Rio canadense agora é legalmente uma pessoa. Não é o único.

Rio Magpie ou Mutuhekau Shipu para os , na região de Côte-Nord em Quebec no Canadá, é um rio que tem direitos. Conquista dos povos nativos da América do Norte.

https://www.nationalgeographic.com/travel/article/these-rivers-are-now-considered-people-what-does-that-mean-for-travelers

CHLOE BERGE

15 DE ABRIL DE 2022

Do Amazonas (nt.: em seu trecho colombiano) ao Klamath (nt.: rio que corre entre o sul de Oregon e norte da Califórnia), conceder direitos legais aos rios faz parte dos esforços liderados pelos indígenas para protegê-los.

Com suas corredeiras estrondosas cortando uma floresta boreal selvagem na região de Côte-Nord de Quebec, o Rio Magpie é bem conhecido por raftings em suas águas brancas, em todo o mundo. O que talvez esses viajantes podem não saber é que o Magpie recentemente se tornou o primeiro rio do Canadá a obter personalidade jurídica.

Esse fluxo de águas de, mais ou menos, 200 quilômetros de extensão é sagrado para a Primeira Nação Innu, que a chama de Mutuhekau Shipu. Eles dependem dele como um importante fluxo de vida, fonte de alimento e farmácia natural há séculos. Mas nos últimos anos, o rio foi ameaçado pelo desenvolvimento de barragens hidrelétricas, cujos efeitos ambientais e sociais negativos muitas vezes superam quaisquer benefícios de energia renovável.

Para proteger o marco natural, o Conselho Innu de Ekuanitshit e o Município Regional de Minganie declararam o Mutuhekau Shipu uma pessoa jurídica em 2021. Agora o rio tem nove direitos, entre eles o direito de fluir, manter a biodiversidade, estar livre de poluição e de se defender juridicamente.

Embora seja a primeira vez no Canadá, é parte de uma campanha global liderada por indígenas que ecoa o movimento dos direitos da natureza, que visa fornecer proteções concretas para a paisagem natural. Nos últimos anos, muitos rios – do Whanganui da Nova Zelândia ao Rio Klamath dos Estados Unidos – ganharam personalidadeEm 2018, a Suprema Corte da Colômbia concedeu direitos legais ao Amazonas – o maior rio do mundo .

Um homem ensina seu filho a pescar enguias ao longo do rio Whanganui, na Nova Zelândia. O rio é sagrado há muito tempo para o povo maori, que o considera “tupuna”, ou ancestral. FOTO DE MATHIAS SVOLD, NAT GEO IMAGE COLLECTION

Adolescentes maoris descem de canoa o rio Whanganui. O ecoturismo liderado por indígenas pode construir uma compreensão cultural para os viajantes, ao mesmo tempo em que capacita os povos indígenas a se reconectarem com suas terras ancestrais. FOTO DE MATHIAS SVOLD, NAT GEO IMAGE COLLECTION

Enquanto rios como o Magpie já estão no radar do povo que faz ‘rafting‘, o crescimento do ecoturismo nessas áreas pode ser fundamental para ajudar a proteger muitos outros. O desenvolvimento de uma economia não-extrativista não apenas envolve mais pessoas na conservação dos rios, mas também oferece uma maneira para as comunidades indígenas educarem os viajantes sobre a importância de proteger esses canais vitais (nt.: destaque dado pela tradução porque consideramos que necessitamos muito mais do que precisamos, ser ‘alfabetizados’, ‘evangelizados’ e ‘doutrinados’ pelos povos originários como nos ligarmos como Seres Coletivos, mais do que humanos, com todos os seres do planeta. E parece mentira que parece que só eles sabem o ‘caminho das pedras’ para reencontrarmos a sacralidade de todo o universo).

Por que personalidade?

A concessão de personalidade jurídica aos rios representa uma mudança sísmica da crença fundamental na sociedade ocidental de que os humanos estão no ápice do mundo natural. Mas para muitos indígenas, o conceito de natureza como um ser senciente igual aos humanos não é novidade. Na cultura maori, por exemplo, os ancestrais, ou tupuna, são incorporados na paisagem.

“Vejo o rio e as árvores como ancestrais”, diz Uapukun Mestokosho, membro da Mutehekau Shipu Alliance, o comitê que defendeu os direitos legais do rio. “Eles estão aqui muito antes de nós e merecem o direito de viver.”

Enquanto o movimento de pessoalidade reconceitualiza a relação entre rios e pessoas, conceder personalidade a entidades não humanas é um conceito ocidental existente aplicado a corporações que podem unir sistemas jurídicos ocidentais e indígenas. “No caso do Rio Magpie, a lei indígena está aparecendo em uma linguagem que a lei canadense pode entender”, diz Lindsay Borrows, professora de direito da Queen’s University, em Ontário.

A forma como essas declarações de personalidade se traduzem em legislação varia muito, desde um reconhecimento abrangente no caso do rio Whanganui até uma lista de direitos específicos no Magpie e Klamath. Outras legislações reconhecem entidades naturais como titulares de direitos, mas não atingem a personalidade.

É o caso da Reserva Biológica Los Cedros, no Equador , onde uma recente decisão histórica confirmou os direitos constitucionais da reserva contra a mineração. Da mesma forma, no centro da Flórida, os guardiões do lago Mary Jane recentemente entraram com um processo no tribunal estadual para defender os direitos do lago contra invasões – o primeiro na América. 

O rio Whanganui atravessa o Parque Nacional Whanganui na região de Manawatu-Wanganui, na Nova Zelândia. FOTO DE TIM CLAYTON, CORBIS/GETTY IMAGES

Personalidade é uma nova ferramenta legal, por isso continua a ser contestada em tribunal. No entanto, parte de seu poder está na capacidade de manter os conflitos fora do tribunal. Em vez disso, conta com guardiões nomeados defendendo em nome do rio ou da floresta. Também representa a lei indígena traçando uma linha na areia.

“Queremos enviar uma mensagem de que somos um governo para nossa nação”, diz Shanice Mollen-Picard, membro da Mutehekau Shipu Alliance. “Vivemos neste território e sabemos como protegê-lo melhor.”

Como o turismo pode desempenhar um papel

Personalidade aumenta o perfil de marcos naturais, chamando a atenção para sua beleza e significado cultural. Ao fazê-lo, constrói um forte argumento para promover uma economia local alinhada com os valores conservacionistas.

Na região de Côte-Nord de Quebec, o desenvolvimento do turismo depende da proteção do Rio Magpie e da vizinha Ilha Anticosti, um parque provincial que busca o status de Patrimônio Mundial da UNESCO. “Acho que a Hydro-Quebec não terá muito sucesso construindo outra barragem no Magpie uma vez que [o rio] for mais conhecido”, diz Danny Peled, proprietário da Boreal River Adventures.

Ao contrário da natureza “explosiva” de projetos industriais como a implantação de barragens, o ecoturismo poderia criar uma economia duradoura e sustentável na área. “O ecoturismo é conectar-se com a terra e vê-la através das lentes da proteção, e não da exploração”, diz Keith Henry, presidente da Associação de Turismo Indígena do Canadá. “A experiência está mudando lá para que o mundo possa vir e visitar.”

Por meio do turismo, as comunidades indígenas podem educar os viajantes sobre as ameaças ambientais em seus territórios. “As vozes nativas realmente ganharam destaque quando se trata de questões como gestão de recursos e terras”, diz Josh Norris, gerente da Redwood Yurok Canoe Tours no norte da Califórnia. “Os viajantes agora estão procurando isso.

”Quando entrarmos nos territórios de outras pessoas para desfrutar de suas belezas naturais, espero encontrar maneiras de descobrir suas leis e vivê-las e respirá-las para que sejamos bons visitantes.” LINDSAY BORROWS, PROFESSOR DE DIREITO, QUEEN’S UNIVERSITY

As viagens de remo de Norris oferecem uma compreensão íntima do rio Klamath, onde os visitantes embarcam em uma canoa tradicional e flutuam pelas florestas de sequoias. Ao longo do caminho, um guia Yurok explica o significado histórico e cultural do rio na cultura Yurok, bem como as ameaças que levaram ao seu status de pessoa.

Da mesma forma, uma viagem de canoa liderada pelos maoris nas águas cor de jade do rio Whanganui é uma jornada que se faz perto da cultura e da história indígenas – uma maneira crucial de construir um apoio público para a proteção contínua do rio.

“A lei é tão poderosa quanto as pessoas a entendem”, diz Borrows. “Até então não estava escrito no coração das pessoas; só foi escrito no papel. Quando entrarmos nos territórios de outras pessoas para desfrutar na intimidade de suas belezas naturais, espero encontrar maneiras de descobrir suas leis, vivê-las e respirá-las para que sejamos bons visitantes.”

Uma plataforma de reconciliação 

Um entendimento mais profundo entre colonos e comunidades indígenas está na raiz da reconciliação. Enquanto o turismo indígena nascente na América do Norte e em outros lugares frequentemente excluía ou explorava esses grupos, a orientação fluvial pelos povos originário First Nations/Primeiras Nações em áreas que eles trabalharam para proteger, permite que eles modelem sua narrativa.

Na viagem de rafting de vários dias da Boreal River Adventures, os guias Innu navegam pelas corredeiras espumantes e redemoinhos do Magpie, levando os viajantes através da tundra ártica e da floresta sombria. “Você conhece bem todo mundo ao longo de uma semana, então é uma forma de as pessoas fazerem perguntas e se conectarem com um indígena de forma aprofundada”, diz Peled.

O rafting no Magpie capacita a First Nation/Primeira Nação Innu a se reconectar com suas terras ancestrais também. Uma viagem de rafting da Boreal River Adventures só para mulheres em 2013 acendeu a paixão da comunidade por proteger o rio. “Esse foi o momento que realmente nos levou a defender sua proteção”, diz Mestokosho. “Vimos a história de nossos ancestrais, a vida selvagem, o sol, o poder do rio e que tínhamos que protegê-lo.”

Agora, a comunidade Innu espera desenvolver seus próprios empreendimentos turísticos. Embora ainda esteja em estágios iniciais, parte das responsabilidades dos guardiões do rio designados, será compartilhar o conhecimento tradicional sobre rafting guiado, caminhadas e excursões de pesca e caminhadas pela medicina tradicional. Os membros da comunidade esperam que tais atividades cultivem uma compreensão compartilhada da importância de proteger esses rios selvagens.

“Precisamos ver que, como humanos, não estamos acima da água ou dos animais. Somos parte de um todo”, diz Mestokosho. “Quando curamos a terra, curamos a nós mesmos também.”

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, abril de 2022.