Rute Pina
Brasil de Fato, São Paulo (SP),4 de Janeiro de 2019 às 09:37
Medida de Bolsonaro vai afetar pelo menos 232 áreas que estavam com estudos em andamento na Funai / Mídia NINJA / Mobilização Nacional Indígena
As medidas já anunciadas e as propostas do presidente de extrema direita Jair Bolsonaro (PSL) para a população indígena perpetuam uma política colonial já abolida, inclusive, de normas internacionais sobre o tema, diz o jurista Carlos Frederico Marés. Ele foi presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre 1999 e 2000.
“Tem que ser chamada por esse nome mesmo: ela é colonial, no sentido que ela coloniza os índios, transformando-os em trabalhadores [na colônia] para a ‘metrópole’”, pontua, comparando as iniciativas do presidente da República ao Pacto Colonial, o conjunto de leis que regulamentava a relação entre Portugal e o Brasil.
Uma das primeiras medidas de Bolsonaro foi transferir a demarcação de terras indígenas e quilombolas, que foi competência da Funai e do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) por três décadas, para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) — pasta que não tem capacidade, atualmente, para fazer os estudos técnicos, afirma o ex-presidente do órgão.
Marés, que também foi procurador Geral do Estado, leciona Direito Agrário e Socioambiental na Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Em entrevista ao Brasil de Fato, realizada por telefone, ele pontuou que a transferência da demarcação de terras foi um jeito encontrado pelo governo de burlar uma obrigação constitucional do Estado.
A medida de Bolsonaro vai afetar pelo menos 232 áreas que estavam com estudos em andamento na Funai.
“O que estão dizendo, transferindo a demarcação para o [Ministério da Agricultura], é o seguinte: ‘é uma obrigação do Estado fazer a demarcação, mas nós não vamos fazer’. Poderia sair uma lei dizendo ‘não vamos fazer mais demarcação’, porque como candidato, ele [Bolsonaro] disse que não haveria mais um centímetro de demarcação para terras indígenas? Não, porque é uma obrigação dada pela Constituição. Então, o que ele faz é colocar em um órgão que não vai fazer demarcação.”
A Funai, lembra Marés, já se encontrava em processo de enfraquecimento. Agora, com a transferência para Ministério das Mulheres e da Família, o órgão deve ter mais dificuldades de orçamento que dêem conta das necessidades institucionais de suas políticas.
Confira a íntegra da entrevista.
Brasil de Fato: Qual o significado político de deixar as demarcações de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, comandado pela ruralista Tereza Cristina?
Carlos Frederico Marés: Não é de hoje que as forças contrárias aos indígenas, que entendem que eles devem ser integrados, tentam tirar a demarcação. Eles acreditam que, se não se demarcam as terras, não existe terra indígena.
Para eles, demarcação é o centro nevrálgico dessa ideia da integração. Mas isso é um equívoco. Eles entendem que, assim que demarcada a terra indígena, eles são titulares da terra e podem ser “índios para sempre”. Mas isso é errado. Primeiro, porque é um equívoco colonial achar que os indígenas não devem ter terras e devem se integrar como trabalhadores rurais em empresas rurais.
Em segundo lugar, porque a Constituição de 1988 e as regras internacionais de direitos dos povos indígenas não fazem força na questão da demarcação. A demarcação é importante, mas é secundária. O importante é o conceito de terra indígena. A Constituição brasileira diz muito claramente que a terra indígena são aquelas ocupadas pelos povos indígenas — e define mais ou menos o que é essa ocupação. Ou seja, a terra indígena é indígena, independente da demarcação. A demarcação é um processo posterior.
Manifestação durante o 14º Acampamento Terra Livre, em Brasília, 2017. Foto: Mídia NINJA / Mobilização Nacional Indígena
Essas forças anti-indígenas queriam destruir a demarcação, num primeiro momento com propostas de transferir a demarcação para o Congresso porque aí não haveria mais novas terras. O Congresso não sabe, não pode, não tem competência para demarcar. E não o faria.
A demarcação, antes da década de 1990, era muito mais simplificada porque era uma aplicação direta da Constituição. A partir do decreto de demarcação, ela ficou um pouco mais complicada. Sempre as ideias anti-indígenas são de complicar a demarcação.
Agora, eles podem dizer simplesmente “não demarcamos mais”? Não, não podem dizer porque a Constituição afirma que é obrigação do Estado brasileiro demarcar as terras indígenas.
Professor, outra dúvida que fica é com relação a legalidade dessa medida. Tem lastro jurídico essa decisão de transferência da competência das demarcações por meio de uma medida provisória?
O Ministério da Agricultura é um órgão do Estado. E a obrigação é do Estado. Portanto, se o Estado vai fazer pelo Ministério da Agricultura, da Justiça, pela Funai ou vai criar um órgão especial para demarcação de terras, tudo bem. O Estado pode escolher a forma como vai ser feita a demarcação. Então, não seria inconstitucional por medida provisória aprovada, por lei. Hoje, a definição de quem faz a demarcação é por lei e pelo decreto de 1997 de Fernando Henrique [Cardoso], que dá o rito. Este rito se mantém porque, para mudá-lo, teriam que alterar o decreto.
O Ministério da Agricultura tem capacidade para isso? Hoje não. Não tem capacidade técnica para isso. Pode ter? Pode, basta contratar as pessoas. Então, vai ter que chamar as pessoas da Funai. Mas a Funai está em outro Ministério, foi colocado no Ministério da Mulher e da Família.
E a Funai já vinha em processo de sucateamento. Como você, que esteve na presidência do órgão, enxerga esse processo e como ele se intensifica agora?
A Funai vem sendo, há muito tempo, sucateada. São dois problemas.
O primeiro, é que os antigos funcionários da Funai eram os abnegados defensores indígenas. Eram funcionários que gostavam e tinham ligação com a matéria [indígena]. Depois, de um tempo para cá, houve concursos. Já não perguntavam se gostavam do tema, era um trabalho como outro qualquer. E isso é muito ruim, do ponto de vista da instituição. Ademais disso, são pouquíssimos os concursos. Então, a Funai foi ficando apequenada e com dificuldades.
Além disso, os recursos foram diminuindo. A Funai é um dos órgãos que mais têm atividades no Brasil porque atua nos lugares mais remotos. E ela precisa de orçamento que comporte coisas que outros órgãos não precisam, como, por exemplo, um avião. Se a Funai não tem avião, ela não chega em boa parte das aldeias. A Funai é um órgão difícil de lidar, atua muito enraizado em lugares muito distantes, então precisa de estrutura que outros órgãos não têm.
Os governos, em geral, não entendem isso e acham que é uma bobagem a Funai ter uma estrutura tão grande assim. Então, isso tem dificultado.
A Funai tem sido enfraquecida, mas tem ainda um corpo de funcionários de alta qualidade, que trabalham com empenho na questão indígena. E também tem uma outra força que outros órgãos do Estado não têm: os próprios indígenas. Os indígenas têm a Funai como um órgão deles e, por isso, estão presentes, participam, fazem atividades. Então, a Funai é, de um lado, um órgão enfraquecido pelo Estado; mas, por outro lado, tem uma força do movimento social indígena muito grande. O fato de deslocar esse órgão, enfraquecido, em um Ministério absolutamente fraco, que não tem orçamento, é um problema e vamos ter grandes dificuldades com as políticas indigenistas daqui para frente.
O que eu quero dizer é: a demarcação é um detalhe. O que estão dizendo, transferindo a demarcação para o [Ministério da Agricultura], é o seguinte: “é uma obrigação do Estado fazer a demarcação, mas nós não vamos fazer”. Poderia sair uma lei dizendo “não vamos fazer mais demarcação”, porque como candidato, ele [Bolsonaro] disse que não haveria mais um centímetro de demarcação para terras indígenas? Não, porque é uma obrigação dada pela Constituição. Então, o que ele faz é colocar em um órgão que não vai fazer demarcação.
Mobilização Nacional Indígena 2015 no Acampamento Terra Livre (ATL) montado na Esplanada dos Ministérios. Foto: Valter Campanato/Agência Brasil
Além da transferência da demarcação, a ministra Tereza Cristina defende a exploração agrícola em terras indígenas e a tese do marco temporal. Como essa visão do governo vai impactar a política indigenista?
É a política colonial, de deixar de serem um coletivo e passarem a ser individuais, trabalhadores, integrados na “boa vida” capitalista de consumo. Essa é a proposta.
Todas essas medidas — ausência de demarcação, a proposta de integração ao agronegócio, todas as restrições possíveis, marco temporal, descaracterização dos povos — são para não reconhecer o caráter indígena de um povo ou tentar fazer com que ele deixe de ser indígena. Transformá-los em trabalhadores rurais, urbanos, operários etc.
Entretanto, não perguntaram para eles. Ou não perguntaram para todos. Pode ser que algum grupo queira? Até pode, conheço alguns kaigangs no Rio Grande do Sul que têm atividades agrícolas, no Mato Grosso também tem índios com arrendamento [de terras], onde eles mesmos exploram a área. Mas é a vontade deles. Não é uma política de Estado. A política do Estado tem que ser de garantia da terra e garantia de que eles possam decidir o que fazer com a terra.
O que está sendo feito é uma política colonial que rigorosamente vigorou até o final do século 20. E as normas internacionais já negam essa política colonial. E tem que ser chamada por esse nome mesmo: ela é colonial, no sentido que ela coloniza os índios, transformando em trabalhadores para a metrópole.
Bolsonaro, de novo, afirmou que “mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas e menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados”, um senso comum muito repetido quando se fala em questão indígena. Como rebater o argumento?
Algumas terras hoje da produção agrícola povoam muito pouco o território nacional. Se você fizer uma comparação pura e simples com o agronegócio, quantas pessoas ele emprega? O agronegócio tem um número de trabalhadores muito pequeno em uma área muito vasta. O modo de produção do agronegócio não ocupa terra com gente. Ocupa a terra sem gente, com máquinas.
Essa comparação, no meu modo de ver, é ruim porque não é disso que estamos falando. Estamos falando de modos de vida e de uso da terra diferentes. Na verdade, todas as terras indígenas e quilombolas estão cheias não só de gente, mas de natureza, de bichos, de planta, estão produzindo água limpa, ar puro. Diferente do agronegócio que, além de expulsar pessoas, expulsa também a natureza. Portanto, são territórios completamente diferentes. Os territórios indígenas são produtores de natureza; os territórios do agronegócio, de lucro.
Edição: Pedro Ribeiro Nogueira