São os territórios indígenas da América Latina “que os operadores do mercado pretendem usar como base de troca para que as corporações possam dar continuidade a seus negócios”, declara o coordenador do Programa Direito a Terra, Água e Território – DTAT.
http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/511413-terras-indigenas-o-file-do-mercado-de-carbono-mundial-entrevista-especial-com-augusto-santiago
Confira a entrevista.
“Defendemos formas de vidas plurais e autônomas, inspiradas pelo modelo do Bom Viver/Vida Plena, onde a Mãe Terra é respeitada e cuidada, onde os seres humanos representam apenas mais uma espécie entre todas as demais que compõem a pluridiversidade do planeta. Nesse modelo, não há espaço para o chamado capitalismo verde, nem para suas novas formas de apropriação de nossa biodiversidade e de nossos conhecimentos tradicionais associados”. É a partir desse discurso, publicado no documento final do IX Acampamento Terra Livre – Bom Viver/Vida Plena, elaborado e assinado por mais de 1800 lideranças indígenas que participaram da Cúpula dos Povos no mês passado, no Rio de Janeiro, que as comunidades indígenas propõem a sustentabilidade do planeta. De acordo com Augusto Santiago, coordenador do Programa Direito a Terra, Água e Território – DTAT, as comunidades indígenas têm um modo de produção diferenciado do manejo comercial e, nesse sentido, destaca, as terras indígenas brasileiras “têm sido mais eficientes do que as unidades de conservação para a conservação da biodiversidade”.
Na avaliação de Santiago o modo de produção e de vida das comunidades indígena está ameaçado, especialmente porque “os quase 20 milhões de hectares reconhecidos na América do Sul como de posse de povos indígenas são ‘o filé’ do mercado de carbono mundial. É ele que os operadores do mercado pretendem usar como base de troca para que as corporações possam dar continuidade a seus negócios”, diz em entrevista à IHU On-Line, por e-mail. Ao defender o modo de produção e de vida das comunidades indígenas da América Latina, ele enfatiza que a “tradição não deve ser vista como algo estático e imobilizante, ela se inova e reinventa a partir do contato com o novo. As comunidades também se interessam pelo uso dos produtos e das tecnologias, e nosso objetivo não é voltar ao passado, mas sim construir um futuro com mais justiça. O que questionamos em nosso coletivo é o lucro acima da vida, a obsolescência programada, o patenteamento da vida”.
Augusto Santiago é coordenador do Programa Direito a Terra, Água e Território – DTAT, que reúne 13 organizações brasileiras que atuam nessa temática. Trabalha na Coordenadoria Ecumênica de Serviço – CESE, organização ecumênica de serviço, prestes a completar 40 anos de existência, tendo apoiado cerca de 10.000 pequenos projetos nesse período.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como o modo de vida das comunidades e dos povos tradicionais pode ser um instrumento na luta contra as mudanças climáticas?
Augusto Santiago– Os meios de vida das comunidades tradicionais são, em geral, de baixa emissão de carbono, no Brasil e em todo o mundo. Este padrão inclui atividades pouco intensivas, com gestão do território como um todo e pouco concentradas, aproveitamento de espécies de plantas e animais em número bem superior ao nosso. Povos e comunidades contribuem com o abastecimento local de cidades com espécies alimentares plantadas e nativas, produzidas com manejo sem veneno e vendidas sem o custo das transações transoceânicas – KM zero.
Apesar das propostas do documento oficial da Rio+20 não assumir o desafio da redução do consumo, muitos de nós já sabemos que não há suporte no planeta para a contínuo crescimento da economia e do comércio mundial com seus altos custos de produção, distribuição e sua concentração e controle em por poucas corporações.
É preciso, porém, tomar cuidado com esta questão. Acredito que a tradição não deve ser vista como algo estático e imobilizante, ela se inova e reinventa a partir do contato com o novo. As comunidades também se interessam pelo uso dos produtos e das tecnologias, e nosso objetivo não é voltar ao passado, e sim construir um futuro com mais justiça. O que questionamos em nosso coletivo é o lucro acima da vida, a obsolescência programada, o patenteamento da vida.
IHU On-Line – Em que medida os indígenas e povos tradicionais contribuem para o debate acerca da crise ambiental? Que diferencial eles apresentam no sentido de garantir a preservação do planeta?
Augusto Santiago– Nos últimos 20 anos, os povos indígenas brasileiros têm contribuído no debate sobre a crise ambiental. Um exemplo disso é a realização do Xingu+23, em comemoração ao evento de resistência contra o projeto que hoje se chama de Belo Monte. As iniciativas de Chico Mendes são hoje conhecidas na academia como “ambientalismo camponês” e distinguem as contribuições brasileiras no tema justamente por terem sido mobilizadas e levadas a cabo por povos e comunidades tradicionais, ainda nos anos 1980, quando lutavam por suas terras e suas florestas e das quais sobrevivem. Os conflitos por terras no Brasil não diminuíram no período. Pelo contrário, acirraram-se.
No documento final do IX Acampamento Terra Livre – Bom Viver/Vida Plena, realizado este ano na Cúpula dos Povos, no Rio de janeiro, as 1.800 lideranças indígenas presentes indicaram que:
“Defendemos formas de vidas plurais e autônomas, inspiradas pelo modelo do Bom Viver/Vida Plena, onde a Mãe Terra é respeitada e cuidada, onde os seres humanos representam apenas mais uma espécie entre todas as demais que compõem a pluridiversidade do planeta. Nesse modelo, não há espaço para o chamado capitalismo verde, nem para suas novas formas de apropriação de nossa biodiversidade e de nossos conhecimentos tradicionais associados.”
Terras indígenas
Estudos mais ou menos recentes indicam, por exemplo, que as terras indígenas brasileiras têm sido mais eficientes do que as unidades de conservação para a conservação da biodiversidade. Onde há terras florestadas existem comunidades, as sobreposições entre propostas para criação de unidades de conservação e áreas ocupadas por comunidades tradicionais ou povos indígenas também reforçam a tese de que a conservação sempre esteve ligada ao uso e ao conhecimento associado à biodiversidade. Então, considerando a inexistência de dúvidas quanto à efetiva diferença entre o manejo comercial e o realizado pelas comunidades, destacaria, entre tantas contribuições diferenciais, o conhecimento associado ao uso da biodiversidade e as tecnologias de baixo impacto de que dispõem, além da capacidade de viver com baixo nível consumo.
IHU On-Line – Como você avalia o documento final da Rio+20, que não levou em conta o modo de vida das populações tradicionais? Por que os povos indígenas e tradicionais não são considerados nas negociações governamentais?
Augusto Santiago– Lá na Cúpula dos Povos tivemos uma importante discussão sobre economia verde, com a participação de Achim Steiner, um dos responsáveis pelo relatório do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA, que apresenta “seus princípios” (ou tenta reunir conceitos e definir diretrizes gerais). Ele estava em uma mesa com diversos movimentos e ONGs, e os discursos contra a economia verde foram muito fortes. Ao final não houve nenhuma consideração sobre a possibilidade de diálogo entre esses dois mundos.
Na noite seguinte, escutei um novo discurso da mesma pessoa. Foi na entrega do Prêmio Equatorial do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, cujo primeiro lugar – em iniciativas sustentáveis – foi para Articulação Pacari do Brasil [1]. Premiaram 25 comunidades e suas iniciativas locais, que vão contra a corrente. Achim Steiner fechou o evento, aplaudindo aquelas pequeníssima iniciativas (algumas em ilhas remotas da Indonésia ou do Pacífico). Em pequena escala, esses eventos, em minha opinião, retratam a hipocrisia do documento oficial, batendo palmas para comunidades enquanto estabelece um arcabouço legal para que as (mesmas) corporações se reinventem e deem continuidade à expropriação das terras e também dos conhecimentos associados ao uso da biodiversidade.
IHU On-Line – Quais são os principais problemas apontados pelas comunidades indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais em relação aos impactos gerados pelas mudanças climáticas nos biomas brasileiros? Considerando o último encontro que tiveram com as comunidades tradicionais, o que apontam?
Augusto Santiago – As comunidades têm percebido as mudanças do clima ao longo da última década. As percepções mais fortes estão relacionadas à alteração no ciclo das chuvas e à desorganização dos calendários tradicionais de plantio e colheita, bem como a extensão das estiagens. O aumento do calor foi indicado principalmente nas comunidades do Norte e Nordeste. Estas mudanças implicam em uma série de riscos climáticos – iminentes ou potenciais. Nosso esforço é para discutir não só os riscos, mas nosso potencial de enfrentá-los no âmbito local, com práticas mais sustentáveis e, no âmbito regional e nacional, com articulação política. Em geral, nosso exercício possibilitou levantar as contribuições das comunidades às emissões de carbono e da mesma forma nos permitiram avaliar estratégias para limitá-las.
A análise mais ampla da questão nos permite observar que comunidades e povos tradicionais brasileiras ainda disputam seus territórios com o modelo de desenvolvimento baseado na emissão de carbono: o agronegócio, a mineração, os grandes projetos. A luta pela diminuição das emissões no Brasil passa pela luta pela regularização dos territórios destas comunidades.
Para aquelas comunidades que já regularizaram seus territórios, a discussão também é absolutamente relevante. Os quase 20 milhões de hectares reconhecidos na América do Sul como de posse de povos indígenas são “o filé” do mercado de carbono mundial. É ele que os operadores do mercado pretendem usar como base de troca para que as corporações possam dar continuidade a seus negócios. Índios negociam o carbono de suas florestas, para tanto devem imobilizá-las ou mantê-las com pouco uso. Operadores, mediante boas taxas de retorno, vendem estes créditos na bolsa de valores para indústrias que a usam como uma espécie de autorização para poluir. Ah, ia me esquecendo de uma última fatia do mercado: consultores altamente especializados controlam por meio de satélites se o acordo é cumprido.
IHU On-Line – Que ações para mitigar os efeitos das mudanças climáticas já são realizadas, tendo em vista os relatos das comunidades tradicionais?
Augusto Santiago– Ao fim das oficinas, as comunidades são estimuladas a rever suas atividades que mais colaboram com as “emissões” e a ampliar aquelas que “fixam carbono” – palavrinhas que passaram a conhecer no evento. A roça em geral é a maior contribuição de algumas comunidades, e o desafio de não usar o fogo – trator dos pobres –, ainda é grande.
Muitas comunidades enfrentam uma crise de sua reprodução com base nos conhecimentos tradicionais, seja pela perda de sua sustentabilidade por fatores externos, seja pela perda de seus territórios tradicionais. Assim, como em qualquer comunidade rural brasileira, é grande o desafio de educar e manter o jovem na roça. Em algumas localidades o desafio é enfrentado associando o conhecimento tradicional, repassado a gerações, com iniciativas inovadoras. Em nosso trabalho na CESE temos oportunidade de conhecer várias das iniciativas em temáticas como a agroecologia e a comercialização direta em feiras, o turismo comunitário, a incorporação do design em artesanatos elaborados a partir do extrativismo, a valorização de alimentos tradicionais por grandes chefes de cozinha, entre outros.
IHU On-Line – Como avalia a Política Nacional sobre Mudança do Clima – PNMC? Como a política á desenvolvida e aplicada no Brasil? Em que medida ela tem contribuído para minimizar os efeitos das mudanças climáticas?
Augusto Santiago– É positivo que tenhamos esta política, mas questionamos o espaço que ela disponibiliza para a discussão com a sociedade e especialmente com aqueles agentes que, ao longo dos últimos 20 anos, com apoio do governo e da cooperação, vêm desenvolvendo iniciativas de desenvolvimento sustentável. Esta política não tem espaço para transformar essas iniciativas em programas de governo e massificá-las. Para provar isso basta analisar o Plano de Agricultura de baixo carbono, único plano setorial [1] já elaborado dentro desta política. Os recursos disponíveis estão quase todos destinados ao agronegócio. Nada é dito sobre os demais setoriais.
Analisando o PPA – Clima e Mudança Climática – Orçamento 2008-2010, a mesma tendência é observada. Lá, além do agronegócio e das indústrias, temos espaço para as pesquisas, para as emergências e para o fundo clima. Não há espaço para iniciativas inovadoras como as muitas que poderiam participar do prêmio Equatorial do PNUD, citado acima.
Uma boa iniciativa é do Fundo Clima, porém seu primeiro edital não contemplou a necessária informação e formação da sociedade para que se participasse das discussões; preferiu focalizar uma pequena parte dos recursos para a sociedade civil implementar projetos de usos de tecnologias sociais com o mesmo formato piloto dos últimos 20 anos. A maior parte dos recursos é para adaptação das indústrias.
O desejo das organizações articuladas no DTAT – programa apoiado pela ICCO – é informar e formar para que as comunidades possam qualificar e ampliar a comunicação que fazem com a sociedade, aproximando campo e cidade, com o que irão buscar maior eficiência na incidência que já realizam. Mudanças climáticas é tema estratégico, pois mobiliza tanto as comunidades quanto a sociedade.
NOTA
[1] Plano ABC – Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura, Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono.