Territórios indígenas ameaçados pela morosidade do Estado. Entrevista com Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi.

A pesada engrenagem burocrática da formalização legal das Terras Indígenas no Brasil não é o único desafio à garantia dos direitos dos índios. Conforme Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi, que concederam entrevista por e-mail à IHU On-Line, a Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, situada na região norte do Pará, encontra-se formalmente ainda na etapa de identificação, uma vez que foram cumpridas cinco das sete etapas do processo legal, faltando a homologação presidencial e o registro em cartório.

 

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“Assim como a história do Brasil pode ser lida como uma história de conquistas territoriais, também pode ser lida como uma história de perdas territoriais”, afirmam pesquisadoras

Foto: http://bit.ly/J5rdMV

“O relatório antropológico de identificação deste território, entretanto, encontra-se devidamente concluído e tecnicamente aprovado pela Funai desde abril de 2013. A presidência tem prometido sua assinatura e publicação desde essa época, mas infelizmente tem encontrado dificuldades para fazê-lo. A morosidade deste processo de regularização fundiária vem produzindo uma situação de extrema insegurança, tendo, nos últimos anos, instaurado um clima de desconfiança entre os povos indígenas e quilombolas da região, vizinhos há mais de 150 anos”, apontam as pesquisadoras. O Estado argumenta que não procedeu o registro, pois há uma sobreposição territorial de terras para índios e quilombolas, mas o argumento não foi aceito pelo Ministério Público Federal – MPF. “O MPF instaurou um inquérito para acompanhar o processo de demarcação em 2011 e, não por acaso, recomendou que a Funai proceda à assinatura e publicação do relatório, uma vez que não há justificativa técnica para que o mesmo não seja assinado e publicado”, sustentam. Os indígenas e quilombolas da região recolhem assinaturas em uma petição pública pedindo mais agilidade da União.

Compreender a complexidade do tema requer ter em conta o processo histórico de constituição do Brasil. Segundo as pesquisadoras, a distribuição das Terras Indígenas no país reflete o padrão histórico de exploração econômica e que remonta a 1500. “De tal modo que assim como a história do Brasil pode ser lida como uma história de conquistas territoriais, também pode ser lida como uma história de perdas territoriais. Tudo depende do ponto de vista que adotemos: indígena ou não indígena. Do ponto de vista dos povos indígenas a história do Brasil se confunde com a história de suas lutas, principalmente da luta pelo direito à terra.”

Maria Denise Fajardo Grupioni possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo – USP. É pesquisadora do Núcleo de História Indígena e do Indigenismo da USP. Atualmente integra o Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia Social desta mesma Universidade, onde realiza atividade docente e de pesquisa, com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – Fapesp.

Luisa Gonçalves Girardi, Bacharel em Ciências Sociais e mestre em Antropologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. É Pesquisadora do Núcleo de Antropologia e Arqueologia da Amazônia – Naada/UFMG, possui experiência entre os povos indígenas da bacia do Trombetas, na Amazônia Setentrional, região à qual dedica-se desde 2010.

Confira a entrevista.

Foto: http://bit.ly/J5rdMV

IHU On-Line- Em que consiste o processo da Funai para liberar a homologação de área de mais de 2 milhões de hectares na região norte do Pará? Qual a atual situação desse processo?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi – Os direitos territoriais dos povos indígenas que vivem no Brasil estão previstos no Artigo 231 da Constituição de 1988. Até hoje são regulamentados pelo Decreto 1775/1996. Este dispositivo – atualmente ameaçado pela pressão de setores econômicos ligados ao e à mineração – prevê que a regularização fundiária das Terras Indígenas brasileiras deve passar por um longo processo, que inicia-se com a realização de estudos antropológicos de identificação e delimitação e termina com a homologação e registro do território identificado.

Resumidamente, conforme o Decreto, os processos devem atender às seguintes etapas: (1) produção de estudos antropológicos de identificação e delimitação; (2) aprovação dos estudos e publicação no Diário Oficial da União pela Presidência da Fundação Nacional do Índio – Funai; (3) abertura de período de contestação dos estudos por quaisquer interessados (90 dias a partir da publicação do resumo do relatório no Diário Oficial da União); (4) expedição de portaria que declara os limites da Terra Indígena pelo Ministro da ; (5) realização da demarcação física da área declarada; (6) homologação da Terra Indígena por decreto presidencial; (7) registro da TI em cartório.

A Terra Indígena Kaxuyana-Tunayana, situada na região norte do Pará, encontra-se formalmente ainda na etapa de identificação. O relatório antropológico de identificação deste território, entretanto, encontra-se devidamente concluído e tecnicamente aprovado pela Funai desde abril de 2013. A presidência tem prometido sua assinatura e publicação desde essa época, mas infelizmente tem encontrado dificuldades para fazê-lo. A morosidade deste processo de regularização fundiária vem produzindo uma situação de extrema insegurança, tendo, nos últimos anos, instaurado um clima de desconfiança entre os povos indígenas e quilombolas da região, vizinhos há mais de 150 anos. O governo chegou a afirmar que aguarda que seja resolvida a questão da sobreposição de terras indígenas e quilombolas para publicar o relatório, desconsiderando que, na verdade, é a própria indefinição que tem produzido a tensão na região.

O Ministério Público Federal instaurou um inquérito para acompanhar o processo de demarcação em 2011 e, não por acaso, recomendou que a Funai proceda à assinatura e publicação do relatório, uma vez que não há justificativa técnica para que o mesmo não seja assinado e publicado. Portanto, neste, como em vários outros processos de regularização fundiária de terras indígenas atualmente parados, não estamos diante de uma questão técnica, e sim claramente diante de uma questão de vontade política.

IHU On-Line – Qual a situação da terra indígena de Oriximiná, onde vivem cerca de 3,5 mil índios?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi – Oficialmente vinculadas ao município de Oriximiná, existem hoje três Terras Indígenas devidamente homologadas (TI Zo’é, TI Nhamundá-Mapuera e TI Trombetas-Mapuera) e outra em processo de demarcação (TI Kaxuyana-Tunayana). As quatro áreas são tradicionalmente ocupadas por diversos povos indígenas que, em conjunto, possuem uma população estimada em 3.500 pessoas. Na TI Kaxuyana-Tunayana existem 15 aldeias, distribuídas ao longo da calha dos rios Nhamundá, Trombetas e seus afluentes, Cachorro e Mapuera. Estas aldeias são tradicionalmente ocupadas pelos Kaxuyana e Tunayana – que dão nome às áreas–, mas também pelos Hixkaryana e Waiwai. Juntas, as aldeias possuem uma população estimada em 500 pessoas, conforme levantamento realizado em 2010. Também existem evidências que sugerem a presença de povos indígenas isolados, isto é, de grupos que, voluntariamente, têm evitado o contato com outros índios e não índios na região.

A TI Kaxuyana-Tunayana faz fronteira com as outras Terras Indígenas existentes na região e é vizinha de Unidades de Conservação de Proteção Integral, Uso Sustentável (Reserva Biológica Trombetas, Estação Ecológica Grão-Pará, Floresta Estadual do Trombetas, Floresta Estadual de Faro) e de Territórios Quilombolas (Cachoeira Porteira e Alto Trombetas). A região em que as aldeias localizam-se é de difícil acesso, e por isso mantiveram-se, até hoje, preservadas da exploração agropecuária, hidroelétrica, madeireira e minerária. A existência e permanência deste conjunto de áreas protegidas é extremamente importante para a manutenção do modo de vida dos povos locais, que dependem, sobretudo, da agricultura familiar, caça, coleta e pesca. Os serviços de educação e saúde nas aldeias das Terras Indígenas já homologadas são existentes, ainda que precários. Embora a maioria das aldeias possua escolas de ensino fundamental e pequenos postos de saúde, faltam equipamentos, infraestrutura e materiais. Já nas aldeias da TI Kaxuyana-Tunayana, em processo de regularização, a presença de dentistas, enfermeiros e médicos é rara e as aldeias mais distantes não possuem sequer Agentes Indígenas de Saúde – AISs ou Agentes Indígenas de Saneamento – AISANs. Neste sentido, a regularização fundiária é importante também para que estes serviços sejam garantidos com mais facilidade.

IHU On-Line- Quando o processo de regularização fundiária desta terra foi iniciado?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi – A demanda indígena pela regularização de seu território de ocupação tradicional remonta ao início dos anos 2000. Em 2003, as lideranças indígenas protocolaram na Coordenação Geral de Identificação e Delimitação da Funai documento no qual apresentaram um mapa detalhado de sua área de ocupação tradicional e solicitaram o reconhecimento pelo órgão indigenista de sua terra tradicionalmente ocupada. No mês de agosto de 2005, foi formalizada, na Coordenação de Identificação e Delimitação da Funai, sua demanda de estudo e regularização fundiária em área contígua à Terra Indígena Trombetas/Mapuera. Mas somente em julho de 2008 a Funai constituiu Grupo Técnico com o objetivo de realizar o estudo de identificação e delimitação da Terra Indígena Kaxuyana e Tunayana (Portaria 875 de 31/07/2008). Esse estudo, tecnicamente aprovado em abril de 2013, está à espera de assinatura pela Presidência da Funai e da publicação no Diário Oficial da União.

IHU On-Line – Em que consiste a proposta de mudança do Ministério da Justiça no processo de demarcação de terras indígenas?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi – No último mês, José Eduardo Cardozo, Ministro da Justiça, fez circular entre as lideranças indígenas que integram o Conselho Nacional de Política Indigenista – CNPI uma minuta de portaria ministerial para encaminhar a mudança do procedimento que orienta a demarcação das Terras Indígenas no Brasil, o que vem sendo anunciado desde maio deste ano. A minuta propõe o acréscimo de diversos procedimentos administrativos ao Decreto 1775/1996 – que, como mencionado, hoje regulamenta os processos de demarcação – e, de acordo com o discurso oficial, tem o objetivo de “diminuir a judicialização”.

A proposta, entretanto, burocratiza os procedimentos necessários para a regularização fundiária das Terras Indígenas, além de propor a formalização da intervenção de interessados nos processos de demarcação desde o seu início. Na prática, essa burocratização deve paralisar as demarcações, e por isso a proposta não foi bem recebida pelo movimento indígena.

IHU On-Line- Há uma solução jurídica para a demarcação e homologação das terras indígenas?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi – Para a demarcação e homologação das áreas existe solução jurídica, desde que não haja nenhum tipo de sobreposição em termos de ocupação e uso.

Em havendo sobreposição, tanto devido à presença de outras populações tradicionais (quilombolas, ribeirinhos, etc.) quanto de unidades de Conservação, como é o caso da TI Kaxuyana-Tunayana, que encontra-se sobreposta por uma comunidade quilombola (Cachoeira Porteira) e por uma Floresta Estadual (Flota Trombetas) no Pará, neste caso até hoje não existe solução jurídica. Os problemas causados por tal sobreposição têm tensionado as relações entre índios e quilombolas na região e não foram até o momento equacionados. Se por um lado os processos de regularização fundiária, tanto da ocupação indígena quanto quilombola, remontam ao início dos anos 2000, em dezembro de 2006 o governo estadual criou as Florestas Estaduais Trombetas (Decreto 2.607, de 04/12/2006) e Faro (Decreto 2.605, de 04/12/2006) sobrepostas às terras ocupadas não só pelos quilombolas de Cachoeira Porteira mas também pelos índios Kaxuyana e Tunayana. E, no caso da Flota Trombetas, também pela comunidade quilombola Ariramba (no limite leste, no município de Óbidos). A criação dessas Flotas desrespeitou os direitos constitucionais destas populações às suas terras bem como o direito à consulta livre, prévia e informada assegurado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT. A sobreposição com a Unidade de Conservação permanece como mais uma questão a ser equacionada nesse processo. Os índios e quilombolas dessa região se conhecem há mais de 150 anos, mais precisamente, desde a época da Cabanagem (1836), quando os quilombolas subiram o rio Trombetas em busca de refúgio, e foram dar em territórios indígenas. Avizinhando-se, estranharam-se, confrontaram-se, e por fim aliaram-se, estreitando relações não só em torno da atividade castanheira (os índios extraíam castanha em troca das mercadorias levadas pelos negros a partir de Óbidos e Oriximiná), como também em torno de laços de compadrio, reciprocidade e, eventualmente, de casamentos. Laços estes que, com o tempo e as mudanças no contexto geopolítico e econômico da região, enfraqueceram-se, dando lugar, tanto da parte dos índios quanto dos quilombolas, a novas relações com novos agentes, focadas não mais na interação preexistente, mas na quase ausência de interação. Mais recentemente, no início dos anos 2000, a demanda pela regularização fundiária acabou por colocar índios e quilombolas em lados opostos uma vez que trouxe a necessidade de se estabelecer limites claros num espaço até então compartilhado em uma convivência regida por regras próprias, baseadas na busca de bom senso por ambas as partes e na informalidade. A nosso ver, o processo foi acirrado pela dificuldade dos órgãos governamentais em estabelecer uma agenda positiva de diálogo na busca da construção de uma solução acordada, na falta de uma solução jurídica predefinida para esse tipo de situação fundiária.

IHU On-Line – Qual é hoje a situação mais complicada em torno da demarcação e homologação de terras indígenas no país? Entre as etnias, quais vivem em condição mais difícil no que se refere ao direito à terra?

Maria Denise Fajardo e Luisa Girardi – Basta olharmos para a distribuição das Terras Indígenas no mapa do Brasil para vermos que as maiores terras indígenas encontram-se na Amazônia, e as menores espalham-se rarefeitamente pelo resto do país. Isso é reflexo de um processo histórico de avanço da exploração econômica, de toda costa em direção ao interior, e do sul em direção ao norte do Brasil, que remonta a 1500. De tal modo que, assim como a história do Brasil pode ser lida como uma história de conquistas territoriais, também pode ser lida como uma história de perdas territoriais. Tudo depende do ponto de vista que adotemos: indígena ou não indígena. Do ponto de vista dos povos indígenas, a história do Brasil se confunde com a história de suas lutas, principalmente da luta pelo direito à terra. Neste sentido, o artigo 231 da Constituição de 1988 representa uma vitória no âmbito dessa luta. Mesmo assim, ainda hoje, os povos indígenas que habitam regiões exploradas por setores econômicos vinculados à agropecuária, às hidroelétricas, à indústria madeireira e à mineração vivenciam situações bastante delicadas. Os Guarani Kaiowá e os Terena, no Mato Grosso do Sul, e os Tupinambá, no sul da Bahia, têm experimentado um cotidiano extremamente violento, marcado pelo constante confronto com latifundiários. Conforme relatório publicado pelo Conselho Indigenista Missionário – CIMI, 60 índios foram assassinados no país em 2012, 37 dos quais no Mato Grosso do Sul. Este ano não foi muito diferente: no último mês recebemos notícias sobre o incêndio de um ônibus escolar que transportava alunos terena, sobre o assassinato de Ambrósio Vilhalva, importante liderança guarani-kaiowá e, por fim, sobre o Leilão da Resistência, em que os ruralistas angariaram mais de R$ 640 mil para “resolver a questão indígena” no Mato Grosso do Sul. A situação é impressionante e preocupante, e evidencia o flagrante desrespeito dos direitos dos povos indígenas que vivem no país.