Saúde: Refrigerantes alteram o microbioma e podem elevar o risco de depressão

https://portugues.medscape.com/viewarticle/refrigerantes-alteram-microbioma-e-podem-elevar-risco-2025a1000qfh

Felipe Floresti

02 out 2025

[Nota do Website: Um aspecto que talvez a maioria de nós nunca considera e que esse estudo frisa: os refrigerantes são produtos ultraprocessados. Só isso já colocaria essas bebidas num espaço muito problemático. Imagina-se, como apresenta a pesquisa, o restante que compõe essas bebidas. Importantíssimo sabermos sobre esses aspectos principalmente, pela violência das propagandas, que induzem nossos jovens e crianças a consumirem esse, sem dúvida, veneno, diariamente. E elas nos eram e são apresentadas como a ‘alegria’ das nossas comemorações!].

Destaque

O consumo de refrigerantes está significativamente associado ao diagnóstico de transtorno depressivo maior (TDM) e à gravidade dos sintomas depressivos, particularmente em mulheres, com efeitos mediados por alterações na microbiota intestinal. Em um estudo abrangente com 932 participantes alemães, incluindo 405 pacientes com TDM e 527 controles saudáveis, pesquisadores identificaram que o aumento da abundância da bactéria Eggerthella no intestino medeia parcialmente essa associação, explicando cerca de 4% do efeito total do consumo de refrigerantes no diagnóstico de depressão e 5% do efeito na gravidade dos sintomas. O achado contribui para a compreensão dos mecanismos biológicos que conectam dieta e saúde mental, oferecendo novas possibilidades de prevenção e tratamento da depressão por meio de intervenções dietéticas direcionadas.

Contexto

  • O consumo de refrigerantes está ligado a desfechos negativos de saúde, como obesidade, diabetes tipo 2, doenças cardiovasculares e câncer. Esse cenário é alarmante dado o aumento global do consumo, sobretudo entre crianças e adolescentes. Evidências crescentes também indicam um impacto negativo dos refrigerantes na saúde mental, e estudos longitudinais relacionam a ingestão regular a maior risco de depressão. O panorama epidemiológico mostra que o consumo de bebidas açucaradas cresceu de forma acentuada nas últimas décadas, tornando-se um problema de saúde pública global que requer atenção urgente devido às múltiplas implicações para a saúde física e mental.
  • A microbiota intestinal surge como um elo relevante entre o consumo de refrigerantes e o TDM, dadas suas associações bem estabelecidas em ambos os contextos. Refrigerantes são ultraprocessados, hipercalóricos e ricos em açúcares simples, como glicose e frutose, que podem sobrecarregar a capacidade absortiva do intestino delgado e promover o crescimento de gêneros bacterianos específicos. Esta relação se insere no conceito emergente do eixo intestino-cérebro, que reconhece a comunicação bidirecional entre sistema nervoso central e trato gastrointestinal, mediada por vias neurais, hormonais e imunológicas que podem ser fortemente influenciadas pela composição da microbiota intestinal.
  • O papel da microbiota intestinal no TDM é apoiado por estudos de transplante fecal de pacientes deprimidos para roedores, que induziram fenótipo depressivo com anedonia (resposta de recompensa prejudicada) e comportamento semelhante à ansiedade. Além disso, uma revisão sistemática de 17 estudos encontrou aumento na abundância de AtopiumEggerthella e Bifidobacterium, e redução de Faecalibacterium, em pacientes com TDM em comparação com controles. Estes achados convergem para a hipótese de que alterações específicas na composição microbiana intestinal não são apenas correlatos da depressão, mas podem ter papel causal no desenvolvimento e manutenção dos sintomas.
  • Em uma grande coorte de pacientes com TDM e controles (N = 1.269), pesquisadores confirmaram esses achados e identificaram Eggerthella e Hungatella como contribuintes causais para o TDM, o que levou à hipótese de que o consumo de refrigerantes estaria relacionado a sintomas depressivos nesses pacientes, mediado por níveis aumentados dessas bactérias. A descoberta aprofunda a compreensão dos mecanismos moleculares que conectam dieta e saúde mental e sugere alvos específicos para futuras intervenções com base na modulação da microbiota intestinal.
  • Espécies de Eggerthella são bactérias gram-positivas anaeróbicas, tipicamente presentes em baixos níveis na microbiota intestinal saudável de adultos e adolescentes. Têm sido consistentemente associadas ao TDM, mas não ao uso de antidepressivos. Elas metabolizam acetato e arginina, e níveis elevados de acetato se correlacionam com sintomas depressivos. O perfil metabólico único dessa bactéria sugere mecanismos pelos quais pode influenciar a neuroquímica cerebral, incluindo a produção de metabólitos capazes de atravessar a barreira hematoencefálica e impactar diretamente a função neuronal e a regulação do humor.
  • Dietas ricas em açúcar podem promover indiretamente o crescimento de Eggerthella ao alterar a competição microbiana. Em modelos murinos, essa bactéria reduz a produção de butirato, um ácido graxo de cadeia curta com propriedades anti-inflamatórias, induz senescência imune e depleta triptofano, um precursor da serotonina. Além disso, refrigerantes contêm aditivos, como adoçantes artificiais e conservantes, que agravam o desequilíbrio microbiano intestinal. Estes mecanismos múltiplos e interconectados sugerem que o consumo de refrigerantes pode criar um ambiente intestinal que favorece bactérias associadas à depressão, estabelecendo um ciclo vicioso que perpetua a disbiose intestinal e os sintomas depressivos.

Metodologia

  • Pesquisadores conduziram um estudo de coorte multicêntrico transversal na Alemanha utilizando dados do Estudo de Coorte Afetiva Marburg-Münster. Foram incluídos 932 participantes, sendo 405 com TDM e 527 controles saudáveis, com idades entre 18 e 65 anos, recrutados da população geral e de cuidados primários entre setembro de 2014 e setembro de 2018. O desenho do estudo foi estruturado para capturar uma amostra representativa da população alemã, garantindo diversidade demográfica e clínica adequada para análises estatísticas robustas.
  • O consumo de refrigerantes carbonatados foi avaliado por meio de um questionário alimentar semiquantitativo de 101 itens validado na Alemanha. Os participantes relataram sua ingestão usual de porções de 200 mL ao longo do ano anterior, com categorias de resposta variando de “nunca” a “várias vezes por dia”. O instrumento foi desenvolvido no âmbito da Investigação Prospectiva Europeia sobre Câncer e Nutrição, previamente validado para a população alemã e considerado com confiabilidade adequada para avaliação de padrões dietéticos de longo prazo, permitindo a quantificação precisa do consumo habitual de refrigerantes.
  • A gravidade dos sintomas depressivos foi avaliada por meio do Inventário de Depressão de Beck (BDI-I), que mensura sintomas autorrelatados nas últimas duas semanas. A ferramenta contém 21 itens, cada um classificado em uma escala de 0 a 3, em que pontuações mais altas indicam maior gravidade dos sintomas. O diagnóstico psiquiátrico foi estabelecido usando entrevista clínica semiestruturada para transtornos do Eixo I do DSM-IV-TR. A combinação dos dois métodos permitiu análise tanto dimensional quanto categórica da depressão, ampliando a compreensão dos desfechos de saúde mental.
  • Dados da microbiota foram coletados e analisados a partir de 1.269 amostras padronizadas de fezes humanas, processadas por sequenciamento do gene 16S do RNA ribossomal (rRNA), com foco nos gêneros Eggerthella e Hungatella, previamente relacionados de forma causal ao TDM. A análise de abundância diferencial foi conduzida com os métodos ZicoSeq e LinDA. A coleta, o armazenamento e o processamento das amostras seguiram protocolos padronizados e rigorosos de controle de qualidade, assegurando a confiabilidade dos dados microbiológicos.
  • As análises estatísticas incluíram modelos de regressão logística multivariável e análise de variância (ANOVA) para examinar associações entre consumo de refrigerantes, diagnóstico de TDM e gravidade dos sintomas, ajustando por local do estudo e nível educacional. Também foram realizadas análises de mediação com método bootstrap não paramétrico e correção de viés usando 10 mil permutações, para testar se a abundância da microbiota mediava a associação entre consumo de refrigerantes e TDM. Todas as análises incluíram ajustes para múltiplas comparações e testes de sensibilidade, reforçando a robustez dos achados principais.

Principais informações

  • O consumo de refrigerantes previu significativamente o diagnóstico de TDM, com razão de chances [RC] = 1,081 (intervalo de confiança [IC] de 95%, de 1,008 a 1,159; p = 0,03) na amostra total. O efeito foi mais pronunciado em mulheres (RC = 1,167; IC 95%, de 1,054 a 1,292; p = 0,003), enquanto nenhum efeito foi observado em homens (RC = 1,020; IC 95%, de 0,924 a 1,127; p = 0,69). Estes resultados demonstram uma associação estatisticamente significativa e clinicamente relevante entre o consumo de refrigerantes e o risco de TDM, com clara diferenciação por sexo.
  • A associação entre consumo de refrigerantes e gravidade dos sintomas depressivos foi significativa na amostra completa (p < 0,001; eta parcial ao quadrado [ηp²] = 0,012; IC 95%, de 0,004 a 0,035), impulsionada por participantes do sexo feminino (p < ,001; ηp² = 0,036; IC 95%, de 0,011 a 0,062), mas não mostrou efeito significativo em participantes do sexo masculino (p = 0,11; ηp² = 0,008; IC 95%, de 0,000 a 0,033). O tamanho do efeito observado nas mulheres representa uma magnitude de associação moderada e clinicamente significativa entre o consumo de refrigerantes e a intensidade dos sintomas depressivos.
  • Em mulheres, o consumo de refrigerantes associou-se ao aumento da abundância de Eggerthella (p = 0,007; ηp² = 0,017; IC 95%, de 0,0002 a 0,068), mas não de Hungatella (p = 0,57; ηp² = 0,000; IC 95%, de 0,000 a 0,012), além de estar associado à menor diversidade alfa da microbiota intestinal (p = 0,001; ηp² = 0,025; IC 95%, de 0,002 a 0,048). Esses achados indicam que o consumo de refrigerantes promove alterações específicas na composição microbiana intestinal, particularmente favorecendo o crescimento de bactérias associadas à depressão.
  • As análises de mediação confirmaram que a abundância de Eggerthella mediou significativamente a associação entre consumo de refrigerante e TDM, tanto para diagnóstico (p = 0,011) quanto para gravidade dos sintomas (p = 0,005), explicando, respectivamente, 3,82% e 5% do efeito total do consumo de refrigerantes nos desfechos de depressão. Embora a proporção de mediação seja relativamente pequena, estes achados fornecem evidência direta de um mecanismo biológico plausível pelo qual o consumo de refrigerantes pode influenciar o desenvolvimento e a gravidade da depressão por meio de alterações na microbiota intestinal.

Na prática

“Estratégias de saúde pública para reduzir o consumo de refrigerantes podem ajudar a mitigar o risco de depressão, sobretudo entre populações vulneráveis; além disso, intervenções para depressão direcionadas à composição do microbioma parecem promissoras”, escreveram os autores. 

Fonte

O estudo foi liderado por Sharmili Edwin Thanarajah, MD, do Departamento de Psiquiatria, Psicoterapia e Psicossomática do Hospital Universitário Frankfurt, Universidade Goethe Frankfurt, na Alemanha. Foi publicado on-line em 24 de setembro na JAMA Psychiatry.

Limitações

Embora a análise vincule consumo de refrigerantes, alterações da microbiota intestinal e sintomas depressivos, estudos experimentais em humanos e roedores são necessários para confirmar uma relação causal. Isso porque um modelo de mediação não permite inferir direções causais, visto que sua estrutura reflete um conjunto de suposições a priori. Todas as análises de mediação dependem de várias suposições não testáveis, sobretudo a ausência de confundimento não mensurado entre o mediador e o resultado, que não pode ser verificada a partir de dados observacionais. Ainda assim, análises de sensibilidade sugerem que o efeito de mediação observado é robusto mesmo diante de confundimento negativo substancial não medido. 

A dependência de ingestão dietética autorrelatada por meio de questionários de frequência alimentar, embora seja o padrão atual, pode introduzir viés de recordação e desejabilidade social. Pesquisas futuras devem usar rastreamento digital de alimentos e medidas objetivas, como monitoramento contínuo de glicose, para melhorar a precisão das avaliações dietéticas. 

O estudo também não pôde avaliar os efeitos distintos de refrigerantes adoçados com açúcar versus artificialmente adoçados, devido a desafios de recordação e rotulagem pouco clara dos produtos. Considerando que combinações de açúcar e adoçante artificial podem amplificar respostas cerebrais e metabólicas, pesquisas futuras devem incluir dados mais precisos sobre esses produtos. 

Por fim, a natureza transversal do estudo limita a capacidade de estabelecer relações temporais entre exposição e desfecho, e a generalização dos achados pode ser limitada pela população específica estudada (alemães adultos), requerendo replicação em outras populações e contextos culturais.

Conflitos de interesses

Este estudo foi apoiado em parte por subsídios de consórcios da Fundação Alemã de Pesquisa (DFG) SFB/TRR 393 (número de subsídio do projeto 521379614) e faz parte do consórcio multicêntrico alemão Neurobiologia dos Transtornos Afetivos: Uma Perspectiva Translacional sobre Estrutura e Função Cerebral, financiado pela DFG, bem como o Centro LOEWE DYNAMIC, financiado pelo Ministério de Ciência e Pesquisa, Arte e Cultura de Hessen. Sharmili Edwin Thanarajah foi financiada pelo Leistungszentrum Innovative Therapeutics (TheraNova), financiado pela Sociedade Fraunhofer e pelo Ministério de Ciência e Arte de Hessen, pelo Ministério Federal de Educação e Pesquisa (BMBF) e pela Fundação REISS. Sharmili Edwin Thanarajah relatou taxas de conselho consultivo da Janssen durante a condução do estudo. Conflitos de interesse adicionais são observados no artigo original.

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