Nos Estados Unidos, não há padrões federais para o que pode ser colocado em roupas e vendido para adultos. Fotografia: ArminStautBerlin/Getty Images/iStockphoto
https://www.theguardian.com/fashion/2023/jul/02/fashion-chemicals-PFAS-bpa-toxic
Alden Wicker
03 de julho de 2023
Nossas roupas contêm BPA, PFAS/’forever chemicals‘ e outras substâncias perigosas – mas ainda sabemos pouco sobre seu impacto cumulativo.
A primeira coisa que aconteceu quando Mary, atendente da Alaska Airlines, recebeu um novo uniforme sintético de alto desempenho na primavera de 2011 foi uma tosse seca. Então uma erupção floresceu em seu peito. Em seguida, vieram enxaquecas, nevoeiro cerebral, coração acelerado e visão embaçada.
Mary (cujo nome omiti para proteger seu emprego) foi uma das centenas de atendentes da Alaska Airlines relatando naquele ano que os uniformes estavam causando erupções cutâneas, pálpebras inchadas com crostas de pus, urticária e, no caso mais sério, problemas respiratórios e reações alérgicas tão graves que um atendente, John, teve que ser retirado do avião e levado ao pronto-socorro várias vezes.
Testes encomendados pela Alaska Airlines e pelo sindicato dos comissários de bordo revelaram fosfato de tributil, chumbo, arsênico, cobalto, antimônio, corantes dispersos restritos conhecidos por causar reações alérgicas, tolueno, cromo hexavalente e fumarato de dimetila (nt.: destaque dado pela tradução para ressaltar a quantidade de venenos que se coloca nas roupas sintéticas), um antifúngico recentemente proibido na União Europeia. Mas o fabricante de uniformes, Twin Hill, evitou a culpa no tribunal, dizendo que nenhum desses muitos produtos químicos misturados, por conta própria, estava presente em níveis altos o suficiente para causar todas as diferentes reações (nt.: novamente o paradigma de dose-resposta definir o quão venenoso é um veneno sintético, como se a toxicologia de substâncias naturais fossem iguais às sintéticas). A Alaska Airlines anunciou em 2013 que compraria novos uniformes, sem admitir que os uniformes causaram problemas de saúde. Um processo de atendentes contra Twin Hill foi arquivado em 2016 por falta de provas.
Mas um estudo de Harvard de 2018 descobriu que, após a introdução dos uniformes, o número de atendentes com sensibilidade química múltipla, dor de garganta, tosse, falta de ar, coceira na pele, erupções cutâneas e urticária, coceira nos olhos, perda de voz e visão turva mais ou menos dobrou. “Este estudo encontrou uma relação entre queixas de saúde e a introdução de novos uniformes”, concluíram os autores do estudo.
O impacto da exposição a produtos químicos nocivos sobre os trabalhadores têxteis, muitos dos quais trabalham em países em desenvolvimento, foi bem documentado. Fotografia: GCShutter/Getty Images
Em 2021, John, que gozava de perfeita saúde antes da introdução dos uniformes, morreu aos 66 anos, após anos buscando e não conseguindo tratamento para seus sintomas. A causa oficial de sua morte foi parada cardiorrespiratória, asma secundária. Mary, que continuou com alguma dificuldade a trabalhar para a Alaska Airlines, foi diagnosticada no ano passado com três doenças autoimunes: doença mista do tecido conjuntivo, lúpus e Sjögren. O parceiro sobrevivente de Mary e John diz que os uniformes foram os culpados.
Essa história de atendentes doentes se repetiu várias vezes, já que a American Airlines, a Delta e a Southwest introduziram novos uniformes, que eram de poliéster de cores vivas em vez do antigo modo de lã e foram revestidos com tecnologia têxtil anti-rugas, resistente a manchas e retardador de chamas (nt.: aqui dois processos que todos já sabem de que o resistente a manchas é ‘forever chemicals’ e retardador de chamas é feito com halogênios e/ou fosfatos, todos disruptores endócrinos e geradores de retardo mental em fetos por alterarem a tiroxina, hormônio imprescindível no desenvolvimento cerebral dos fetos).
Mary e John estão longe de estar sozinhos. O impacto da exposição a produtos químicos nocivos em trabalhadores têxteis, muitos dos quais trabalham em países em desenvolvimento, foi bem documentado e inclui problemas respiratórios, erupções cutâneas e até mesmo a morte, mas eu estava menos ciente de que tantos nos EUA estavam relatando efeitos nocivos simplesmente por usar roupas. Em vez disso, como descobri enquanto pesquisava para meu livro To Dye For: How Toxic Fashion is Making us Sick – and How We Can Fight Back (nt.: abaixo a reprodução da capa desse livro), eles fazem parte de um grupo diversificado e díspar de pessoas que acreditam ter sofrido os efeitos da moda tóxica na saúde.
“Os comissários de bordo são o canário na mina de carvão por causa da duração e consistência de sua exposição”, disse a Dra. Irina Mordukhovich, uma das autoras do estudo de Harvard. “Isso não significa que outras pessoas da população não estejam sendo afetadas de alguma forma. Digamos que alguém tenha roupas com os mesmos componentes – eles podem nem perceber; eles porque simplesmente não usam tanto e por longo tempo.”
Karly Hiser é enfermeira pediátrica em Grand Rapids, Michigan. Seu filho mais velho era um bebê quando seu eczema piorou, disse ela. Ela trocou sua família por sabonetes sem fragrância e produtos de limpeza não tóxicos, e o lambuzou com loção, vaselina e creme esteróide prescrito após longos banhos. “Tudo o que tentamos não ajudou”, disse ela. Feridas abertas se desenvolveram em suas mãos e atrás dos joelhos, e elas foram infectadas.
Fotografia da capar do livro do autor desse texto: Penguin Random House
Como qualquer pai com orçamento limitado, Hiser comprava roupas baratas de marcas do mercado de massa, incluindo roupas esportivas de poliéster, mas se recusava a vestir as roupas. “Ele é um garoto muito doce, legal e discreto. E todas as manhãs se vestir era um pesadelo, apenas ataques de raiva”, disse ela. O que finalmente tornou o eczema de seu filho administrável, disse ela, foi pegar a máquina de costura de sua avó, comprar tecido não tóxico em uma loja online e costurar todas as roupas sozinha.
Apesar de seu trabalho como enfermeira, Hiser levou mais de um ano para descobrir o que ela agora acredita firmemente: que as roupas eram o problema. “Sabe, como a rotulagem nutricional para alimentos, eu preferiria que houvesse uma rotulagem melhor para roupas”, disse ela. “Nem todos os produtos químicos são ruins ou prejudiciais, mas eu gostaria de pelo menos estar ciente do que está nas roupas das crianças.”
Jaclyn é ex-gerente de produção de moda na cidade de Nova York. Ela me contou sobre sua experiência abrindo caixas de amostras da Ásia e da América do Sul todos os dias e sendo atingida no rosto pelo cheiro pungente de produtos químicos sintéticos. Depois de anos tocando essas roupas recém-feitas, ela desenvolveu erupções cutâneas nas mãos e nos braços. Quando seu dermatologista a testou para alergias, ela descobriu que era alérgica a vários produtos químicos normalmente usados na produção de moda, incluindo um corante disperso azul usado para tingir poliéster. Infelizmente, não havia nada que ela pudesse fazer para se proteger – todos esses alergênicos são perfeitamente legais para nos cobrirmos e nos vestirmos. Mesmo que ela largue o emprego, ela tem que usar roupas para viver. Sua saúde piorou depois disso, um resultado, ela acredita,
Produtos químicos em roupas são uma área complexa, opaca e pouco pesquisada. “Não há necessariamente muitas evidências para decidir o que é um limite seguro de um produto químico”, disse Mordukhovich. “Mesmo que cada produto químico esteja abaixo dos limites que seriam considerados um problema direto de segurança, o que não sabemos é se você tem centenas de produtos químicos interagindo juntos, quais efeitos isso tem?” (nt.: para se ter uma ideia de que esse tema não é novo, ver o link de 2012 do Greenpeace),
Mesmo que cada produto químico esteja abaixo dos limites de segurança, se você tiver centenas de produtos químicos interagindo, que efeitos isso terá? Dra Irina Mordukhovich
Para seu doutorado no departamento de toxicologia integrada e saúde ambiental da Duke, a Dra. Kirsten Overdahl passou anos destilando e catalogando corantes dispersos em um esforço para provar, em artigo submetido para revisão por pares, que eles são sensibilizadores da pele. A maioria nem mesmo é rotulada ou catalogada na literatura, muito menos testada quanto à segurança. “Eu vejo todos os dias, apenas em nossos dados brutos que os instrumentos produzem, que muitas vezes existem milhares de produtos químicos em uma amostra que não podem ser comparados a um produto químico conhecido. Isso é absolutamente aterrorizante”, disse ela. “Isso não significa que todo produto químico é ruim. Talvez seja inofensivo. Mas se não conseguirmos associar um nome a uma estrutura química, isso significa que os dados não estão disponíveis. Então você não pode dizer que não é seguro, mas também não pode dizer que é seguro.”
Recentemente, pesquisadores e defensores intensificaram a prática de comprar e testar roupas comuns e os resultados são esclarecedores. O Centro de Saúde Ambiental da Califórnia encontrou altos níveis do BPA, produto químico que desregula os hormônios, em meias de poliéster e elastano e sutiãs esportivos de dezenas de grandes marcas, incluindo Nike, Athleta, Hanes, Champion, New Balance e Fruit of the Loom, em até 19 vezes o limite de segurança da Califórnia.
Quando a Canadian Broadcasting Corporation/CBC testou 38 peças de roupas infantis das marcas de moda ultra rápidas/descartáveis Zaful, AliExpress e Shein, descobriu que uma em cada cinco tinha níveis elevados de produtos químicos tóxicos, como chumbo, PFAS/’forever chemicals‘ e ftalatos. Este ano, a marca de calcinhas menstruais Thinx resolveu um processo decorrente de um teste feito por um professor da Notre Dame mostrando altos níveis de flúor, indicando a presença de PFAS, uma classe altamente tóxica de “químicos eternos/forever chemicals” que fornecem repelência à água e manchas.
Alguns dos produtos químicos que os cientistas descobriram nas roupas – como fosfato de tributil, fumarato de dimetila e corantes dispersos (nt.: substâncias artificiais criadas para serem usadas especificamente pela resina sintética poliéster)- podem ser extremamente tóxicos ou perigosos, causando reações na pele ou asma. Foi comprovado que outros, além de seu uso em roupas, têm ligações com câncer, toxicidade reprodutiva, alergias e sensibilização da pele.
Alguns produtos químicos encontrados em roupas podem ser altamente tóxicos. Fotografia: hepjam/Getty Images/iStockphoto
Um estudo de 2022 da professora Miriam Diamond, da Universidade de Toronto, e do professor Graham Peaslee, da Notre Dame, estimou, entretanto, que, em média, as crianças que usam uniformes escolares resistentes a manchas seriam expostas a 1,03 partes por bilhão de PFAS/’forever chemicals‘ por quilograma de peso corporal por dia através da pele. Os PFAS têm sido associados a vários tipos de câncer, anormalidades fetais, distúrbios reprodutivos, obesidade e redução da função do sistema imunológico (nt.: destaque dado para que se ressalte bem o que os ‘químicos eternos/forever chemicals’). Quando se acumula no sangue, os PFAS são considerados tóxicos no nível de partes por bilhão. Mais pesquisas são necessárias sobre a rapidez com que o PFAS presente nas roupas pode ser absorvido pela pele e pela corrente sanguínea, mas os resultados são alarmantes o suficiente para estimular os bombeiros a se revoltarem contra seus equipamentos de proteção carregados com PFAS.
Alguns produtos químicos encontrados em roupas, como BPA, PFAS e ftalatos, foram encontrados em experimentos com limite de tempo e estudos longitudinais para imitar hormônios e interferir em nosso sistema endócrino (nt.: aqui mostra como são disruptores endócrinos), e causaram uma cascata pouco compreendida de efeitos à saúde que variam de flutuações extremas de peso e fadiga a infertilidade e doenças crônicas.
Uma vez que a exposição cessa, alguns produtos químicos, como o BPA, podem ser metabolizados e eliminados pelo corpo, acabando por se decompor e desaparecer. Outros, como os metais pesados, se acumulam no organismo e no meio ambiente, durando décadas ou, no caso do PFAS, para sempre.
É uma realidade física que os produtos químicos migram para sua pele a partir de suas roupas. Miriam Diamond, Universidade de Toronto
Quando testadas em outros contextos além da moda, descobriu-se que muitas dessas substâncias, como agrotóxicos e solventes, danificam o corpo ao longo de anos de exposição crônica, ainda que infinitamente pequena (nt.: IMPORTANTÍSSIMA ESSA OBSERVAÇÃO = mostra que imitando hormônios agem em doses infinitesimais, na contramão da toxicologia convencional onde era a dose que mostra que algo era ou não venenoso. Aqui é praticamente a molécula!). A presença deles na moda preocupa alguns especialistas. Como Diamond, da Universidade de Toronto, me disse: “Sabemos que os produtos químicos são continuamente perdidos de qualquer material ao longo do tempo. É uma realidade física que os produtos químicos migram para a sua pele a partir de suas roupas, com e sem suor.”
“Vemos as tendências, mas não podemos identificar as tendências para este e aquele produto químico”, disse-me em 2021 o Dr. Åke Bergman, um toxicologista ambiental sueco especializado em disruptores endócrinos, sobre o aumento de distúrbios reprodutivos e infertilidade. Ele fez parte de uma força-tarefa convocada em 2020 para aconselhar a Suécia sobre a tributação de produtos químicos tóxicos usados na moda. “Há um uso enorme de um grande número de produtos químicos. Sentimos fortemente que existe uma ligação entre as exposições a esses produtos químicos e os efeitos observados”.
Apesar de todas as evidências, no entanto – os resultados dos testes tóxicos que estão se acumulando, os pesquisadores e advogados na América do Norte e na Europa tocando o alarme, os relatórios de queimaduras na pele causadas por sapatos, meias e sutiãs no site da Comissão de Segurança de Produtos de Consumo – este é um assunto extremamente difícil de fazer declarações conclusivas e uma área impopular de pesquisa científica. Não há estudos relacionando as experiências dos funcionários da moda e das companhias aéreas com as experiências da população em geral, nem estudos que examinem os efeitos da exposição diária crônica por meio do uso de tecidos com esses contaminantes e acabamentos perigosos próximos à nossa pele. Enquanto isso, a própria complexidade da moda se presta ao ofuscamento e à confusão.
Uma pequena tinturaria em Tamil Nadu, na Índia. Fotografia: Alden Wicker
Nos Estados Unidos, não há padrões federais para o que pode ser colocado em roupas e vendido para adultos. A UE proibiu mais de 30 substâncias para uso na moda e rejeitará algumas remessas na fronteira, mas seu programa de testes é pequeno e facilmente contornado.
Além da moda, está claro que muitos americanos estão preocupados com o fato de o governo estar falhando em seu trabalho de nos proteger de substâncias nocivas. A comida orgânica que promete ser livre de resíduos de agrotóxicos é o setor que mais cresce no mercado de alimentos, com vendas atingindo US$ 57,5 bilhões em 2021. A beleza vem logo atrás, com milhões de mulheres reformando todos os armários de banheiro na última década, descartando marcas antigas com ingredientes tóxicos como ftalatos e parabenos. Influenciadores, blogueiros e marcas de beleza alimentaram esse medo e desconfiança para angariar engajamento e vender produtos – enquanto muitas vezes vão longe demais ao demonizar substâncias perfeitamente seguras.
No entanto, a moda, uma indústria global de US$ 2,5 trilhões, de alguma forma escapou completamente do mesmo escrutínio.
Uma razão é que nem os consumidores nem os profissionais sabem quais, ou mesmo quantas, substâncias químicas são usadas para fabricar, processar, tecer, tingir, finalizar e montar roupas e acessórios.
“Está ficando mais difícil evitar esses produtos químicos”, diz a Dra. Elizabeth Seymour, do Centro de Saúde Ambiental de Dallas, sobre aditivos como solventes e metais pesados. “Existem vários produtos químicos que são colocados em tudo. E suas roupas estão incluídas nisso.” Mas enquanto produtos de beleza, de limpeza e alimentos embalados vêm com uma lista de ingredientes, a moda não, embora os testes revelem que ele possui alguns dos perfis químicos mais complicados e multicamadas de qualquer produto, chegando a 50 produtos químicos ou mais.
Depois de pesquisar isso por dois anos, agora tenho mais cuidado com minhas próprias roupas. Evito marcas de moda baratas, falsificadas ou ultrarrápidas. Eu compro com empresas em quem confio, que se preocupam com sua reputação e têm um programa de gerenciamento de produtos químicos ou rótulos como bluesign, Oeko-Tex ou GOTS. Escolho fibras naturais sempre que possível e evito promessas extravagantes como repelência a manchas, acabamentos antiodores, tecidos fáceis de cuidar e antirrugas. Eu lavo qualquer roupa nova antes de usá-la, com sabão em pó não tóxico e sem perfume. E eu confio no meu nariz – se algo cheira mal, eu mando de volta. (nt.: destaque em negrito dado pela tradução para novamente ressaltar o que se faz quando se sabe).
Mas o que eu realmente quero ver é a ação de nossos governos. Alguns estados têm requisitos de rotulagem ou proibições futuras de PFAS em roupas, mas o governo federal não regulamenta quais produtos químicos podem ser colocados em roupas e vendidos a consumidores adultos. Precisamos de uma revisão total de como gerenciamos produtos químicos em produtos de consumo neste país.
Eu gostaria de ver o governo federal alcançar o bom trabalho que está sendo feito pela União Europeia – e ir além. Ele deve implementar impostos e tarifas sobre produtos químicos não testados para financiar pesquisas desesperadamente necessárias, exigir que as empresas químicas registrem todos os produtos químicos em uso e compartilhem qualquer pesquisa associada, banir certas classes de produtos químicos para uso na moda e expandir a capacidade da Comissão de Segurança de Produtos de Consumo de testar e retirar moda tóxica.
Estas podem parecer grandes perguntas. Então, talvez possamos começar simples. Vamos exigir que a moda venha com uma lista de ingredientes – uma lista de ingredientes verdadeiramente completa. Porque se os consumidores realmente soubessem o que há em suas roupas, bem, eles poderiam não querer usá-las.
Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, julho de 2023.