A ideologia da ocupação e o resultado da devastação.
https://sumauma.com/como-a-ideologia-dos-militares-moldou-a-amazonia-de-hoje
12 agosto 2024
[NOTA DO WEBSITE: Importante matéria que mostra, como já refletimos anteriormente, que a devastação da Amazônia em todos os níveis: desmatamento, queimadas, gado, soja, desrespeito aos povos originários, as minerações e invasões do capital estrangeiro, são reflexos de uma política ideológica do organismo pago pelos brasileiros para lhes defender, o Exército, dentro das Forças Armadas. Percebe-se que, mesmo que indiretamente, professam a doutrina da colonialidade, fundada num capitalismo indigno e cruel, além de mostrarem ser supremacistas antropocêntricos e etnocratas. Sabe-se hoje, inclusive cientificamente, que uma das saídas para o impasse civilizatório que a humanidade está trilhando para seu extermínio, é a busca dos fundamentos de todos os povos originários de todos os continentes. Reconhece-se que a visão de mundo eurocêntrica com suas revoluções industrial, agrícola, petroquímica e tecnológica, está gerando um beco sem saída para a sobrevivência de todos os seres vivos, incluindo os humanos. Lastimamos que sustentamos quem não nos sustenta. Está na hora dos militares avançarem com seus corações e mentes e abandonarem a visão de mundo supremacista portuguesa do século XV que além de estar há séculos superada, mostra-se deletéria e caquética].
Autores da doutrina do Exército sobre a região veem Indígenas como ‘estrangeiros’ e pregam alianças com garimpeiros e soluções da ditadura chinesa.
“Se [eu] tivesse ensinado táticas de guerrilha, não tinha um policial federal lá. E quem afirmou isso estaria morto. Esse pessoal não pode competir comigo.” A frase caberia na boca de um criminoso, mas é de um militar do Exército, o coronel reformado Gelio Augusto Barbosa Fregapani (nota do nosso website: nada é por acaso, esse militar é gaúcho, nascido na cidade de Taquari, a mesma do ex-presidente Marechal Costa e Silva. Da mesma forma é de nosso site o destaque dado ao coronel em matéria do El Pais, de 2021.). Está numa entrevista que ele concedeu à Folha de S.Paulo em 2008. À época com 72 anos, Fregapani se defendia da suspeita de ajudar arrozeiros de Roraima num ataque que feriu nove Indígenas. A Polícia Federal dizia ter indícios de que o coronel havia ajudado a montar uma estratégia de resistência para que os latifundiários não fossem retirados do que viria a ser a Terra Indígena Raposa Serra do Sol – demarcada efetivamente em 2009. Fregapani ainda deixou registrado um desafio: “Quando a região se declarar independente, aí, sim, vou fazer guerrilhas”.
Para o coronel reformado Gelio Fregapani (no centro), a demarcação da Raposa Serra do Sol atentava contra a soberania nacional. Foto: Reprodução/Site Cigs
A demarcação contínua da Raposa Serra do Sol – que acabou por ocorrer – significava, na visão do militar, tornar a “região independente” por estar na fronteira com a Venezuela. Raposa Serra do Sol é território tradicional dos povos Ingarikó, Macuxi, Patamona, Taurepang e Wapichana. Ali, mais de 26 mil Indígenas vivem conforme suas tradições culturais numa área de 1,75 milhão de hectares, algo como 11 vezes o tamanho da cidade de São Paulo. Muito bem conservada, a Terra Indígena auxilia a Floresta Amazônica a cumprir o urgente papel de ajudar a segurar o céu, a sustentar o cada vez mais frágil equilíbrio climático do planeta.
Na visão majoritária entre os militares brasileiros, contudo, Raposa Serra do Sol atenta contra a soberania nacional. “Tudo indica que os problemas ambientais e indigenistas são apenas pretextos. Que as principais ONGs são, na realidade, peças do grande jogo em que se empenham os países hegemônicos para manter e ampliar sua dominação.” Este trecho não saiu da boca de Aldo Rebelo nem de algum outro teórico da conspiração de rede social. Está num relatório de Inteligência, de 2005, chancelado pela Agência Brasileira de Inteligência, a Abin. É assinado pelo mesmo Fregapani e desembarcou nas páginas de outro grande jornal brasileiro, O Estado de S. Paulo, que em 2005 o noticiou dizendo que a demarcação da Terra Indígena “pode criar conflito com as Forças Armadas”.
A Abin de 2024 o renega. Usando a Lei de Acesso à Informação, SUMAÚMA pediu à agência todos os relatórios de Inteligência produzidos sobre a Raposa Serra do Sol em 2005. O de Fregapani não faz parte do lote enviado. “O suposto relatório não consta entre os documentos de Inteligência produzidos pela Abin no ano de 2005 acerca do tema da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, respondeu a Abin, desta vez via assessoria de imprensa. “A Agência esclarece que a simples menção ao fato de que ele teria sido assinado é uma comprovação, por si só, de que tal documento, se existir, não é um documento produzido pela Abin. Isto porque não é (e não era, à época) o padrão da produção de Inteligência da Agência.”
Ataques contra os Indígenas da Raposa Serra do Sol deixaram vários feridos, como o irmão de Izabel Macuxi. Foto: Sérgio Lima/Folhapress
Uma nota à imprensa da própria Abin, de 2005, porém, traz outra informação: “O referido documento foi produzido pelo Grupo de Trabalho da Amazônia [o GTAM], um colegiado informal composto por integrantes da Abin e de órgãos de Inteligência das Forças Armadas e do Departamento de Polícia Federal, que trabalha com o propósito de sistematizar as atividades de Inteligência na região e nivelar os conhecimentos”. A nota, arquivada no site do Instituto Socioambiental, diz ainda que o relatório é “fruto do consenso dos integrantes do GTAM, aborda entre outros assuntos a Terra Indígena Raposa Serra do Sol e é assinado pelo seu coordenador e representante da Abin, Gelio Fregapani”.
Além de oficial de carreira do Exército, Fregapani foi da “comunidade de informações”, como costumam dizer seus participantes. A Abin se recusou a revelar, via Lei de Acesso à Informação ou assessoria de imprensa, se o coronel fez parte de seus quadros. Mas o próprio Fregapani informa, num perfil em rede social, ter trabalhado na Abin entre 1996 e 2007 – ou seja, até um ano antes de ser apontado como suspeito de armar uma guerrilha anti-Indígena. Foi, inclusive, superintendente regional da agência em Roraima.
O caso de Gelio Fregapani é extremo, mas exemplar de como uma visão profundamente ideológica a respeito da Amazônia se enraizou nas Forças Armadas brasileiras – particularmente no Exército, a maior e mais politicamente influente delas. Essa visão está na origem de iniciativas como o Programa de Integração Nacional da ditadura empresarial-militar de 1964 a 1985, que massacrou Indígenas para abrir estradas e levar “homens sem terra a terras sem homens”. Gerou também uma ocupação destrutiva e empobrecedora na região, visível em cidades como Altamira, Medicilândia, Itaituba e Novo Progresso, no Pará. Compõe ainda o quadro de fatos que levaram os militares a conspirar pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. Essa ideologia é também constitutiva de generais que foram influentes no governo do extremista de direita Jair Bolsonaro (PL). E, por fim, aparece na visível má vontade com que as Forças Armadas se engajam no combate ao genocídio Yanomami.
O garimpo, defendido por militares influentes, causou genocídio na Terra Indígena Yanomami, com a morte especialmente de crianças. Foto: Lalo de Almeida/Folhapress
Para entender como essa ideologia surgiu e se infiltrou no pensamento militar é preciso voltar à década de 1950.
No coração do general Villas Bôas
O amazonense Arthur Cézar Ferreira Reis já era um veterano na política – participara da Revolução de 1930 e dos governos conservadores do presidente Eurico Gaspar Dutra (entre 1946 e 1947) e do governador paulista Ademar de Barros (1948) – quando Getúlio Vargas o chamou, em 1951, para integrar o grupo que viria a criar a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia. Comandou o órgão entre 1953 e 1955, ano em que saiu para dirigir o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia, também estatal.
A grande obsessão de Reis, porém, era denunciar o que chamava de “tentativa de internacionalização da Floresta Amazônica”. A isso dedicou A Amazônia e a Cobiça Internacional, um dos vários livros que escreveu. O provável ponto de partida para a decisão de escrevê-lo foi um acontecimento de 13 anos antes, em 1947: a tentativa de criação de um organismo multinacional que se chamaria Instituto Internacional da Hileia Amazônica. Apoiado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, a Unesco, ele deveria ser um centro de pesquisas com sede em Manaus em áreas como botânica e zoologia, do qual participariam os países e territórios que abrigavam a Amazônia – Brasil, Bolívia, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, França (Guiana Francesa), Reino Unido (Guiana) e Holanda (Suriname). Um acordo, o Convênio de Iquitos, chegou a ser assinado por parte desses governos em 1948. Mas o Instituto nunca chegou a existir, devido à oposição nacionalista em vários desses países – entre eles o Brasil.
“Na Europa, o Convênio fora recebido como uma oportunidade para expansão de capitais e de populações. É essa a informação que temos”, escreve Arthur Reis em seu livro. “A Amazônia está sendo considerada como espaço aberto ideal para receber excedentes populacionais (…), produzir os alimentos de que carecem aquelas multidões fustigadas pela fome inclemente e mortífera e para produzir a matéria-prima vegetal, animal e mineral de que carecem os grandes parques industriais do mundo”, vaticina o texto. Ironicamente, a produção de matérias-primas é hoje uma atividade largamente explorada por criadores de bois e vacas, plantadores de soja e grandes mineradoras transnacionais, cuja chegada à região foi incentivada pela ditadura.
A conclusão de Reis é apocalíptica: “A Amazônia está na mira de organismos internacionais, que veem nela o espaço disponível do futuro. Essa é uma verdade incontestável. Não me venham com a referência a outras regiões do mundo ainda por ocupar também. São muito menores e pertencem a países onde não é possível proceder com a ousadia por que [Reis parece ter querido dizer com que] se pretende fazer com relação ao Brasil”. O livro causou impacto – teve cinco edições entre 1960 e 1982.
É possível supor que a visão de Reis sobre a Amazônia tenha influenciado o marechal Castelo Branco, primeiro ditador militar após o golpe de 1964, a escolhê-lo para governar o Amazonas. A ditadura havia cassado o mandato do antecessor de Reis, um político filiado ao PTB, o mesmo partido do presidente deposto João Goulart. É certo que a obra de Reis segue em alta entre militares muito influentes. O general Eduardo Villas Bôas, que comandou o Exército entre 2015 e 2019 e foi decisivo em episódios recentes da vida pública brasileira, criou um instituto com o próprio nome após precisar passar para a reserva. Um dos projetos que ele promete realizar “em breve” é uma reedição de A Amazônia e a Cobiça Internacional numa coleção de livros intitulada “Pensadores do Brasil”.
Ferreira Reis fez parte de governos como o de Getúlio Vargas (à esq.) e sua ideologia permeou a ditadura militar desde o primeiro governante, Castelo Branco (à dir.). Fotos: Acervo UH/Folhapress
Cabe um parêntese sobre Villas Bôas. Nomeado comandante-geral do Exército por Dilma Rousseff (PT), ele e seu braço direito, o general Sérgio Etchegoyen, chefe do Estado-Maior do Exército, conspiraram pelo impeachment da presidenta. A informação é do próprio Michel Temer (MDB), o vice tornado presidente. Está em um livro com as memórias dele sobre o próprio mandato, escrito pelo filósofo e amigo Denis Rosenfield. Temer relata “várias conversas” com os chefes do Exército, em que ambos lhe pediam opiniões sobre “cenários com os quais trabalhar”. A aproximação se deu pelo desgaste na relação entre o PT e militares iniciado na demarcação da Raposa Serra do Sol, aprofundado com a eleição de Dilma (uma “terrorista”, na visão dos fardados da ditadura) e a decisão dela de criar a Comissão Nacional da Verdade. Esta “foi uma facada nas costas”, diria Villas Bôas numa longa entrevista ao antropólogo Celso Castro que se tornou seu livro de memórias. Criada para apurar crimes da ditadura, a Comissão da Verdade citou, em seu relatório final, o pai e o tio de Etchegoyen. Filhos de oficiais do Exército, Etchegoyen e Villas Bôas convivem e são amigos desde os primeiros anos da infância em Cruz Alta, no Rio Grande do Sul. Depois da posse de Temer (MDB), Villas Bôas seguiu comandando o Exército, e Etchegoyen foi para o Palácio do Planalto chefiar o recriado Gabinete de Segurança Institucional, o GSI.
Villas Bôas também atuou para abrir caminho para a eleição de Jair Bolsonaro. Postou numa rede social uma clara ameaça ao Supremo Tribunal Federal na véspera do julgamento de um habeas corpus que poderia garantir a Luiz Inácio Lula da Silva uma chance de disputar a eleição de 2018. “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”, disparou, no Twitter, na noite de 3 de abril daquele ano. “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”, escreveu em seguida. Dois dias depois, o Supremo negou a Lula a decisão que poderia mantê-lo fora da prisão e em campanha. Em seu livro de memórias, Villas Bôas confessou que as postagens foram atenuadas – mas aprovadas – por todo o Alto-Comando (o grupo de generais de quatro estrelas da ativa, topo da carreira) do Exército.
Com Bolsonaro eleito, o general agora aposentado ganhou um cargo no governo. Não foi o único: Augusto Heleno tornou-se ministro. Ambos têm em comum o fato de terem sido comandantes militares da Amazônia, ou seja, chefes de todas as unidades do Exército localizadas na floresta. Heleno ocupava esse cargo quando disparou contra a política do governo Lula para os Indígenas, em 2008: “Está completamente dissociada do processo histórico de colonização do nosso país. É lamentável, para não dizer caótica”. A frase tinha um alvo: a demarcação de Raposa Serra do Sol.
O general Eduardo Villas Bôas, um dos conselheiros de Bolsonaro, organizou seminários para discutir o Brasil e a Amazônia. Foto: Gabriela Biló/Folhapress
A partir de 2021, o Instituto Villas Bôas organizou seminários para discutir o Brasil em que a Amazônia foi um assunto constante. Eles reuniram conhecidos representantes do negacionismo climático brasileiro. Inclui Aldo Rebelo, que ironicamente foi ministro da Defesa de Dilma Rousseff entre 2015 e 2016, época em que era filiado ao Partido Comunista do Brasil; atualmente, está no MDB e tentou ser candidato a vice-prefeito na chapa bolsonarista em São Paulo. Passa pelo meteorologista Luiz Carlos Molion e o então chefe da Embrapa Territorial, Evaristo Miranda, que se tornaram dois dos cientistas preferidos da extrema direita e dos latifundiários brasileiros por negarem todas as evidências de que vivemos uma emergência climática. Prossegue com Ricardo Salles, à época ex-ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, e o general Augusto Heleno. Eles falaram em simpósios mediados pelo jornalista Alexandre Garcia, ex-comentarista da TV Globo, ex-assessor de João Figueiredo, o último dos ditadores militares, e hoje colunista de portais de extrema direita que veiculam notícias e desinformação.
Ao final de um dos eventos, Villas Bôas publicou uma mensagem de encerramento: “Amigas e amigos que sofrem conosco da indignação de ver nosso país ser esbulhado – o grande trunfo que o ambientalismo e indigenismo desfrutam, e a desinformação ampliada desonestamente pela divulgação de inverdades e distorções [sic]. Nosso propósito é restringir esse universo de desinformação. Nossos palestrantes, livres de ideologias, respaldam-se em fundamentos científicos ou no conhecimento da realidade, fatores que a opinião pública não tem acesso”.
A construção da Transamazônica (à esq.) marca o início da destruição da floresta, que anos depois enfrentou secas históricas como a do Rio Solimões (à dir.). Fotos: Folhapress e Michael Dantas/SUMAÚMA
SUMAÚMA pediu a Villas Bôas um comentário a respeito, com mensagens enviadas ao e-mail do instituto que leva seu nome e ao telefone celular dele – atualmente, atendido pela esposa e pelas filhas. Não houve resposta. As ligações para o celular e o telefone fixo listado no site do instituto não foram atendidas.
A reportagem também procurou Augusto Heleno. Um antigo assessor dele no Gabinete de Segurança Institucional disse que o general “não está concedendo entrevistas”. Pedimos que encaminhasse algumas questões a Heleno, e ouvimos que ele “tentaria”. Um telefone celular e um endereço de e-mail antigo, para os quais ligamos e enviamos mensagem, não estão mais ativos.
Os ideólogos da ditadura
“O general Golbery reformulou, na década de 1960, a grande manobra geopolítica de integração nacional. Preconizou então que, partindo-se da base ecumênica de nossa projeção continental (região em torno do triângulo Rio-São Paulo-Belo Horizonte), acelerássemos a integração à mesma [sic] da ‘plataforma central’ e, daí, inundássemos a Hileia amazônica. Esta é a manobra estratégica da frente do Planalto Central, em plena marcha.” Golbery do Couto e Silva (nota do nosso website: o General Golbery é gaúcho, nascido na cidade de Rio Grande), apelidado “Corcunda” ou “Corca” pelos adversários de caserna, atuava na comunidade de informações do Exército ao mesmo tempo que conspirava com o golpe de 1964. Implantada a ditadura, tornou-se peça fundamental de três de seus cinco governos – inclusive o primeiro, de Castelo Branco. É tido, por quem estuda as Forças Armadas, como um dos grandes formuladores da geopolítica do Exército.
O general Golbery do Couto e Silva foi o responsável por reformular, na década de 1960, a política de integração nacional. Foto: Moreira Mariz/Folhapress
Outro deles é o general Carlos de Meira Mattos. As aspas do parágrafo acima, sobre Golbery, foram retiradas de Uma Geopolítica Pan-Amazônica, livro que Meira Mattos publicou pela Biblioteca do Exército em 1979. A obra é tributária do livro escrito quase 20 anos antes por Arthur Reis. Meira Mattos propõe um “Tratado de Cooperação Amazônica” entre os países do bioma em que “para lograr um desenvolvimento integral […] é necessário manter o equilíbrio entre o crescimento econômico e a preservação do meio ambiente”. Mas celebra a abertura de estradas como “a ossatura da nossa estratégia de conquista da Amazônia”, das quais a coroa é “a grande transversal, cortando os espigões de leste para oeste, e ligando entre si as artérias longitudinais que seguiram esses divisores – a Transamazônica”. Hoje, é sabido que essas rodovias se tornaram vetores do desmatamento e da desigualdade social na região, além de terem causado o extermínio de Indígenas.
O plano fracassou, mas Meira Mattos seguiu convencido de que tinha razão. Em 2006, escreveu um artigo para a Revista da Escola Superior de Guerra do Exército no qual atacava “a propaganda e as pressões internacionais a favor desta tese de internacionalização revestidas das falácias pseudocientíficas” cujos “principais propagandistas são organizações internacionais não governamentais dos países ricos da Europa e dos Estados Unidos, presentes e atuantes na Amazônia brasileira através de suas agências e de missões religiosas dispondo de dinheiro farto e envolvendo a participação de brasileiros”. Aproveitou para defender o projeto Calha Norte, nome mais recente dos militares para ocupar a região, lançado em 1985, após o fim da ditadura.
Meira Mattos morreu um ano depois de publicado esse artigo, em 2007. Mas sua reputação segue intocada entre os pares: ele dá nome a um dos principais departamentos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Passar pela Escola é obrigatório para oficiais que desejem chegar ao topo da carreira: ela os prepara “para o exercício de funções de Estado-Maior, Comando, Chefia, Direção e de Assessoramento aos mais elevados escalões”. O Instituto Meira Mattos faz “a ligação da Eceme com o meio acadêmico e com centros de estudos estratégicos dentro e fora do país e pela condução de estudos, eventos e viagens de estudos estratégicos”.
O general Carlos Meira Mattos via as estradas abertas pela ditadura como ‘a ossatura para a conquista’ da Amazônia. Foto: Folhapress
Um fracasso completo
Professor titular sênior da Universidade Federal de São Carlos, a UFSCar, João Roberto Martins Filho é um dos mais antigos pesquisadores acadêmicos brasileiros a se debruçar sobre as Forças Armadas. Foi, também, o primeiro presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa, criada em 2005, e pesquisador em diversas universidades estrangeiras. A SUMAÚMA, ele disse que a visão sobre a Amazônia é um ponto de coesão entre os militares brasileiros.
“A ideia de proteger a Amazônia [da cobiça estrangeira] é um dos grandes fatores de união da ideologia do Exército. Isso vem dos anos 1950, ficou muito forte nos anos 1960 e 1970, durante a ditadura”, afirma Martins Filho. Para comprová-la, ele traz um exemplo – a defesa conjunta de líderes militares ao general Augusto Heleno, em 2019, após ele dizer que os críticos da política ambiental de Jair Bolsonaro deveriam “procurar sua turma”. A frase foi dita às vésperas de uma reunião dos 20 países mais ricos do mundo e depois de críticas da então chanceler alemã, Angela Merkel, e do presidente francês Emmanuel Macron.
Semanas mais tarde, um debate em Brasília reuniu o bolsonarista Eduardo Villas Bôas e o general da reserva Alberto Cardoso para tratar do tema. Ambos foram unânimes em ver um ataque injusto ao Brasil. A posição de Villas Bôas não foi surpresa; a de Cardoso foi – e muito. “Ele foi chefe da Casa Militar [extinta após a criação do Gabinete de Segurança Institucional] no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), era tido como um intelectual. Mas naquele debate foi que percebi que eram todos unidos [no tema]”, relembra o professor Martins Filho. Segundo registrou à época o Correio Braziliense, o general Cardoso disse que as críticas sobre “invasão de Terras Indígenas, agronegócio, mineração, meio ambiente” eram “instrumentos de fixação, de ataques ao Estado brasileiro. Há uma manobra externa, forte, nisso aí, e interna também”.
A visão dos militares de que a Amazônia precisa ser produtiva se mantém desde a ditadura. O general Augusto Heleno, que fez parte do governo Bolsonaro, se colocou enfaticamente contra a Raposa Serra do Sol. Fotos: Lela Beltrão/SUMAÚMA e Carolina Antunes/PR
Ainda estudante universitário, em meados dos anos 1970 Martins Filho viajou à Amazônia de ônibus e barco para conhecer o que Meira Mattos chamava de “a ossatura da estratégia conquista da Amazônia”. Ele conta que “foi um fracasso completo o projeto de colonização [da ditadura]. […] Entrava e saía gente do ônibus o tempo todo, e todos contavam a mesma história: ‘Vim para cá, não tive apoio nenhum, peguei malária, foi uma desgraça, não deu certo’”.
Ainda assim, as estradas que a ditadura rasgou se tornaram o caminho para o desmatamento da floresta. À beira delas surgiram cidades que cresceram. Algumas se tornaram polos de riqueza graças aos latifúndios que mataram a floresta para dar lugar à soja ou aos imensos rebanhos de bois e vacas criados para a produção de carne. Mas a maioria delas é pródiga em desigualdade social e violência. O crime organizado das grandes cidades do Sudeste invadiu a região e passou a controlar diversas áreas de garimpo – para o qual os militares costumam fazer vista grossa.
Nada disso leva os militares a reavaliarem sua visão da Amazônia, avalia Martins Filho. “Modernização seria entender que o problema ambiental é real e pode se voltar contra o Brasil. Mas a visão segue a mesma: nós é que descobrimos a Amazônia, boa parte das capitais surgiu como fortes [militares] e ninguém a conhece como nós. A Amazônia não nos guarda segredos”, ele explica.
Terras Indígenas como ‘Bálcãs’
“A visão de mundo dos militares sobre Indígenas e Amazônia não mudou desde a ditadura. E há um ponto de inflexão nela, que é a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol”, afirma Adriana Marques, professora do Instituto de Relações Internacionais e Defesa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “É quando o general Augusto Heleno se coloca enfaticamente contra [a demarcação] e surge uma crítica mais contundente às políticas governamentais [para a região].”
Adriana tornou-se doutora, em 2007, pela Universidade de São Paulo, com uma tese intitulada “Amazônia: Pensamento e Presença Militar”. É um trabalho precioso para quem busca entender como a prioridade estratégica dada à região pelos militares vai além da estratégia de defesa e passa pelo que ela classifica como uma intrincada relação entre interesses e elementos simbólicos.
“O discurso militar vê sua atuação na Amazônia como continuação do papel desempenhado pelos colonizadores portugueses na região. Isso mostra que os militares brasileiros não identificam o colonizador português como seu antípoda, (…) mas reverenciam-no como seu antecessor”, ela escreve. Noutro trecho, a professora da UFRJ afirma que “a região não é considerada um vazio demográfico apenas por ser despovoada no sentido estrito da palavra, mas por ser povoada, principalmente, por comunidades Indígenas”. Neste sentido, ela prossegue, trata-se “do vazio de uma população comprometida com a preservação da soberania brasileira sobre a região. A percepção de que os povos Indígenas que vivem na Amazônia podem ser cooptados por estrangeiros é uma constante no discurso militar”.
A professora também se debruçou sobre trabalhos apresentados por oficiais que se prepararam para o topo da carreira nos cursos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. “É recorrente nas monografias o uso de termos como balcanização e, até mesmo, mexicanização da Amazônia”, identifica. Há uma comparação entre os Bálcãs europeus – palco de guerras e instabilidades geopolíticas – e as Terras Indígenas. Para os militares, elas “representam uma ameaça à integridade territorial do Brasil não somente porque podem se converter em ‘enclaves étnicos’, mas, principalmente, porque o processo de criação das reservas seria orquestrado por estrangeiros que as utilizariam, numa segunda etapa, como pretexto para intervir militarmente na Amazônia”. Dito de outro modo, prossegue a professora, “os militares do Exército não reconhecem a demarcação como resultado da luta dos povos Indígenas pela recuperação de suas terras. Na visão castrense, os Indígenas seriam instrumentos de estrangeiros mal-intencionados, e não sujeitos de suas reivindicações”.
Os Indígenas brasileiros seguem lutando para fazer valer seus direitos 36 anos depois da promulgação da Constituição. Foto: Carl de Souza/AFP
O antropólogo Piero Leirner, professor titular da Universidade Federal de São Carlos, a UFSCar, pesquisa o universo militar há cerca de 30 anos. Para ele, é quando a Guerra Fria entre os Estados Unidos e a extinta União Soviética termina, no início dos anos 1990 – e, assim, em tese se extingue a ameaça do comunismo –, que se aguça o interesse dos militares pela Amazônia. “Aí, sim, eles aderem à tese da cobiça internacional, quando vem a Eco-92 [a segunda conferência da Organização das Nações Unidas sobre clima e meio ambiente, realizada em 1992 no Rio de Janeiro]. E começam a formular o Calha Norte como não só proteção de fronteiras, mas um enclave militar, uma zona de administração militarizada [na Amazônia]. Eles [os militares] são o principal polo de governabilidade na região.”
Outro pesquisador, o cientista social Guilherme Lemos, afirma: “As pesquisas indicam que a Amazônia se tornou central para os militares. Pautas como a demarcação de Terras Indígenas ou o combate ao desmatamento são vistas como estratégias para esconder o interesse internacional nas riquezas daquela região, tanto as minerais quanto as naturais. Essa é a coluna vertebral [do pensamento militar sobre a Amazônia]. E é muito mais do que a visão de um general aqui, um coronel ali: é a visão institucional da Força”. Lemos prepara sua dissertação de mestrado, na UFSCar, sobre a Raposa Serra do Sol e a presença militar na região. É orientado por Leirner.
É o tipo de coisa que costuma dizer o general Maynard de Santa Rosa, mais um dos formuladores geopolíticos do Exército. No site do Instituto Sagres, uma organização de militares, encontra-se um artigo em que Santa Rosa diz o seguinte: “Estranhamente, instituiu-se no Brasil o costume de criar reservas Indígenas e Quilombolas, sob questionáveis argumentos etnológicos, e em geral sem respaldo histórico, gerando problemas até mesmo na faixa de fronteira. Os chineses resolveram a questão de soberania sobre as áreas remotas do Tibete e do Sinkiang [Xinjiang] por meio de uma política de investimentos maciços em infraestrutura de transportes e migrações em massa de pessoas da etnia Han, fazendo suplantar as populações locais tibetana e uigure”. Atualmente, o general Santa Rosa é mais lembrado por sua passagem pelo governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), no qual foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República de janeiro a novembro de 2019.
A “solução chinesa para a questão de soberania” a que se refere o general foi considerada violação de direitos de populações minoritárias pela comunidade internacional. União Europeia, Reino Unido, Estados Unidos e Canadá impuseram sanções a Pequim por causa do encarceramento em massa dos uigures, que são muçulmanos. No que a China chama de “campos de reeducação” há relatos de tortura, trabalho forçado e abuso sexual. Nada que impedisse Santa Rosa de usar o caso como justificativa de um plano de megaobras na Amazônia, inclusive em eventos oficiais durante sua passagem pelo governo, como registrou à época uma reportagem do Intercept. O general recebe a mais alta aposentadoria paga pelo Exército, que é a da patente de marechal.
A Amazônia se tornou central para militares como o general Maynard de Santa Rosa, formulador geopolítico do Exército. Foto: Pablo Valadares/Câmara dos Deputados
SUMAÚMA enviou uma pergunta a Santa Rosa a esse respeito. “Não propus a solução chinesa para o problema amazônico, só citei como exemplo de como os chineses resolveram problemas correlatos centenários”, ele respondeu, por escrito. “O nosso problema decorre do desconhecimento da região, enquanto pessoas que a conhecem aproveitam-se para implementar os próprios interesses. As ONGs [organizações não governamentais] ambientalistas foram criadas como instrumento estratégico para poder trabalhar livremente nos territórios dos países soberanos em benefício da oligarquia financeira global”, afirmou. Para o general aposentado, a partir da Constituição de 1988 “o Estado perdeu a possibilidade legal de ingerir nas ONGs [e] foi extinto o Conselho de Segurança Nacional, que tinha o poder de veto dos empreendimentos em áreas como a Faixa de Fronteira. O resultado foi a multiplicação indiscriminada de reservas ambientais, Indígenas e Quilombolas que impedem a exploração dos recursos naturais e o desenvolvimento regional”. Santa Rosa ressalvou que sua opinião “não é, necessariamente, a do Exército”, e que tem “convicções pessoais [decorrentes] de dez anos de serviço em diferentes unidades militares da região e em estudos autodidáticos”.
‘Os índios [sic] gostam dos garimpeiros’
Em 1995, a Biblioteca do Exército publicou A Farsa Ianomâmi, escrito por um coronel chamado Carlos Alberto Menna Barreto (nota de nosso website: é gaúcho, nascido em Porto Alegre). Na capa, um homem branco e de cabelos claros, presumidamente europeu, retira uma máscara que o fazia se passar por Indígena. Dá para ler o livro por essa imagem: o preconceito contra a demarcação da Terra Indígena Yanomami é embalado como nacionalismo: “Caso persista a indiferença do governo brasileiro, dentro em breve terão estabelecido ali outro território de tribos independentes, como primeiro passo de um novo Pirara e da perda definitiva daquela ‘terra de riquezas e delícias’ que os brasileiros chamam de Roraima”. O livro foi editado com dinheiro público: a Biblioteca do Exército, mais conhecida pela sigla Bibliex, é a editora da Força terrestre e se autodefine como “uma centenária instituição cultural do Exército brasileiro que contribui para o provimento, a edição e a difusão de meios bibliográficos necessários ao desenvolvimento e aperfeiçoamento da cultura profissional-militar e geral”.
Na apresentação, elogios do general Carlos de Meira Mattos: “Há um propósito velado atrás de tudo isto – a internacionalização da Amazônia. […] O autor, ferido na sua sensibilidade de brasileiro patriota, responsável pela proteção de nossa soberania naquela região fronteiriça, escreveu um relato veemente. Faz o seu grito de protesto […] contra a farsa que se armou em torno da questão ianomâmi [sic]”. O livro foi recomendado, algumas vezes, por Olavo de Carvalho, autodeclarado filósofo e ideólogo da extrema direita brasileira, que morreu em 2022.
Quem também se voltou contra os Yanomami foi o coronel Gelio Fregapani, em artigo para sites de extrema direita que tratam de questões militares. Em 2014, numa entrevista para a Revista Verde-Oliva, publicação oficial do Exército, ele falou sobre a “perigosa situação Indígena” e foi didático: “O Exército tem que pensar e implementar ações para conseguir aliados entre índios [sic] e, principalmente, garimpeiros. Estes últimos, na situação atual, seriam a chave do sucesso ou do fracasso”.
Fregapani, que atualmente tem 88 anos, concedeu entrevista a SUMAÚMA. Cortês e solícito, as respostas que deu ao longo dos 15 minutos de conversa por telefone são uma espécie de compilação do pensamento majoritário entre militares sobre a Amazônia. “Eu amo a floresta, mas a floresta não tem interesse real [para ninguém]. O interesse real são os minérios que estão aflorando [nela]”, afirmou.
O discurso do coronel contraria todas as evidências reunidas por cientistas, pesquisadores e órgãos públicos sobre os problemas da região. “Os garimpeiros não deixam traço de sua passagem. O mal que causam ao meio ambiente é uma ilusão, uma falácia. Desmatam uma área que não passa de um quarteirão de uma cidade. Na verdade, os índios [Indígenas] gostam deles, porque lhes dão comida. Qual o problema dos índios? É fome. A floresta pode sustentar um grupo pequeno. Mas, à medida que o grupo fica maior, não sustenta.”
A mineração ilegal abre feridas enormes na floresta, como essa na Terra Indígena Munduruku, ao contrário do que os militares afirmam. Foto: Marizilda Cruppe/Amazônia Real
Fosse verdade, os portugueses não teriam encontrado ninguém ao invadirem o que hoje é o Brasil, no século 16, época em que aqui viviam estimados 2,4 milhões de Indígenas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o IBGE. Como é provado pela arqueologia, a Amazônia chegou a ter entre 8 milhões e 10 milhões de habitantes centenas de anos antes da sua invasão pelos europeus. Tampouco os militares, que abriram estradas na Amazônia durante a ditadura, teriam se deparado com a resistência de Indígenas que defendiam os territórios em que viviam fazia centenas de anos e, em algumas porções da Amazônia, comprovadamente, havia 8 mil anos.
Uma afirmação de Fregapani, em particular, evidencia a utilidade que os militares enxergam na presença de garimpeiros e grileiros de terras na floresta. “Se o Brasil parasse de perseguir os garimpos, acabaria com o desemprego. Porque iriam 2 milhões [de pessoas] para lá [a Amazônia]. Em caso de guerra, nós dominaríamos totalmente a floresta, sem problema nenhum. Imagina o que seriam 2 milhões na retaguarda de um possível invasor. Nenhum exército [inimigo] aguentaria.”
A declaração ajuda a entender por que ainda não cessou o genocídio em curso na Terra Indígena Yanomami. Denunciado em janeiro de 2023 por SUMAÚMA, ele tem como causa principal a invasão do território pelo garimpo ilegal. O Exército tem há décadas dois pelotões de fronteira na Terra Indígena e, ao todo, 25 mil militares em toda a Amazônia, mas não foi capaz de dar conta de um número muito menor de garimpeiros e criminosos organizados. As Forças Armadas hesitaram em interditar o espaço aéreo sobre a região, medida fundamental para estrangular a infraestrutura dos garimpos, alimentada por pequenos aviões que operam em pistas clandestinas na floresta. Fecharam um posto de apoio que era usado para reabastecer helicópteros do Ibama que atuam na região. Quando demandadas a entregar cestas básicas aos Yanomami, prestaram um serviço a tal ponto irregular e caro que o Ministério dos Povos Indígenas preferiu contratar uma empresa privada de táxi aéreo para prestá-lo.
A operação de assistência ao Território Yanomami, em 2023, contou com pouca ajuda do Exército. Foto: Michael Dantas/AFP
Para a pesquisadora Adriana Marques, da UFRJ, as crenças dos militares a respeito da Amazônia seguem as mesmas entre os oficiais mais jovens. “Isso se transmite mais pelo processo de sociabilidade deles do que pelo que ensinam na Aman [Academia Militar das Agulhas Negras, que prepara todos os oficiais do Exército]. Existe um período, na formação dos novos oficiais, em que eles vão para a Amazônia fazer um treinamento em guerra na selva. E lá ouvem essas narrativas todas sobre a cobiça internacional em relação à Amazônia, o papel deles para proteger a região”, ela explica.
Ainda que não tenha um papel central na carreira de todos os militares, a ideologia sobre a floresta é o que Adriana chama de “elemento central de oposição” a políticos progressistas, organizações não governamentais, Igreja Católica progressista e líderes estrangeiros. “Falas como as do [presidente francês Emmanuel] Macron ou do cacique Raoni ativam algo que está no imaginário [militar]”, afirma ela, lembrando as críticas de ambos à Ferrogrão, a ferrovia cobiçada pelos latifundiários de soja de Mato Grosso para levar sua produção a um dos portos fluviais da Amazônia.
“Essa visão conspiratória convive, digamos assim, com uma visão mais racional. Os militares cooperam, por exemplo, com muitas organizações não governamentais, não são todas as que veem como conspiratórias. Têm abertura para conversas com especialistas civis, até antropólogos, sociólogos, entre as gerações mais jovens, o cuidado de não ter uma postura inadequada no contato com os povos Indígenas, até por uma preocupação legal. Mas o que não mudou e orienta tudo isso é a visão de que estão ali como agentes civilizadores. Essa visão tutelar se expressa de maneira muito clara na Amazônia, ainda que mude conforme os momentos políticos. No governo Bolsonaro, voltou a visão conspiratória [sobre a cobiça internacional]. Hoje, no governo Lula, o foco da atuação na Amazônia é na assistência humanitária”, afirma a pesquisadora da UFRJ.
SUMAÚMA enviou ao Exército uma série de perguntas objetivas a respeito da Amazônia, da doutrina militar para a floresta, das críticas feitas por pesquisadores e dos erros históricos cometidos na região pela ditadura. Em vez de responder a elas, a Força enviou uma nota: “O Exército atua na sua missão constitucional de defesa da Pátria e, por meio de ações subsidiárias, cooperando há décadas com o governo e com agências na proteção da Amazônia, incluindo os seus ativos, nas áreas dos povos originários, no combate a incêndios e a crimes transfronteiriços, dentre outros. Contribui com o desenvolvimento nacional, observando os critérios estabelecidos na legislação e normas em vigor relacionadas ao meio ambiente”.
‘Eterno comandante’
O 17 de março de 2023 foi um dia de festa no Centro de Instrução de Guerra na Selva, o CIGS, em Manaus. A instalação que prepara militares do Exército para o combate na floresta recebeu Gelio Fregapani como visitante ilustre. Sexto oficial a comandar a unidade, o coronel da reserva é celebrado como um herói pelos militares que servem na Amazônia, segundo vários pesquisadores relataram a SUMAÚMA. É também o autor das “Leis da Guerra na Selva” do Exército, uma breve lista de instruções como “pense e aja como caçador, não como caça” e “combata sempre com inteligência e seja o mais ardiloso”.
Fregapani foi recebido com honras pelo atual comandante da unidade, o coronel Glauco Corbari Corrêa. “Na oportunidade, o coronel Corbari agradeceu ao Eterno Comandante [Fregapani] pelos ensinamentos transmitidos, pelas orientações recebidas e por todo o legado deixado, em particular nas questões de experimentação doutrinária dos Cursos de Operações na Selva e do próprio CIGS, sendo que muitas delas perduram até os dias atuais, com reflexos altamente positivos para o Exército”, diz texto que registra a visita e está publicado no site da unidade.
SUMAÚMA perguntou ao Exército qual o motivo de receber com honras um oficial aposentado que chegou a ser investigado por cooperar com uma guerrilha e que tem um histórico de declarações consideradas preconceituosas e cientificamente incorretas a respeito de povos Indígenas. A corporação não respondeu. A Polícia Federal informou que arquivou, em 2012, a investigação que mirava Fregapani. Por isso, ele não foi indiciado.
Atualmente com 88 anos, Gelio Fregapani recebe desde 1989 uma aposentadoria equivalente ao salário de um general de brigada. Ocasionalmente, dá entrevistas e escreve artigos para veículos de extrema direita, em que é apresentado como “uma lenda”. Exatamente como continua a ser visto pelos colegas militares da Amazônia.
Mesmo com dois pelotões próximos à Terra Yanomami, o Exército não deteve garimpeiros que levaram morte ao território. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Reportagem e texto: Rafael Moro Martins
Edição: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Douglas Maia e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum