A Agência que trata dos alimentos e medicamentos nos EUA – Federal Food and Drug Administration/FDA – silenciosamente reafirma sua posição (reaffirmed its position) de que os norte americanos não estão sendo prejudicados pelo bisfenol A/BPA, um estrogênio sintético, ingrediente essencial da resina epóxi que se usa como uma lâmina interna da maioria dos enlatados nos Estados Unidos (nt.: e em todo o mundo!).
http://www.ewg.org/enviroblog/2015/01/fda-clears-bpa-cans-again
Grupos norte americanos de comerciantes e fabricantes de latas trombetearam sobre a postura da FDA, postada no website da agência em 04 de dezembro de 2014. Não é à toa. Sem a luz verde da agência, os fabricantes de enlatados seriam forçados a fazer uma re-engenharia de suas linhas de montagem que alterariam algo como $126,3 bilhões de dólares de latas de alumínio e aço faturados no último ano, de acordo com o Can Manufacturers Institute. Os interesses financeiros nem foram enumerados, mas são, sem dúvida, enormes.
Alguns companhias gastaram bom dinheiro para mudarem seus produtos para materiais isentos de BPA, para assegurar ao público que suas mercadorias seriam seguras. Em 2009, graças à pressão dos defensores da saúde pública e da ação dos organismos oficiais, os fabricantes de produtos infantis pararam de usar o BPA em suas mamadeiras plásticas (stopped using BPA to make plastic baby bottles). Encontraram substitutos para o BPA também para as embalagens de alimentos formulados infantis. Os fabricantes, como a Nalgene, de garrafas d’água para desportistas, trocaram a resina plástica policarbonato, que contém BPA, por outras.
Mas as indústrias das latas têm sido duras na queda. Elas não negam que o BPA lixivia da resina plástica como do epóxi que forra internamente as latas para quaisquer dos alimentos ou das bebidas em que ele toca. Em vez disso, dizem que ele não é perigoso. A North American Metal Packaging Alliance argumenta em seu website que “os níveis extremamente baixos de BPA detectados em alimentos enlatados não representam riscos de saúde a crianças e adultos”.
Muitos biólogos proeminentes, especialistas em endocrinologia além de outros cientistas e autoridades médicas, descordam desta afirmativa. A luta sobre a segurança do BPA é, na verdade, uma batalha quanto às disfunções endócrinas que vêm subvertendo muitas noções científicas tradicionais de toxicologia. Este campo da ciência desenvolveu-se a partir da descoberta de que algumas substâncias químicas bloqueiam ou estimulam os sistemas hormonais dos organismos e que a exposição, mesmo em minúsculas concentrações, pode ter grandes efeitos sobre o cérebro em desenvolvimento, o sistema nervoso e o sistema reprodutivo das pessoas, dos animais de laboratório e da vida selvagem.
Se quiséssemos pinçar um único evento que catapultou este campo das disfunções endócrinas para os olhos do público, deve ser a publicação, em 1996, do livro Our Stolen Future (nt.: no Brasil foi lançado em agosto de 1997 pela L&PM Editores, com o título de ‘O Futuro Roubado’ e a quem dedicamos este nosso website com a tradução original do título do livro) de Theo Colborn, Pete Myers and Diane Dumbowski. (Colborn, legendária cientista e fundadora do website The Endocrine Disruption Exchange/TEDX e que faleceu em 14 de dezembro de 2014, com a idade de 87 anos). Este extraordinário trabalho analisou o resultado de dezenas de experimentos científicos de laboratório e observações de pessoas e da vida selvagem, alertou o público quanto ao crescente corpo de evidências que demonstravam a exposição ampla e global a uma mistura perigosa de substâncias químicas que alteravam a sinalização hormonal, com efeitos desconhecidos, mas possivelmente nefastos, sobre a saúde dos seres humanos e de todos os outros seres. Os autores clamavam por urgentes investigações quanto aos efeitos destes químicos.
Centenas, talvez milhares, de cientistas de instituições independentes de pesquisa, corresponderam a este clamor e desenvolveram métodos mais avançados de pesquisa que documentaram que os químicos disruptores endócrinos foram responsáveis por mudanças sutis, mas permanentes, nos sistemas cerebral, comportamental e reprodutivo tanto dos seres humanos como de outros animais, mesmo em concentrações de poucas partes por bilhão.
A FDA tem sido relutante em aceitar este massivo corpo de evidências. Permanece confiando nos métodos tradicionais de estudar as substâncias químicas quanto à sua toxicidade. Estes métodos estão baseados sobre descobrir qual quantidade de uma substância química poderá causar danos grosseiros a um órgão ou a um tecido, ou para desencadear um câncer, e se voltam a um trabalho no sentido de identificar uma suposta quantidade não tóxica – não venenosa.
No entanto, a dra. Colborn e seus colegas que estudaram os químicos disruptores endócrinos, concluíram no Our Stolen Future que substâncias que poderiam matar células a altas doses, comportavam-se de forma paradoxa a baixas doses (behaved paradoxically at low doses), quando estimulam o crescimento celular. Em 2009, a Endocrine Society, uma organização internacionalmente prestigiada de pesquisadores e profissionais médicos, postaram uma declaração científica, em seu website, que sintetizava esta nova e surpreendente percepção em relação aos químicos disruptores endócrinos: “…mesmo em níveis infinitamente baixos de exposição—na verdade, em quaisquer níveis de exposição—podem causar anomalias endócrinas ou reprodutivas, particularmente se a exposição ocorrer durante uma janela crítica de desenvolvimento. Surpreendentemente, baixas doses podem exercer efeitos mais potentes do que em altas doses”.
Pesquisa conecta os disruptores endócrinos a mudanças anormais de células e crescimento celular levando a conexões entre estes químicos e o câncer, puberdade precoce, infertilidade, hiperplasia prostática e outras desordens do sistema reprodutivo, além de obesidade, danos cardiovasculares, função cerebral e muitas outras enfermidades.
Dada a confiança da FDA aos antigos métodos científicos, não é nenhuma novidade de que a agência não vá querer se mover desta sua posição de que o BPA não é tóxico nos níveis aos quais os seres humanos estão expostos em seu dia a dia.
O que É inexplicável era a posição temporal da agência. Ela é parceira com o National Institute of Environmental Health Sciences e mais uma dúzia de pesquisadores acadêmicos em um iniciativa, multi-anual e multimilionária, em dólares, de pesquisa chamada CLARITY-BPA. Este projeto almeja uma avaliação abrangente sobre os efeitos do BPA quanto a reprodução e o desenvolvimento em animais de laboratório. O grupo deste projeto planeja avaliar os marcadores sensíveis a disfunções endócrinas sobre a mama, a próstata, o cérebro e outros sistemas do organismo. Ele intenta examinar o maior número de testes em animais do que os estudos anteriores e ainda perscrutar os efeitos desta substância nas variações de diferentes doses.
A FDA baseou sua determinação de segurança emitida em dezembro de 2014, sobre os resultados de um estudo de toxicidade de 90 dias, publicado em janeiro deste mesmo ano, que foi um piloto para o amplo projeto CLARITY. A FDA concluiu que o estudo detectou não haver efeitos em baixas doses de BPA sobre um trabalho com animais. No entanto, este trabalho sofreu problemas metodológicos e os animais de controle intencionalmente não foram expostos a baixas doses de BPA, tornando assim impossível se obter quaisquer conclusões sobre a segurança dos norte americanos às exposições diárias ao BPA. O website da ONG Environmental Health News explana os fatos deste estudo da FDA com maior detalhes aqui [link :http://www.environmentalhealthnews.org/ehs/news/2014/feb/bpa-low-doses].
Por que a FDA emitiu um comunicado de segurança baseada em um estudo falho de curto prazo, antes do extenso estudo CLARITY-BPA ter sido concluído? Estaria a agência envolvida em uma corrida para algum julgamento? Ou estaria tentando impedir opções regulatórias? Boas perguntas.
De uma coisa sabemos que é certa: responder primeiro e perguntar depois, não vai aumentar a confiança do público na FDA.
CC photo courtesy of: Flickr, user Craig Sunter
Tradução livre de Luiz Jacques Saldanha, janeiro de 2015.