Uma esquerda cada vez menos verde: os conflitos ambientais na América Latina.

Se hoje o verdadeiro teste da esquerda é a capacidade de conciliar um modelo ecocompatível com a satisfação das necessidades básicas de toda a população, os resultados parecem ser agora realmente modestos.

 

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A reportagem é de Claudia Fanti, publicada pela agência italiana Adista, 19-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

E, certamente, não só na Itália, onde, apenas para dar um exemplo, Susanna Camusso chegou a defender um projeto inútil, caro e ecologicamente devastador como o da nova linha ferroviária Turim-Lyon, em nome da criação de postos de trabalho, mas também na região que, ao longo dos últimos 20 anos, mostrou mais vivacidade em termos de resistência e de luta por um outro mundo possível: aquela América Latina, cujo chamado modelo extrativista, baseado na exportação de matérias-primas brutas e em amplas concessões minerárias para empresas transnacionais, se revelou, como escreveu recentemente o sociólogo venezuelano Edgardo Lander, “a principal fonte das contradições internas e das decepções com relação aos governos ‘progressistas’ e de esquerda”, que parecem, de fato, dar por óbvio que não há nenhum outro caminho possível senão o de um sistema baseado no crescimento econômico.

Ao modelo extrativista, definido pelo jornalista e escritor uruguaio Raúl Zibechi como “apropriação dos bens comuns, direta ou indiretamente, para transformá-los em mercadorias”, porém, nenhum país da região escapa, seja ele governado pela esquerda ou pela direita, incluindo Venezuela e Bolívia.

Não por acaso, o sociólogo uruguaio Eduardo Gudynas (Alai, 02-03-2012, disponível aqui, em espanhol) fala sobre uma esquerda cada vez menos “vermelha” e cada vez mais “marrom”, ressaltando como, em todo o continente, os governos “progressistas” focam nos altos preços das matérias-primas nos mercados globais, defendem explicitamente o extrativismo, apoiando as empresas (estatais, mistas ou privadas) que o promovem, oferecendo facilidades aos investimentos ou flexibilizando as normas ambientais, no mesmo momento em que, contra o protesto social, assumem posições que chegam até a criminalização e à repressão.

Por trás das palavras de ordem do crescimento econômico, da atração dos investimentos e da promoção das exportações, tais governos, argumenta Gudynas, agem para que “o Estado capte parte dessa riqueza para manter a si mesmo e financiar programas de luta contra a pobreza”. Nessa ótica, continua o sociólogo, “a esquerda governante não sabe muito bem o que fazer com os temas ambientais”, acabando por ver neles, ao invés e além de vagas referências à questão ecológica e até de invocações à Pacha Mama, obstáculos ao crescimento econômico e, portanto, “um freio para a reprodução do aparato estatal e a assistência econômica aos mais necessitados”. Assistência que torna os governos cada vez mais dependentes da exportação de matérias-primas.

O protesto social, no entanto, cresce juntamente com o processo de apropriação dos bens comuns, como revela a longa série de conflitos em curso em todo o continente. Na verdade, remonta a 2002, como evidencia Zibechi (La Jornada, 09-03-2012), a primeira consulta popular municipal sobre a atividade de mineração em Tambogrande, no norte do Peru: mais de 90% dos eleitores se manifestou contra o projeto de exploração de uma jazida de ouro, prata e zinco por parte da empresa canadense Manhattan. Foi o início de uma série de consultas populares, todas com resultados semelhantes, que se tornaram “a forma de luta encontrada pelas comunidades locais para romper o isolamento e evitar que suas razões fossem afogadas pelo silêncio oficial e dos meios de comunicação. Hoje, pode-se dizer que tiveram um resultado mais do que exitoso”, tornando possíveis as inúmeras mobilizações que ocorrem agora, segundo um “modelo de ação” graças ao qual, destaca Zibechi, os movimentos superaram largamente a esfera local, apresentando-se como “as principais alternativas ao modelo assentado na expropriação dos bens comuns”.

Uma marcha após a outra

A última em ordem de tempo é a mobilização em curso no Equador, onde, no dia 8 de março, partiu do vilarejo de Pangui, em uma região de exploração minerária, a Marcha Plurinacional pela Vida, pela Água e pela Dignidade dos Povos, que chegará a Quito no dia 22 de março. Apenas três dias antes, no dia 5 de março, o presidente Rafael Correa saudara com tons triunfantes a assinatura do contrato com a empresa Ecsa, de propriedade do consórcio chinês CRCC-Tongguanper, para a exploração de uma jazida de mineração na Cordilheira de Cóndor, na fronteira com o Peru, uma das áreas mais ricas de biodiversidade do país.

Trata-se de um dos cinco projetos de mineração considerados prioritários pelo governo de Correa, que – como frisa Decio Machado (Rebelión, 12-03-2012, disponível aqui, em espanhol) – “é o primeiro governo que converteu a megamineração em uma atividade estratégica que deixa uma marca sobre o futuro modelo de desenvolvimento equatoriano”. “Nós queremos nos resignar – declaram os manifestantes da marcha (Adital, 13-03-2012) – a sobreviver em um país devastado nas garras do medo ou da indiferença, um país com realidades paralelas de rios mortos e de rodovias idílicas, de pessoas ‘felizes’ com o seu punhado de dólares dados pelo Estado e de pessoas doentes por causa da contaminação minerária e petrolífera, de pessoas que se consomem no consumismo e de pessoas mortas em vida, sem memória nem identidade, desprovidas das suas florestas e da sua condição humana, entre árvores e animais massacrados”.

Uma outra marcha nacional pelo direito à água – “a mobilização popular mais importante desde a época de Fujimori“, definiu Hugo Blanco – ocorreu entre os dias 1º a 9 de fevereiro no Peru, contra o grande projeto de mineração de Conga, em Cajamarca, promovido pela Yanacocha, a primeira empresa de extração de ouro na América do Sul e a segunda do mundo: em seu currículo, destaca-se, durante os últimos meses do governo Fujimori, o devastador vazamento de mercúrio em Choropampa, que custou a vida de mais de 70 pessoas e continua impune.

Rejeitado pelo próprio governo regional de Cajamarca, o projeto Conga, que conta com um investimento de quase 5 bilhões de dólares, ameaça destruir as reservas de água doce da região, produzindo, segundo os estudos de impacto ambiental do Ministério do Meio Ambiente, danos irreversíveis ao ecossistema e contaminando a bacia do rio Marañón, um importante afluente do rio Amazonas.

“É um projeto altamente depredador – afirmou Gregorio Santos, presidente regional de Cajamarca (Alai, 06-02-2012, disponível aqui, em português) – que entra em conflito profundamente com o momento que vivemos no mundo, com o discurso do presidente Ollanta Humala” quando, depois de ter dito: “O que vocês querem, ouro ou água?” e ter recebido a resposta clara do povo: “Queremos água”, se comprometeu a “defender os recursos hídricos de Cajamarca“.

Uma meia-volta de Humala que se explica facilmente com o peso assumido, na economia peruana, pelas exportações de mineração (em grande parte de ouro, do qual o Peru é o primeiro produtor latino-americano e o sexto no mundo, e de cobre), que, como lembra Javier Diez Canseco (Sin Permiso, 04-03-2012), representaram em 2011 quase 60% do valor total das exportações. E isso em um país em que a atividade de mineração está concentrada nas mãos de nem 20 empresas (até mesmo duas, no caso do cobre, e de três no caso do ouro), que conseguem, em média, dobrar todo o seu patrimônio em um período que varia de dois a quatro anos.

E, enquanto isso, na Bolívia, se anuncia uma nova mobilização em defesa do Tipnis, na Argentina, onde os conflitos ligados à atividade de mineração interessam ao menos a 12 províncias, a vitoriosa luta dos habitantes de Famatina, que levou à suspensão de um projeto de mineração a céu aberto (método que requer, para extrair um quilo de ouro, a remoção de 130 a 150 toneladas de terra e o uso de enormes quantidades de cianureto, arsênico e mercúrio), alimentou os protestos das populações de Catamarca e de Tucumán contra a maior jazida minerária da Argentina, em Bajo de la Alumbrera, e as de La Rioja contra a empresa mineradora canadense Osisko.

Os conflitos ambientais também abundam, obviamente, nos países governados pela direita. Na Colômbia, uma grande mobilização popular levou o Ministério do Meio Ambiente a negar à empresa canadense Eco Ouro Minerals a autorização para um projeto de exploração de mineração a céu aberto em Páramo de Santurbán, em Santander, um complexo lagunar que fornece água a uma população de 2,2 milhões de pessoas.

No Panamá, após a mobilização dos povos indígenas Ngäbe-Buglé, que, dos dias 31 de janeiro a 7 de fevereiro, bloquearam a rodovia Panamericana recebendo um forte apoio da população, o governo de Ricardo Martinelli teve que se curvar às reivindicações indígenas, aceitando iniciar as negociações sobre a lei relativa à atividade de mineração e à construção de usinas .

Crítica é a situação na América Central, onde centenas de projetos de mineração estão à espera de aprovação. Em Honduras, em particular, onde já haviam sido liberadas mais de 370 concessões, foram apresentadas, depois do golpe de 2009, outros 300 pedidos de exploração minerária, também a céu aberto.

Mas na América Central também não faltam protestos e mobilizações: na Guatemala, por exemplo, graças à pressão popular, 56 municípios se proclamaram “livres da atividade de mineração”.