Tradições: Fazendeiros destroem antiga civilização na Amazônia

Civilizações Amazônia

Geoglifos na fazenda Atlantica perto de Rio Branco, no Acre.

https://www.bloomberg.com/graphics/2024-brasil-desmatamento-amazonia-civilizacao-antiga/

Peter Millard

25 de setembro de 2024

[NOTA DO WEBSITE: Mais uma demonstração do que os ‘brasileiros’ – como os portugueses que faziam o pau-brasil desde o século XVI – que exortam a degradação, a exploração e a devastação de todo o solo e a cultura do País. A única coisa que os invasores fazem, é extirpar tudo sobre tudo, por dinheiro. Esses são os ‘patriotas’ e no restante do pais estamos nós, os ‘idiotas’ que não fazemos nada até porque queríamos estar fazendo o que eles fazem. O dinheiro acima de tudo e de todos. Esse é o verdadeiro ‘deus’ que nos une].

O Iphan enfrenta a imparável expansão da indústria agrícola — e um patrimônio da humanidade está em jogo.

Nas terras sem lei do sudoeste da Amazônia, Antonia Barbosa está lutando para proteger sítios arqueológicos antigos da influente indústria do agronegócio que movimenta R$ 2,6 trilhões no Brasil.

Lá, os fazendeiros veem a terra como uma fonte de renda e as históricas estruturas geométricas no chão, conhecidas como geoglifos, estão no caminho. Pelo menos nove dos sítios antigos mais emblemáticos — alguns dos quais abrangem até 385 metros de largura e quase 5 metros de profundidade — já foram arados nos últimos anos. Isso está apagando as evidências de uma civilização que surgiu na época de Cristo e floresceu por cerca de 1.000 anos, quase o mesmo tempo da Grécia Antiga. E à medida que os fazendeiros avançam na Amazônia para atender à demanda global por soja, milho e açúcar, os geoglifos estão sendo destruídos tão rápido quanto estão sendo descobertos.

Antonia Barbosa manuseia peças de cerâmica encontradas em sítios de geoglifos em um depósito de madeira em um parque em Rio Branco, estado do Acre.

“No terreno de nossa casa, nós temos um patrimônio tão importante e tão gigantesco como as pirâmides do Egito”, disse Barbosa, a única arqueóloga que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o Iphan, tem no estado do Acre para proteger os sítios. “Eles duraram mais de 2.000 anos e vamos destruí-los em menos de uma geração.

É uma batalha difícil para Barbosa. Agricultores e pecuaristas são a força política e econômica mais poderosa do Brasil, responsáveis ​​por 24% do seu produto interno bruto e ajudando a garantir o lugar do país como um dos dois maiores exportadores agrícolas do mundo. O Acre faz parte dessa fronteira, com a produção de soja triplicando em dois anos para uma estimativa de 60.600 toneladas e terras agrícolas crescendo para mis de 17.000 hectares. Isso mostra que pouco pode ser feito por Barbosa ou pelo Iphan para proteger os locais além de cobrar multas, que são apenas uma gota no oceano, especialmente para grandes fazendas industriais.

“Um proprietário de terras destrói um sítio arqueológico porque acha que será mais rentável destruir, pagar a multa e depois usar a terra”, disse Barbosa.

O rápido processo da descoberta à destruição das estruturas de terra faz parte do desmatamento mais amplo da Amazônia, para abrir caminho para culturas comerciais. Isso está colocando todo o planeta, que já sofre o impacto das mudanças climáticas, em risco. A Amazônia detém cerca de 20% de todo o carbono armazenado na vegetação do planeta, mas incêndios e desmatamento colocam-na em risco de se tornar uma fonte líquida de emissões de carbono em vez de retê-lo. O declínio da floresta também ameaça interromper os padrões de chuva em toda a América do Sul. Essa região do Brasil já perdeu uma área maior do que o estado de São Paulo desde 2000, e há pressão econômica para plantar grãos e, em seguida, limpar mais terras para o gado deslocado. O desafio para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva é manter o agronegócio funcionando e, ao mesmo tempo, proteger as florestas.

O custo de proteger os geoglifos é muito pouco em comparação à colheita de soja no valor de R$ 341 bilhões do Brasil no ano passado. Um único hectare de soja gera cerca de US$ 2.000 em receita, sem incluir custos. Isso significa que, no total, os cerca de 1.000 geoglifos em tamanho médio de dois hectares se traduziriam em apenas cerca de US$ 4 milhões anualmente.

Geoglifos do Acre competem com avanços agrícolas cada vez mais intensos

Os desenhos perfeitamente simétricos inseridos na paisagem são cruciais para entender a história da região: os geoglifos são prova de uma civilização antiga e sofisticada que alinhou seu calendário agrícola com os solstícios de verão e inverno e introduziu árvores frutíferas e de castanhas, mais uma prova de que a Amazônia não é apenas uma natureza intocada, mas também vastas faixas de pomares antigos.

Barbosa tem o cuidado de evitar tirar conclusões precipitadas sobre o quão grande essa sociedade era ou como ela foi estruturada. “Temos mais pontos de interrogações do que respostas”, disse ela.

Outros são mais ousados. Um pesquisador compara os criadores dos geoglifos a uma confederação de cidades-estado independentes como as que existiam na Grécia antiga, cada uma com seu próprio espaço público cerimonial, diferente das civilizações hierárquicas que prevaleciam nos Andes e na América Central.

Mas, por mais historicamente importantes que sejam os locais, há fazendas em todo o Acre onde as estruturas foram destruídas. Mesmo em locais mais bem preservados, o gado pode ser visto bebendo ou pastando nas trincheiras dos geoglifos.

Uma pequena casa de produtor ao lado de um geoglifo quadrado cortado ao meio por uma estrada de terra.

Geoglifos danificados em meio a campos de cultivo vistos de cima na fazenda Crichá.

A tensão entre aqueles que querem ganhar dinheiro com a terra e aqueles que querem salvá-la é palpável. Embora Barbosa não goste de falar sobre os riscos do trabalho ou sobre qualquer situação de risco com os proprietários de terras, ela mostra uma foto preocupante que recebeu indiretamente pelo WhatsApp.

É de um homem com a cabeça inclinada para a frente, de modo que seu chapéu de cowboy de couro cobre seu rosto. Um de seus braços segura um rifle semiautomático, e o outro aponta para um pote de cerâmica desenterrado da estrada de terra em uma fazenda.

A mensagem é clara: ele não quer que nenhum arqueólogo venha interferir em suas plantações.

Foi somente em meados do final do século XX que os geoglifos foram descobertos, quando a selva foi desmatada para plantar capim estrela africano para pastar o gado. Na época, os moradores acreditavam que as estranhas estruturas de terra eram trincheiras da guerra com a Bolívia entre 1899 e 1903 pelo controle do lucrativo negócio de extração de borracha da área.

Foi somente no final da década de 1970 que uma equipe de arqueólogos descobriu que essas trincheiras eram, na verdade, antigas obras de escavagem. Na época, “ninguém pensava que estruturas gigantes como essas existiam na Amazônia” e a pesquisa “ficou engavetada”, disse Barbosa.

Os estudos científicos não decolaram até a década de 2000, depois que Alceu Ranzi, um acadêmico e autor que inspirou o interesse de Barbosa em estruturas no solo, organizou um sobrevoo para tirar fotos. Ranzi fez parte da equipe de pesquisa na década de 1970, mas a importância dos geoglifos só foi percebida depois que ele os viu de cima e começou a documentá-los.

“Aí explodiu”, disse Ranzi. “Tornou-se notícia internacional.”

Até 2015, o Iphan havia identificado mais de 300 geoglifos no estado, a serem considerados como patrimônios mundiais pela Unesco. Estima-se que outras 24.000 obras de terra ainda não foram encontradas no sudoeste da Amazônia e na vizinha Bolívia, de acordo com uma pesquisa da revista Science do ano passado. Ranzi acredita que a área abrigava uma população de cerca de um milhão de pessoas, semelhante à atual.

Geoglifos podem ser protegidos com status de patrimônio da UNESCO

A parte mais densa da civilização extinta há séculos fica ao longo da BR-317, uma estrada de 531 quilômetros de extensão no Acre, que os pesquisadores chamam de “Rodovia dos Geoglifos” por cortar pelo menos 11 dos sítios antigos. A Bloomberg News visitou a área com Barbosa e coletou imagens de drones de sete das figuras emblemáticas, que só podem ser vistas completamente de cima — um sinal de que foram feitas para os deuses.

Apesar dos perigos potenciais, Barbosa está confortável. Tendo passado sua infância em uma pequena fazenda no Acre, ela tem afinidade com os fazendeiros de gado locais que são donos das propriedades onde os geoglifos estão. Ela não hesita em pular um portão de madeira para procurar um fazendeiro em um local importante. Três dos geoglifos que a Bloomberg visitou tiveram danos tão extensos que provavelmente não se qualificariam mais sob os rigorosos requisitos de preservação da Unesco.

Barbosa diz que a principal ameaça às estruturas antigas vem dos grandes proprietários de terras.

“Eles têm advogados, têm todas essas pessoas, muitos recursos”, disse ela. “Com a morosidade da lei, eles se sentem livres para destruir sítios arqueológicos.”

Às vezes, os proprietários nem moram no Acre e contratam administradores de fazendas para extrair o máximo de lucro possível da terra.

Fazenda de soja e milho de Jorge Moura perto de Senador Guiomard, Acre.

“A lógica econômica é de produzir sempre mais”, disse Luidgi Merlo Paiva dos Santos, procurador da República que acompanha processos contra proprietários sinalizados pelo Iphan por destruir os geoglifos.

“Muitas vezes essa atividade pecuária e agrícola acaba causando a destruição dos geoglifos, porque muitos proprietários, muitas vezes de má-fé” destroem os locais “para plantar, por exemplo, milho, soja ou café”, disse ele.

Os antigos escolheram planícies planas entre vales de rios para construir suas redes de geoglifos. Hoje, essa mesma terra fértil tem excelente drenagem e é ideal para o cultivo de soja, que passou de quase nada há uma década para o maior produto de exportação do Acre em 2023. Isso se deve em parte à construção de um porto próximo que se conecta a compradores tão distantes quanto a China. Uma ponte para o Peru também abriu outro mercado, e um porto em construção no país vizinho dará aos exportadores outra opção.

Tudo isso atraiu os maiores comerciantes de commodities do mundo — Cargill, Bunge e Archer-Daniels-Midland Co.— a comprar soja de fazendeiros no Acre e outros estados próximos.

“Dólares!”, diz Jorge Moura, 74, enquanto pega um punhado de soja e a deixa escorregar por entre os dedos em uma unidade de embalagem em sua fazenda no Acre, que fica ao longo da “Rodovia dos Geoglifos”. Ao contrário de muitos de seus vizinhos, ele tem um geoglifo circular em sua terra do qual se orgulha e está protegendo.

Um dos locais mais danificados no Acre é de propriedade do chefe da federação agrícola do estado.

Depois de sobreviver por milhares de anos, as cinco estruturas da Fazenda Crichá foram niveladas em apenas alguns dias em 2019.

Geoglifo da Fazenda Crichá

O local não oferece mais nenhum valor para pesquisa científica porque o solo e os artefatos de cerâmica foram movidos, de acordo com um relatório do Iphan. Menos de 1% dos locais descobertos têm tantas estruturas quanto a Fazenda Crichá. Suas formas — semicírculos ramificando-se de um quadrado e um crescente conectado a um círculo — não foram encontradas em nenhum outro lugar.

“Quero deixar muito claro que foi um acidente”, disse o proprietário de terras Assuero Doca Veronez à Bloomberg de seu escritório arrumado e espaçoso na capital do Acre, Rio Branco. “Não sou nenhum criminoso.”

Assuero Doca Veronez

Ele descreve a destruição como um infortúnio incidente que aconteceu porque ele só visita a fazenda cerca de duas vezes por mês; ele culpou seu gerente da fazenda. O procurador da República, Paiva dos Santos, está processando Veronez por R$ 200.000 e pela restauração dos geoglifos a um custo estimado de R$ 2 milhões.

Veronez diz que não tem dinheiro suficiente para reverter os danos, e faria mais sentido para ele colaborar com as autoridades em uma campanha educacional sobre os geoglifos para ajudar a preservar os que ainda estão intactos.

“Quando os Talibãs explodiram aquelas estátuas que tinham milhares de anos, foi possível recuperá-las? Eu acho que não”, ele diz.

Até agora, um tribunal suspendeu qualquer atividade na fazenda até que o caso seja resolvido. A terra está coberta de capim alto, e o que sobrou dos geoglifos está cercado.

Paiva dos Santos está processando três outros proprietários de terras no Acre por supostamente destruir geoglifos, e espera que muitos outros casos cheguem à sua mesa.

Geoglifo da Fazenda Atlântica no estado do Acre. Vídeo: Marcelo Villegas/Bloomberg Originals

Em um dos casos que ele está investigando, o proprietário estava buscando financiamento para uma plantação de café quando o funcionário responsável pelo empréstimo no banco notou que um geoglifo estava registrado na propriedade. O agente do banco levantou uma bandeira vermelha e, com certeza, o proprietário já havia arado uma seção de um local de geoglifo importante.

“Certamente existem vários outros casos de destruição que precisam ser apurados”, disse Paiva dos Santos. “Acabamos vendo a destruição desses sítios arqueológicos para o desenvolvimento dessas atividades econômicas.”

Ele lamenta que Barbosa seja a única oficial que o Iphan tem para proteger os sítios, e que ele seja o único promotor a levar os violadores à justiça.

Veronez, enquanto isso, continua a liderar a federação agrícola. Em abril, ele se juntou a uma missão comercial à China para procurar tratores, colheitadeiras e outros equipamentos para acelerar a produção agrícola do Acre. Ele disse que ainda emprega o gerente da fazenda que destruiu os geoglifos em sua propriedade.

A oitenta quilômetros na estrada fica Severino Calazans, um geoglifo quadrado nomeado em homenagem ao homem que comprou a terra em 1992.

Calazans está claramente animado em receber visitantes. Ele sai de um barraco de madeira sem pintura, com uma barba desarrumada e vestido com jeans desbotados, uma camisa amarela de manga comprida, óculos escuros volumosos e um boné de beisebol branco. É difícil acreditar que ele fará 103 anos em novembro.

Quando ele se mudou para a área, a Rodovia dos Geoglifos era apenas uma estrada de terra cheia de buracos, e os moradores locais não tinham ideia do que eram as obras de terra. Mas Calazans, que prestou serviço militar quando era jovem, disse que sempre desdenhava quando as pessoas diziam que os geoglifos eram trincheiras que sobraram da guerra da borracha. Ele ressalta que as paredes são inclinadas em vez de retas. Então ele finge segurar um rifle ao explicar como elas não ofereceriam muita proteção.

Severino Calazans

Geoglifo na propriedade de Severino Calazans

Ele descobriu que estava morando no meio de um sítio arqueológico alguns anos depois de comprar a propriedade e parou de encher as valas com troncos podres e resíduos orgânicos.  Ele não planta para vender, mas cultivou árvores frutíferas e castanhas ao longo dos anos. (Ele diz que seu segredo para a longevidade vem da casca de uma árvore nativa chamada Sapuva que sua esposa ferve em um chá.)

Ele tem orgulho do geoglifo e da atenção que ele traz de pesquisadores e arqueólogos como Barbosa, e de turistas ocasionais. Calazans diz que está confiante de que seus descendentes cuidarão dele. Mas não tem tanta certeza sobre todos os outros que vivem ao longo da Rodovia dos Geoglifos. “Eles não os protegem”, disse.

Barbosa apresenta Calazans como um exemplo de um pequeno proprietário de terras que coopera com as autoridades e não representa uma ameaça imediata a esses monumentos culturais. O principal problema com seu geoglifo é que a rodovia passa por ele.

Mas Barbosa não tem ilusões sobre a dificuldade de sua missão. Muitos moradores, embora muitos provavelmente descendam dos construtores originais dos geoglifos, são simplesmente indiferentes à história que os cerca. O Acre também é uma região tradicional de contrabando de cocaína, e a guerra às drogas suga recursos e torna ainda mais difícil proteger a vasta extensão de sítios de patrimônio cultural.

Apesar de ser o coração de uma sociedade antiga com os restos arqueológicos para provar isso, houve pouco esforço para trazer receita de turismo dos geoglifos ao Acre. Os voos de balão de ar quente não decolaram realmente. A única operadora principal faz mais negócios oferecendo passeios de motocicleta na região.

Para colocar em perspectiva, o Acre recebe mais turistas que vêm para usar a droga psicodélica ayahuasca com comunidades indígenas do que para visitar os geoglifos, Ezequiel de Oliveira Bino, secretário municipal de desenvolvimento econômico, turismo, tecnologia e inovação em Rio Branco.

“Essas comunidades têm representantes na Europa para ayahuasca”, ele diz. “Nós não temos isso para os geoglifos.”

Oliveira Bino está tentando mudar isso. Ele não vê razão para que os geoglifos do Acre não atraiam o mesmo tipo de turismo que as linhas de Nazca do Peru, semelhantes figuras de terra frequentemente escavadas para representar animais e plantas. Há planos para obter financiamento para construir uma torre de observação em Jaco Sá, o único geoglifo até o momento a receber o status de tombamento, o maior reconhecimento do Brasil para o patrimônio cultural.

Até então, “é soja, milho e cana de açúcar contra o nosso patrimônio arqueológico”, disse Ranzi, o acadêmico que atualmente está tentando levantar recursos para comprar terras onde estão os geoglifos. “Estamos correndo o risco de destruí-los antes de conhecê-los.”

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