programa gratuito de troca de sementes. Deb não acredita na venda das sementes, que, segundo ele, são recursos que devem ser compartilhados gratuitamente. Para que possam levar sementes do banco de Deb, agricultores devem oferecer em troca algumas de suas próprias sementes. “Acredito que essa rede informal de compartilhamento de sementes é a única maneira de conservá-las”, explica.
Os esforços de Deb são parte de um movimento global para proteger a biodiversidade agrícola, antes que ela se perca totalmente. Somente no último século, milhares de variedades de frutas e vegetais desapareceram à medida que as demandas da agricultura industrial transformaram cultivos tradicionais policultores em monoculturas. Defensores da agricultura sustentável afirmam que a perda dessas variedades tradicionais é uma receita para o desastre. Especialmente na era das mudanças climáticas, a diversidade genética das variedades de alimentos é essencial para a manutenção de sistemas agricultores que sejam resistentes o suficiente para suportar os choques de condições climáticas extremas. Em meio a enchentes e secas cada vez mais frequentes e severas, “as variedades crioulas são a melhor opção para os agricultores”, sustenta Deb.
Os esforços de Deb lhe renderam a admiração de especialistas em agricultura, que dizem que seu trabalho é vital para a preservação da diversidade do arroz – um cultivo básico para metade da população mundial. “Deb é uma pessoa comprometida com um cenário abrangente de justiça e mudança social em nossos sistemas alimentares”, comenta Stephen Gliessman, ex-professor da Universidade da Califórnia-Santa Cruz, e um dos maiores nomes mundiais no campo da agroecologia. “O trabalho de Deb é um modelo para outras pessoas envolvidas nesse movimento.”
Agricultores têm cultivado diferentes variedades de arroz já há milhares de anos. Na Índia, chegava-se a cerca de 100 mil variedades de arroz sendo cultivadas até os anos 1960 e 70, diz Deb. O país é o maior doador de sementes de arroz para o Instituto Internacional de Pesquisas sobre Arroz, nas Filipinas. No entanto, o advento da chamada “Revolução Verde” nos anos 1960 e a mudança para variedades de arroz que rendessem mais na hora da colheita levaram à extinção pelo desuso de milhares de tipos de arroz. Hoje, 90% das variedades crioulas desapareceram dos cultivos indianos, e foram substituídas por apenas dez variedades, que produzem grandes lavouras quando alimentadas com bastante água, fertilizantes químicos, e pesticidas.
A Revolução Verde, que inicialmente proporcionou milagres aos agricultores, logo levou à degradação do solo. A situação tem sido particularmente ruim em áreas com solos marginais, onde as variedades modernas de sementes não crescem tão bem porque não têm os genes adaptados àquele tipo de solo, diz Deb. Apesar de mais de 60 anos de pesquisa, cientistas ainda não foram capazes de criar uma variedade que possa proporcionar colheitas razoáveis em condições ambientais marginais. Sem acesso a variedades tradicionais de sementes e ao conhecimento das técnicas utilizadas para cultivá-las, a maioria dos agricultores não têm alternativa a não ser continuar utilizando cada vez mais fertilizantes e pesticidas. Ao longo dos anos, o aumento dos custos desse tipo de cultivo tem aprisionado agricultores em um ciclo de dívidas que já levou muitos deles ao suicídio. Entre 1995 e 2004, cerca de 150 mil agricultores se suicidaram na Índia.
A perda na diversidade das sementes também levou a uma perda no conhecimento sobre o cultivo tradicional. “A geração que conhecia sementes crioulas e práticas de cultivo tradicional se foi”, acredita Chukki Nandjundaswamy, presidente da Associação de Agricultores do Estado de Karnataka. “Essa geração não tem quem lhes ensine sobre isso. A tradição está perdida.”
Foi para frear a degradação da diversidade genética dos cultivos que Deb vestiu a camisa do colecionador de sementes-agricultor-instrutor. “Alguém tinha de fazê-lo”, diz ele.
Ecologista por formação, com um pós-doutorado na Universidade de Califórnia-Berkeley, Deb, hoje com 53 anos, começou a coletar sementes em 1992, quando seu trabalho na WWF (World Wildlife Fund) demandava viagens por toda a Índia. Durante as viagens ele percebeu as diferentes variedades de arroz que agricultores espalhados pelo país estavam plantando em suas terras. Essas variedades tradicionais pareciam adaptadas para o ambiente em que estavam sendo plantadas, e tendiam a ser bastante resistentes.
Deb começou a documentar essas variedades crioulas e logo percebeu que elas estavam desaparecendo aos poucos, pois agricultores não as estavam mais plantando com tanta frequência. Ficou claro que somente manter registros sobre a situação já não era o suficiente. As sementes precisavam ser salvas. Elas tinham de ser classificadas e listadas no Registro de Biodiversidade da Comunidade. E, mais importante, elas tinham de ser compartilhadas.
Então, em 1997, com financiamento inicial cedido pelo grupo de conservação de cultivos tradicionais da ambientalista indiana Vandana Shiva, Deb criou o Vrihi (“arroz”, em sânscrito), um banco de sementes em um povoado no estado de Bengala Ocidental. Em 2002, Deb já estava cultivando todas as sementes que vinha coletando junto a agricultores. No mesmo ano ele estabeleceu o Centro para Estudos Interdisciplinares, ampliando o trabalho para além da conservação das sementes e promovendo ativamente o uso de sementes nativas através de trocas de sementes, experimentos de cruzamento entre diferentes variedades, e a promoção de workshops sobre cultivo orgânico para agricultores.
As sementes do Virhi estão sendo muito bem utilizadas. Quando o ciclone Aila devastou o delta do Ganges, em 2009, o banco de sementes de Deb distribuiu quatro variedades de sementes tolerantes aos altos níveis de sódio na terra a agricultores do mangue arbóreo de Sundarban. Os agricultores que plantaram estas sementes foram os únicos que tiveram uma colheita na estação seguinte. Em 2002, o banco ajudou agricultores cujas áreas de cultivo tinham sido inundadas, distribuindo sementes tolerantes a enchentes, e em 1999 o banco distribuiu sementes tolerantes a secas durante uma seca severa em Bengala Ocidental. Em todos esses anos mais de três mil agricultores em toda a Índia já se beneficiaram das sementes do banco Virhi.
Deb lamenta que os grandes bancos institucionais de sementes tenham se tornado mausoléus. Pesquisadores dessas instituições acreditam que a preservação do DNA seja suficiente, diz ele, e ignoram que as sementes devem ser plantadas no campo, ao ar livre, ao menos periodicamente. Pedidos do próprio Deb por amostras de antigas variedades de arroz de Bengala junto ao Instituto Internacional de Pesquisas sobre Arroz e ao Escritório Nacional de Recursos Genéticos Botânicos não tiveram resposta. “Fica a pergunta sobre como um agricultor de Bangladesh, da Nigéria ou do Vietnã poderia conseguir sementes em uma dessas instituições”, questiona.
A perda de variedades de arroz não se restringe à Índia, e a perda na diversidade genética não se limita ao arroz. Variedades alimentares estão desaparecendo no mundo todo. Nas Filipinas, onde em um tempo se plantavam milhares de variedades de arroz, hoje existem somente algumas centenas. Milhares de variedades indígenas de trigo no Iraque e na Ásia Central foram extintas, e estima-se que 90% das variedades de frutas e vegetais da América do Norte tenham desaparecido. Dezenas de variedades de batatas e de milho sumiram dos campos de agricultores na América Latina. Especialistas estimam que tenhamos perdido mais da metade das variedades de alimentos ao longo do último século.
O domínio da indústria de sementes sobre o sistema alimentar é preocupante. De acordo com um relatório do grupo ETC, organização internacional que se dedica a temas socioeconômicos e ecológicos, todas as etapas do sistema alimentar – sementes, fertilizantes, pesticidas, herbicidas, processamento e venda – estão concentradas nas mãos de apenas dez corporações globais que controlam quase 70% do mercado mundial de sementes.
Em resposta a esse monopólio corporativo, movimentos como o banco Virhi estão se multiplicando no mundo todo. Na Índia, uma das primeiras iniciativas foi a Navadanya de Vandana Shiva, uma rede nacional de agricultores estabelecida em 1984. No resto do mundo, o depósito de sementes Svalbard, na Noruega, e o Kew’s Millennium Seed Bank e o Seed Savers Exchange, em Iowa, nos EUA, estão entre os repositórios de sementes mais conhecidos. Redes informais como a Via Campesina e o Movimento dos Sem-Terra, no Brasil, também estão trabalhando para restituir aos agricultores o direito de plantar e compartilhar sementes. No Chile, na Colômbia e na Argentina, movimentos sociais conseguiram impedir ou frear tentativas de introduzir as chamadas “leis Monsanto”, que restringiriam o acesso dos agricultores às sementes.
Nesse movimento global por soberania alimentar, o Virhi tem um papel indispensável, comenta Alex Jensen, daSociedade Internacional por Ecologia e Cultura. “O trabalho de Deb é um importante ponto de resistência contra a monopolização sistemática do sistema alimentar por parte da indústria agroquímica”, diz Jensen.
Deb explica que está tentando “recriar e redescobrir” um novo modo de vida em Basudha, que demonstre como a vida das plantas e dos animais está conectada em uma rede de interdependência. Ele quer mostrar que sustentabilidade não diz respeito somente à agricultura, mas sim a todo um modo de vida, em que alimentos, tradições, música e arte desempenham papéis essenciais. “Justiça ambiental significa que todos os membros da sociedade, tanto na geração atual como nas próximas gerações, têm direito a água limpa para beber, ar puro para respirar, segurança alimentar perene, e a conviver com toda a riqueza da biodiversidade”, diz ele.
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