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https://portugues.medscape.com/verartigo/6512286
Dr. Hermano Rocha
04 fev 2024
[NOTA DO WEBSITE: Mais um dado que nos coloca a nossa saúde frente às moléculas artificiais. Quando vamos nos dar conta de que os processos que não são naturais atacam nossa natureza?].
Um estudo publicado recentemente por Underwood et al. [1] no periódico Alzheimer’s & Dementia: Translational Research & Clinical Interventions utilizou dados de mais de 130 milhões de pessoas e de 1 milhão de casos de demência para investigar a associação entre a prescrição de uma ampla gama de medicamentos e o risco da doença. “Entender se os medicamentos atualmente em uso (pelos pacientes) podem ser redirecionados para uso na demência é uma prioridade urgente”, escreveram os autores.
A revisão analisou guias administrativas e registros eletrônicos de saúde (RES) provenientes de 42 estudos, os quais incluíram amostras de 7.500 a 117 milhões de participantes. Os estudos elegíveis examinaram a associação entre o uso de medicamentos prescritos (ou vários preditores em potencial, sendo pelo menos um deles o uso de medicamentos) e a incidência de demência diagnosticada de acordo com critérios padronizados, incluindo demência por todas as causas e subtipos (por exemplo, doença de Alzheimer, demência vascular, doença de corpos de Lewy, demência na doença de Parkinson). A pesquisa incluiu estudos principalmente dos EUA, além de Japão, Coreia do Sul, Alemanha e País de Gales.
O diagnóstico de demência foi identificada predominantemente usando códigos da Classificação Internacional de Doenças (CID) em RES e dados de guias. A maioria dos estudos se concentrou na doença de Alzheimer, enquanto alguns também incluíram demência por todas as causas ou demência vascular como resultados.
- Medicamentos como antibióticos, anti-hipertensivos, hipolipemiantes, anti-inflamatórios e vacinas foram associados à redução do risco de demência em vários estudos.
- Medicamentos comumente usados para controlar condições como doenças cardiovasculares, depressão, doenças neurodegenerativas e distúrbios gastrointestinais estavam ligados a um risco maior de demência.
- Medicamentos prescritos para depressão e ansiedade, antipsicóticos, medicamentos para insônia, convulsões e doença de Parkinson também estavam entre os associados a um risco maior de demência nos estudos.
Como os próprios autores destacam em seu texto, algumas das associações apresentam plausibilidade biológica e podem no futuro levar a um novo uso para a medicação, enquanto outras carecem de maiores estudos para tentar explicar os dados encontrados. Algumas delas têm sido estudadas com afinco recentemente, com resultados promissores, e suportam os achados deste estudo.
Por exemplo, estudos recentes mostram que determinadas classes de medicamentos anti-hipertensivos, especialmente os bloqueadores do receptor de angiotensina (BRAs) e os inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECAs), podem conferir efeitos protetores contra o declínio cognitivo e a demência. Evidências mostram que BRAs estão associados a uma incidência reduzida de demência em comparação com outras classes de anti-hipertensivos, sugerindo um mecanismo neuroprotetor que pode estar ligado à sua capacidade de modular a pressão arterial e melhorar o fluxo sanguíneo cerebral. [2]
Da mesma forma, acredita-se que os medicamentos anti-inflamatórios, especialmente os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), desempenham um papel na modulação do risco de demência devido aos seus efeitos sobre a neuroinflamação. No entanto, a eficácia clínica dos AINEs na prevenção da demência permanece controversa, com algumas pesquisas indicando que o uso em longo prazo pode não produzir benefícios cognitivos significativos e pode até mesmo apresentar riscos de efeitos adversos. [3,4]
Por sua vez, os medicamentos redutores de lipídios, principalmente as estatinas, também foram examinados por sua possível associação com o risco de demência. Embora alguns estudos observacionais tenham sugerido que o uso de estatinas possa estar associado a um risco menor de desenvolver demência, as evidências permanecem variadas. [5]
Por outro lado, os antidepressivos, que neste estudo foram associados a risco aumentado, têm sido amplamente estudados quanto à sua possível função no risco de demência, com achados mistos surgindo na literatura recente. A relação entre depressão e demência é complexa, pois os sintomas depressivos podem tanto preceder quanto acompanhar o declínio cognitivo, sendo este ponto inclusive uma limitação deste estudo, como veremos em breve. Ainda, indivíduos com sintomas depressivos mais tarde na vida têm um risco maior de desenvolver demência, sugerindo que a depressão pode servir tanto como um fator de risco quanto como uma manifestação precoce de processos neurodegenerativos. [6]
Em que pese a relevância numérica e estatística dos achados, a revisão reconhece várias limitações presentes nos estudos incluídos. Uma das principais preocupações é a possibilidade de classificação errônea da exposição, pois os dados se basearam principalmente nos medicamentos prescritos como um proxy para a ingestão real de medicamentos, sem confirmação direta da adesão do paciente ou do consumo de medicamentos. Isso pode levar a imprecisões na determinação da verdadeira associação entre medicamentos específicos e o risco de desenvolver demência. Além disso, os estudos carecem de informações abrangentes sobre vários fatores de confusão, como nível de escolaridade, status socioeconômico, predisposições genéticas, ou biomarcadores relevantes.
Outra limitação digna de nota, que é também destacada na revisão, é a possibilidade de causalidade reversa. Por exemplo, determinados medicamentos identificados como associados ao aumento do risco de demência, como antipsicóticos e antidepressivos, podem ser influenciados pelo fato de que indivíduos com sinais precoces de declínio cognitivo têm maior probabilidade de receber prescrição desses medicamentos, em vez de os próprios medicamentos causarem demência.
Apesar dessas limitações, a revisão enfatiza o potencial promissor das abordagens orientadas por dados para o avanço da pesquisa sobre o redirecionamento de medicamentos e a exploração das vias causais na demência. Especificamente, o aproveitamento dos dados ômicos e das técnicas de randomização mendeliana pode oferecer percepções valiosas para a identificação de novos alvos de medicamentos. Ao integrar essas metodologias avançadas, os pesquisadores podem se aprofundar na compreensão dos mecanismos subjacentes às associações entre medicamentos e demência, possivelmente descobrindo novos caminhos terapêuticos e melhorando os resultados dos pacientes neste campo de pesquisa.
Referências
- UNDERWOOD, Benjamin R. et al. Data‐driven discovery of associations between prescribed drugs and dementia risk: A systematic review. Alzheimer’s & Dementia: Translational Research & Clinical Interventions, v. 11, n. 1, p. e70037, 2025.
- REA, Federico; CORRAO, Giovanni; MANCIA, Giuseppe. ANTIHYPERTENSIVE DRUG THERAPY AND RISK OF DEMENTIA: REAL-WORLD EVIDENCE FROM A LARGE OLD POPULATION. Journal of Hypertension, v. 42, n. Suppl 1, p. e23, 2024.
- PETERS, Ruth et al. Dementia risk reduction: why haven’t the pharmacological risk reduction trials worked? An in‐depth exploration of seven established risk factors. Alzheimer’s & Dementia: Translational Research & Clinical Interventions, v. 7, n. 1, p. e12202, 2021.
- NGUYEN, Thi Ngoc Mai et al. Long-term low-dose acetylsalicylic use shows protective potential for the development of both vascular dementia and Alzheimer’s disease in patients with coronary heart disease but not in other individuals from the general population: Results from two large cohort studies. Alzheimer’s Research & Therapy, v. 14, n. 1, p. 75, 2022.
- DING, Mozhu et al. Use of common cardiovascular disease drugs and risk of dementia: A case–control study in Swedish national register data. Alzheimer’s & Dementia, 2024.
- WANG, Grace Hsin-Min et al. Association between antidepressants and dementia risk in older adults with depression: a systematic review and meta-analysis. Journal of Clinical Medicine, v. 12, n. 19, p. 6342, 2023.