Vista de drone da cachoeira Salto Morato, na Reserva Particular do Patrimônio Natural Salto Morato. Foto: Tales Azzi
15 de março de 2022
Por um lado, a restauração da Mata Atlântica avança, mas por outro, o bioma vem perdendo florestas maduras e seus serviços ambientais. Como equilibrar essa conta que ainda não fecha?
A Mata Atlântica acumula um histórico de devastação que se confunde com a própria construção do Brasil em seus cinco séculos de existência como país. Para suprir demandas incessantes de um modelo de desenvolvimento econômico que se sustentou em ciclos de esgotamento da natureza e de um processo de urbanização veloz e desordenado, a fragmentação dos remanescentes florestais se tornou uma das principais marcas do passivo ambiental deste bioma. Embora esforços estejam em curso, recuperá-lo e, sobretudo, reconectá-lo, não são tarefas simples. Principalmente no atual cenário político-institucional de evidente desvalorização da agenda socioambiental.
Diante dessa complexidade, uma questão central tem inquietado cientistas e ambientalistas. Como resolver a difícil equação que envolve, por um lado, o crescimento de florestas novas pelos esforços de restauração da Mata Atlântica e, por outro, a perda de florestas maduras e de seus serviços ecossistêmicos insubstituíveis. Alguns especialistas nacionais nesta temática, ouvidos pelo ((o))eco, analisam, criticamente, esse dilema e apontam soluções possíveis. Parte delas passa pelo cumprimento do arcabouço legal brasileiro para que seja possível assegurar a proteção da natureza e o próprio bem-estar humano no presente e no futuro.
“Nos últimos anos, há um evidente afrouxamento nas ações de comando e controle e as políticas ambientais estão sendo destruídas”, analisa o pesquisador Renato Crouzeilles, professor do Departamento de Ecologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que observa que a falta de aplicabilidade prática da legislação ambiental brasileira está no centro da problemática relacionada ao aumento do desmatamento da Mata Atlântica, assim como de outros biomas. Ainda que seja um entusiasta de projetos de restauração, o pesquisador ressalta que é preocupante observar que, independentemente dos ganhos ambientais associados a essas iniciativas, um bioma já extremamente desmatado e degradado como a Mata Atlântica continua perdendo vegetação nativa. Essa inquietação inspirou a temática central de um artigo publicado em janeiro de 2021, do qual Crouzeilles é um dos autores.
Na publicação, repercutida em ((o))eco à época, os pesquisadores discutem que uma aparente recuperação da Mata Atlântica nas últimas décadas, esconde um desequilíbrio que precisa ser melhor compreendido pela ciência e pela sociedade, em geral. Isso porque o bioma tem pelo menos 11% da sua cobertura vegetal formados por florestas jovens, variando entre dez e vinte anos de existência, enquanto avança, gradativamente, o desmatamento de florestas maduras.
De acordo com dados do MapBiomas, publicados em setembro de 2021, entre os anos de 1987 e 2019, a perda de vegetação primária na Mata Atlântica foi de 31,2% da cobertura do bioma, o que representou 10 milhões de hectares no período, mais do que o dobro da extensão total do Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, no Amapá, o maior do Brasil. Enquanto isso, em 2017, o crescimento de vegetação secundária havia alcançado 27,8 % da vegetação natural, o que significou um aumento de 9 milhões de hectares. Em um bioma com 69% de áreas modificadas pelas atividades humanas, em 2020, segundo a mesma fonte, 66% das perdas florestais ocorreram em terras privadas.
Para dar uma ideia dos problemas envolvidos nesse panorama de desequilíbrio entre o que se ganha com a restauração e o que se perde com o desmatamento da Mata Atlântica, Crouzeilles explica que são necessários entre 50 e 100 anos para que uma floresta nova consiga prestar serviços ambientais como armazenamento de carbono e tenha diversidade de espécies no nível de uma floresta madura.
Para a solução do problema, o pesquisador afirma: “Não precisamos criar políticas novas e sim implementar as políticas que já temos”. Como exemplo, menciona a necessidade de fazer valer a Lei 12.651, de Proteção de Vegetação Nativa de 2012, o chamado Novo Código Florestal. Essa legislação – que estabelece diretrizes para a proteção da natureza em propriedades privadas – tem sofrido inúmeras resistências devido a interesses econômicos e políticos conflitantes com essa agenda. Diante desse cenário, Renato opina que os imóveis rurais precisam ser monitorados por meio de medidas mais rigorosas, como a restrição de acesso ao crédito aos seus proprietários, em caso de desacordo com o Cadastro Ambiental Rural (CAR).
Por outro lado, o pesquisador considera que grande parte da sociedade já está conseguindo compreender melhor a relação de interdependência entre proteção da natureza e equilíbrio climático, o que tende a impulsionar ações em redes de articulação para o enfrentamento dos dilemas socioambientais nacionais, independentemente das iniciativas governamentais.
Nessa perspectiva, ele analisa que para além da importância das unidades de conservação, espera ver benefícios também nas áreas rurais privadas, como o pagamento por serviços ambientais para os proprietários que estão conseguindo manter fragmentos de floresta bem conservados. Talvez essa seja uma alternativa para evitar que eles cortem as florestas secundárias, ainda em processo de crescimento.
Em contrapartida, o pesquisador considera que as empresas têm importância central para os avanços necessários às agendas do equilíbrio climático e da conservação da biodiversidade no Brasil. Ele acredita, também, que o movimento ESG (Governança Social e Ambiental, na sigla em inglês) representa um caminho promissor para a busca de soluções de recuperação e proteção da Mata Atlântica. Mas alerta que as práticas empresariais precisam ser monitoradas pela sociedade para que se tenha certeza de que as corporações não estão “fazendo propaganda enganosa”.
Crouzeilles ainda destaca o papel desempenhado pelas ONGs, em ações com resultados concretos para a recuperação florestal do bioma como o Pacto pela Restauração da Mata Atlântica, que prevê a restauração de 15 milhões de hectares, até 2050.
Por que não conseguimos zerar o desmatamento da Mata Atlântica?
A bióloga Michele de Sá Dechoum, professora do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), também aponta a falta de infraestrutura institucional como um grande impedimento ao controle do desmatamento da Mata Atlântica. Segundo ela, a carência de pessoal para fiscalização preventiva é um dos principais percalços. Sem investimento público e diante de um claro panorama de impunidade, a especialista considera que a situação tem se agravado, no atual cenário político, favorecendo a prática de crimes ambientais.
Além disso, ela alerta para algumas particularidades da Mata Atlântica, bioma também dominado por ecossistemas que não são florestas. Um exemplo mencionado é o das restingas, cuja conversão da vegetação não-arbórea não é bem percebida em imagens de satélites e tampouco compreendida pela sociedade em geral. “Ecossistemas abertos são menos percebidos pelas pessoas e pouco valor é dado ao que não é árvore e floresta”, observa. “Mas proteger restingas é fundamental para o litoral”, reafirma. Dentre outras importantes funções ecológicas, esses ambientes naturais protegem as áreas costeiras do avanço do mar, questão cada vez mais emergente diante do agravamento da crise climática.
Diante de toda a complexidade envolvida, Michele considera fundamental ampliar as ações educativas para despertar na sociedade o comprometimento com a proteção da natureza e também o sentido de cobrança por ações concretas da gestão pública. “Existe uma ideia equivocada de que proteger a natureza atrapalha o desenvolvimento econômico”. Para ela, a postura precisa ser outra, sobretudo, em um país líder global em diversidade biológica como o Brasil.
Para Fabio Scarano, professor do Departamento de Ecologia da UFRJ, não adianta somente restaurar áreas degradadas como solução para a recuperação da Mata Atlântica. Ele concorda que, o que falta no Brasil, é “cumprir a lei” para não perdermos mais florestas maduras. “O país tem base legal e científica para orientar processos de tomadas de decisão em favor da proteção da natureza e dos interesses coletivos”, observa.
Além do Código Florestal, revisado em 2012, mas ainda sem uma real implementação nacional, Scarano recorda que o país tem a Lei da Mata Atlântica, de 2006, que vem sendo descumprida pelos municípios brasileiros, cujos prefeitos continuam autorizando desmatamento para obras de infraestrutura.
Scarano ressalta que a maioria das espécies ameaçadas de extinção, no Brasil, está na Mata Atlântica e alerta que, em tempos de agravamento da crise climática, manter os seus ecossistemas sob esse estado de pressão representa um risco de múltiplas dimensões. Reforça, ainda, que o bioma reúne todas as qualidades para sair da condição de hotspot (são 36 ambientes globais de maior relevância em biodiversidade e fortemente ameaçados pelas atividades humanas), podendo se tornar uma vitrine internacional de sustentabilidade. “Podemos cumprir a lei e transformar a Mata Atlântica num ponto de esperança para o clima, a biodiversidade, a geração de empregos e a inclusão social”, analisa.
Essa perspectiva otimista de recuperação da Mata Atlântica foi tema de artigo publicado em 2018, como parte de uma pesquisa da doutoranda Camila de Rezende, orientada por Scarano. O título em inglês faz um trocadilho entre hotspot e hopespot (algo como de ponto quente a ponto de esperança). Nessa publicação, na qual ambos se juntaram a outros pesquisadores de referência internacional, foi argumentado que, até então, os remanescentes da Mata Atlântica eram estimados entre 11% e 16%, mas utilizando uma tecnologia de mapeamento por satélite com a maior resolução, eles indicaram que a cobertura vegetal alcançava 28% do bioma, o que representava 32 milhões de hectares de vegetação nativa. Simultaneamente, identificaram a existência de 7,2 milhões de hectares de matas ciliares degradadas, dos quais 5,2 milhões de hectares devem ser restaurados, antes de 2038, pelos proprietários rurais para cumprimento do Código Florestal.
Segundo Scarano, mais de 80% do que restou dessas florestas nativas estão em áreas fragmentadas e em terras privadas que precisam ser reconectadas para tornar viável a proteção da biodiversidade no longo prazo, dentre outras funções ecológicas. Ele ressalta que as Áreas de Preservação Permanentes (APPs) podem desempenhar muito bem esse papel de conectar áreas protegidas públicas e privadas da Mata Atlântica. E estima que se o processo de restauração for bem planejado, a cobertura de vegetação nativa pode chegar a 35% do bioma, outro aspecto mencionado no artigo publicado.
Na Década da ONU da Restauração de Ecossistemas, entre 2021 e 2030, e diante de sinalizações internacionais como a da meta de neutralidade de carbono da Europa, em 2030, Scarano considera que o Brasil tem duas opções: “ou saímos na frente, demonstrando capacidade e desenvolvendo parte da nossa economia com isso, ou ficamos a reboque de um movimento que tende a avançar no mundo”. O pesquisador alerta que a União Europeia é um parceiro comercial importante para o país e que esse bloco econômico vai ampliar restrições para eliminar produtos da pauta de importações que tenham riscos de vinculação com desmatamento e outras ilegalidades. “Se continuar desmatando, o Brasil vai perder parceiros”, alerta.
O Relatório Temático sobre Restauração de Paisagens e Ecossistemas sinalizou, em 2019, que a partir da restauração de 12 milhões de hectares de vegetação nativa, o Brasil poderá sequestrar 1,39 Mt de CO2 (dióxido de carbono) até 2030. Para isso, precisará ser cumprido o Código Florestal e fortalecido o Plano de Agricultura de Baixa Emissão de Carbono (Plano ABC). O documento destaca que esse esforço ainda permitiria “a recuperação adicional de 15 milhões de hectares de pastagens degradadas e o incremento de 5 milhões de hectares de sistemas de integração lavoura-pecuária-florestas (iLPF)”, também até 2030.
Com essas medidas, o país poderia gerar entre 112 mil e 191 mil empregos anuais até 2030. Estima-se que, a cada 1.000 hectares em restauração com intervenção humana, 200 empregos diretos são gerados. Isso envolve atividades como coleta de sementes, produção de mudas, plantio e manutenção.
Restauração florestal pode gerar a criação de 200 empregos diretos para cada mil hectares em restauração com interferência humana. Dados: BPBES/IIS. Foto: Augusto Gomes.
A experiência pioneira da SOS Mata Atlântica
Luis Fernando Guedes Pinto, diretor de conhecimento da Fundação SOS Mata Atlântica, é outra voz que se soma ao debate sobre a falta de aplicabilidade da legislação ambiental para frear o desmatamento da Mata Atlântica. Ele observa que em algumas fronteiras do bioma, há produtores desmatando 1 hectare, extensão que as imagens de satélite não conseguem enxergar. A segunda frente de pressão envolve o crescimento urbano, pelo qual se multiplicam pequenas áreas desmatadas para dar lugar a condomínios, galpões e outras obras que pressionam mangues, restingas e demais ecossistemas do bioma.
Guedes Pinto acrescenta a esse conjunto de fatores de pressão, o avanço do crime organizado que, nos grandes centros, vem promovendo loteamentos e construções ilegais que colocam em risco os ecossistemas. “A fiscalização é falha. Chega tarde”, observa. Segundo ressalta, dados do Projeto MapBiomas indicam um nível de ilegalidade do desmatamento no bioma da ordem de 90% e acrescenta que existem autorizações questionáveis nos processos.
O Atlas da SOS Mata Atlântica, divulgado em 2021, indica que 13.053 hectares (130 quilômetros quadrados) de florestas maduras foram derrubados entre 2019 e 2020. Apesar de ter representado uma queda de 9% em relação ao apurado entre 2018 e 2019, o diretor considera o resultado preocupante diante das condições do bioma. “Estamos perdendo florestas raríssimas que são protegidas por lei e que não poderíamos mais perder de forma alguma”, afirma.
Segundo observa, o bioma “ainda não está em uma rota segura”, pois vive essa forte contradição entre o ganho de novas áreas florestais, embora cortadas antes de alcançarem dez anos de existência devido a brechas legais, e a perda de vegetação nativa madura e seus serviços ecossistêmicos insubstituíveis.
A distribuição desigual do que sobrou e a dificuldade de reconexão de fragmentos são outros desafios. Apesar disso, o diretor ressalta que a Mata Atlântica é um dos poucos hotspots globais que pode se recuperar. Para isso, destaca que o Brasil tem capacidade de articulação social, competência científica, políticas públicas de importância reconhecida, dentre outras vantagens para fazer valer esse propósito.
Rafael Bitante Fernandes, gerente de Restauração Florestal da SOS Mata Atlântica, explica que a organização ambientalista tem empreendido inúmeros esforços pela proteção e também pela recuperação do bioma. Com 42 milhões de mudas plantadas, 23 mil hectares já foram restaurados desde 2000, esforço que envolve ações como prospecção de propriedades, plantio, manutenção e monitoramento. “É um trabalho bem complexo. Mas tem ciência por trás de tudo”, observa. Para essas ações, o carro-chefe é o programa Florestas do Futuro.
Mobilizar os proprietários rurais tem sido uma das missões mais desafiadoras. Esses são elos fundamentais do processo, considerando que devido à forma de ocupação, historicamente o bioma “é quase uma entidade privada”, como compara Fernandes. Apesar disso, ele assegura que os projetos “viram vitrines” nas regiões onde são implementados. Nesses 20 anos, as ações de restauração já mobilizaram 3 mil proprietários.
Outro percalço envolve a implementação de projetos em territórios onde não existe a cultura da restauração florestal. Isso significa que a cadeia precisa ser iniciada do zero com a formação de coletores de sementes, além de grupos para as ações de plantio, monitoramento e outras demandas. Em cenários de crise climática, perda de biodiversidade e escassez hídrica, a boa notícia é que existe interesse crescente das empresas por essas iniciativas de recuperação do bioma e seus serviços ambientais. “Nove entre dez empresas que nos procuram estão preocupadas com isso”, conclui.
Restauração natural, uma via possível de recuperação?
Plantar florestas em áreas que foram desmatadas e degradadas custa caro. Diante dessa limitação, o pesquisador Renato Crouzeilles, da UFRJ, destaca que, atualmente, especialistas estão discutindo como avançar em ações de regeneração natural para ampliar a recuperação da Mata Atlântica. Segundo ele, cada vez mais investimentos devem ser realizados em restauração pelo setor privado. “Já existem projetos do setor privado entrando em peso”, adianta.
Os processos são desafiadores, já que não adianta somente fazer acontecer cada projeto. Crouzeilles afirma que é preciso saber por quanto tempo essas iniciativas serão capazes de resistir. “Precisamos entender o comportamento dos proprietários”, observa. Ele relata que cerca de 50% das perdas de áreas reflorestadas acontecem em menos de oito anos.
Apesar de inúmeros desafios existentes, o pesquisador afirma que as incertezas sobre o tema têm sido reduzidas por estudos recentes que têm sinalizado sobre a viabilidade desse método de recuperação florestal. Em artigo publicado em fevereiro de 2020, Crouzeilles e outros pesquisadores apresentaram estimativas otimistas de regeneração natural da Mata Atlântica, da ordem de 2,8 milhões de hectares e consideram factível que outros 18,8 milhões de hectares sejam restaurados usando regeneração assistida até 2035. Com esses métodos, os custos de implementação dos projetos cairiam em US$ 90,6 bilhões, uma redução de 77% quando comparados com a alternativa de restauração florestal com plantio.
Para o equilíbrio climático, as estimativas também são promissoras. Segundo argumentado pelos pesquisadores na publicação, as florestas restauradas podem sequestrar 2,3 Gt de carbono. Igualmente para a proteção da biodiversidade, essas áreas recuperadas poderiam reduzir o risco de extinção de espécies em 63,4% e a fragmentação do bioma em 44%, em relação aos níveis atuais.
Ainda segundo destacado no artigo, de um total de 34,1 milhões de hectares (26,4%) da cobertura florestal da Mata Atlântica, houve a regeneração natural de 2,7 milhões de hectares (8,0%) entre 1996 e 2015.
O professor Fabio Scarano também destaca a perspectiva positiva de se fazer regeneração natural com custos mais baixos do que a restauração com plantio de mudas, mas ressalta que esse não é um processo simples. Ele afirma que é importante saber onde estão as áreas que precisam ser restauradas, ter sementes, combater formigas, dentre outros detalhes. Além disso, ressalta que o solo pode estar degradado e isso requer cuidados especiais.
“Não podemos correr o risco de regeneração natural ser percebida como terra abandonada”, alerta Fabio Scarano. “O Brasil domina a técnica e tem opinião pública a favor. Mas na política falta decisão”, acrescenta.
Ele menciona como exemplo de potencial de restauração natural uma experiência que acompanhou em Trajano de Moraes, região serrana do Rio, como orientador da tese de doutorado de Camila de Rezende. Em publicação conjunta sobre o tema, eles argumentam que essa alternativa pode contribuir para o cumprimento das metas assumidas pelo Pacto pela Restauração da Mata Atlântica até 2050.
Defendendo a tese de que a regeneração natural deve ser incorporada ao planejamento de recuperação da Mata Atlântica, os pesquisadores afirmam que, em 36 anos, a cobertura florestal em Trajano de Moraes aumentou em 3.020 hectares (15,3%), passando de 19.787 hectares, em 1978, para 22.807 hectares, em 2014, o equivalente a 0,4% de crescimento anual.
Espécies invasoras representam riscos à restauração
Ainda que reconheça que as técnicas estão se diversificando, que existem ações bem sucedidas em curso e que os esforços de restauração brasileiros têm sido cada vez mais percebidos internacionalmente, a professora Michele de Sá Dechoum, da UFSC, alerta para um risco que ainda ronda essas iniciativas: “A maior dificuldade é vencer as gramíneas invasoras”. E acrescenta que “a degradação é uma janela de oportunidade para as espécies invasoras se estabelecerem”. O tema é discutido em vídeo que busca esclarecer essa questão desafiadora. Outras produções envolvendo essa discussão estão no canal do YouTube da instituição com vários exemplos pesquisados.
Ela explica que, em áreas de florestas e ecossistemas abertos, a presença de espécies invasoras é considerada uma grande dificuldade técnica, além de uma ameaça aos projetos de restauração. Por outro lado, esclarece que nem toda invasora é grama. Há árvores que representam riscos, embora nesse caso, exista uma limitação que envolve a proximidade das pessoas.
Como exemplo, menciona o caso que tem acompanhado há uma década, da espécie conhecida como uva-do-Japão. Além de uma ameaça em áreas florestais na região Sul, em alguns ambientes ela virou monocultura. “O que aprendemos ao longo desses dez anos é que essa árvore altera a regeneração da floresta, o funcionamento ecossistêmico em seu próprio benefício e a disponibilidade de alimentos para animais, comprometendo a conservação da biodiversidade”, observa a pesquisadora.
Ela explica que, “para restaurar é preciso tirar essas invasoras, mas esse é um grande problema já que esbarra em resistências”. Dentre as alternativas possíveis, Michele destaca o controle químico. Embora reconheça que a solução é polêmica, ressalta que o uso é pontual e diferente do uso de agrotóxicos. “Mas sabemos que falar de controle químico é algo que gera controvérsias”, acrescenta.
Em termos de serviços ecossistêmicos, a professora observa que para compensar as emissões de carbono tem havido muito uso de espécies de rápido crescimento, mas explica que essas árvores armazenam muito menos carbono do que as das florestas maduras. Considerando que em algum momento serão cortadas, ela observa que essas são “soluções com prazo de validade”. Sendo assim, reforça que somente o plantio de árvores não resolve problemas complexos como a crise climática e a perda de biodiversidade, além de enfatizar que não se pode plantar qualquer espécie em qualquer lugar. Os riscos da falta de critérios são discutidos em coluna publicada em ((o))eco.
Em termos de importância para o armazenamento de carbono, a professora destaca o papel dos campos abertos da Mata Atlântica. E menciona que as áreas de culturas alimentares que têm vegetação nativa por perto alcançam mais produtividade pela polinização natural. Um exemplo nesse sentido envolve a produção de café.
“Assim, vale a pena restaurar. Mas é muito importante proteger o que existe de área de floresta nativa madura porque em termos de serviços ecossistêmicos esses ambientes têm importância fundamental”, opina. Para quem pretende desenvolver projetos de restauração, ela alerta: “É preciso ter conhecimento técnico para fazer o manejo das áreas, além de muita persistência para lidar com as adversidades cotidianas”.
Regeneração florestal não substitui florestas maduras. Foto: Augusto Gomes.
Outras soluções possíveis para reduzir custos
Para reduzir custos de restauração florestal, a professora Michele destaca a importância de envolver instituições e organizações sociais. “É preciso trabalhar modelos para cada ecossistema a partir de inúmeras possibilidades”, reforça.
Como exemplo de participação popular que tem feito grande diferença em projetos de restauração, ela menciona o processo de recuperação de áreas de restinga em Florianópolis. E relata que a iniciativa tem tido êxito por conseguir envolver moradores da cidade nesse movimento, fazendo com que as pessoas consigam compreender a importância desse ecossistema. “Isso ajuda a gente a superar uma grande dificuldade nesse tipo de projeto”, opina.
Para baratear os custos, também reitera a importância de restauração de áreas que têm florestas conservadas por perto. Nesse sentido, explica que é possível fazer o transplante de serrapilheira (camada de matéria orgânica gerada por áreas florestadas e rica em nutrientes) para ambientes que se pretende recuperar.
Além disso, afirma que a criação de redes de coletores de sementes nativas, que favorece o processo de semeadura direta, pode ser outra alternativa viável para reduzir custos de restauração, além de promover a inclusão, gerando renda para diversos grupos sociais. “Não dá para generalizar. A restauração não pode ser entendida como uma fórmula mágica. Tem que olhar caso a caso”, conclui.
As razões por trás do desmatamento e as tendências de recuperação da Mata Atlântica
A fome, a inação do governo federal para fazer valer a legislação ambiental e o avanço de grandes obras públicas são partes de uma conjunção de fatores que têm impulsionado o desmatamento da Mata Atlântica, na opinião do professor Ricardo Ribeiro Rodrigues, da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP). Mas ele acredita que, nas próximas duas décadas, haverá um grande movimento de recuperação do bioma, impulsionado, não somente por exigências legais, mas também por novos interesses do próprio mercado. Negociação de créditos de carbono, certificações e outras demandas econômicas tendem a favorecer a regeneração florestal. Apesar dessas tendências, ele defende que o país não pode se desviar do propósito de proteger o que resta de florestas maduras, cujos serviços ecossistêmicos são insubstituíveis. “Não podemos usar a restauração como justificativa para o desmatamento em nenhuma circunstância”, afirma o especialista, que é um dos coordenadores do Relatório Temático sobre Restauração de Paisagens e Ecossistemas, lançado em 2019. Ele também alerta: “Nós estamos perdendo florestas com muito melhor qualidade do que as florestas que estão sendo restauradas”.
Ricardo Ribeiro Rodrigues. Foto: divulgação
((o))eco: Quais são os principais dilemas em relação ao desmatamento da Mata Atlântica? Por que não se consegue fazer esse controle?
Ricardo Ribeiro Rodrigues: Esse aumento do desmatamento da Mata Atlântica não era para estar acontecendo. Principalmente, pela questão do avanço da aplicação do Código Florestal no Sudeste, onde já temos um bom diagnóstico ambiental através do CAR e porque já temos propostas boas dos PRAs [Programas de Regularização Ambiental] e dos PRADAs [Projetos de Recomposição de Áreas Degradadas e Alteradas].
Quais são os principais fatores de pressão para que o desmatamento do bioma continue acontecendo?
A agricultura, que é a principal pressão para o desmatamento na Amazônia e em outras regiões, aqui [na Mata Atlântica] está o inverso. Porque aqui a agricultura está focando mais nas áreas de maior aptidão agrícola e abandonando as áreas de menor aptidão. Ou seja, nós temos um aumento da regeneração de áreas marginais de forma natural. Então esse desmatamento recente está muito associado a uma questão socioeconômica. E também política, pelo fato de o governo federal não estar incentivando a conservação.
Em termos socioeconômicos e políticos, o que tem pesado mais nesse cenário do aumento do desmatamento?
Pela questão socioeconômica temos o desemprego. Então isso deve ser fruto de as pessoas quererem se sustentar, produzir alimentos de alguma forma, no desespero total dessa condição. E o que também eleva o aumento do desmatamento são as obras públicas. Quando consideradas de utilidade pública, o desmatamento é permitido. Como a gente está entrando num ano político, isso pode ter uma forte influência também.
A restauração contribui para reduzir o passivo ambiental da Mata Atlântica?
A restauração é positiva nas áreas que foram historicamente degradadas, mas ela nunca chega perto de um fragmento recém desmatado em termos de serviços ecossistêmicos, qualidade ambiental, etc. Isso é um fato importante. Nós podemos aumentar a restauração através de outras políticas, com a aplicação do Código Florestal, por meio de fiscalização e pagamento de serviços ambientais, entre outras iniciativas. Mas esse aumento da restauração não compensa o aumento do desmatamento. Nós estamos perdendo florestas com muito melhor qualidade do que as florestas que estão sendo restauradas.
O que estamos perdendo em termos de serviços ecossistêmicos que não são compensados pelo balanço de áreas novas restauradas?
O principal serviço é o de biodiversidade. Estamos falando de biodiversidade ampla, o que inclui o que temos acima e abaixo do solo. Nós estamos perdendo muito porque nenhuma área restaurada chega perto de um fragmento natural em termos de biodiversidade. Também estamos perdendo carbono que as florestas maduras acumulam muito mais do que as florestas jovens. Estamos tornando as nossas florestas mais jovens porque estamos desmatando as mais velhas. O balanço final disso é muito negativo em termos de todos os serviços ecossistêmicos.
Como você avalia a percepção da sociedade sobre essa problemática?
É difícil falar disso, porque atualmente estamos com problemas sérios como o desemprego, a fome e a crise de saúde. Então as questões ambientais acabam ficando num segundo plano. E dentre as questões ambientais, as questões amazônicas são mais sérias, como o garimpo em Terras Indígenas que causa mortes e doenças nas populações. O próprio desmatamento da Amazônia tem indicadores mais fortes do que os da Mata Atlântica. Então é muito difícil a gente chamar a atenção para a Mata Atlântica. Acho que o que falta, na nossa condição, é praticarmos a nossa cidadania e fazermos denúncias, porque nós temos um Ministério Público super atuante e esse desmatamento não tem sentido de estar ocorrendo.
O que mais é preciso fazer para mudar esse panorama?
Precisamos ampliar as ações de comando de controle. E nesse contexto, conseguir diferenciar aquilo que é derivado da fome. Mas para produzir alimentos nós podemos ter sistemas agroflorestais, que inclusive, são muito mais resilientes às questões das mudanças climáticas.
E quanto à regeneração natural, qual a sua opinião sobre essa alternativa?
É uma saída super viável e interessantíssima para dar escala à restauração, mas essa não deve ser a única saída. Essas áreas, geralmente, estão nas mãos de pequenos proprietários rurais. Se eu aplicar a lei só privilegiando a regeneração natural, eu vou jogar a restauração no colo da pequena propriedade rural que, na verdade, não é quem efetivamente tem o passivo legal do Código Florestal. Tem passivo em número de propriedades, mas em área não representa 15%. Assim, não se faz um bom balanço socioeconômico do cumprimento do Código Florestal. E esse é exatamente o discurso que a usina e os grandes proprietários gostariam de ter: ‘prioriza a região de regeneração natural que está longe da minha propriedade e deixa a gente quieto’. Não pode ser assim.
Como solucionar o impasse nesse caso?
Não posso ter só essa visão ecológica de fazer o caminho mais fácil, de isolar a área e deixar que ela se regenere. Com isso, penalizamos os pequenos proprietários e livramos do cumprimento da legislação os médios e grandes que são tecnificados e causaram grandes danos ambientais. Nós temos que usar o que chamamos de restauração assistida, que é uma regeneração natural manejada, no sentido de quando estiver na pequena propriedade que seja condicionada à exploração econômica, com espécies madeireiras, frutíferas nativas, plantas medicinais, melíferas, entre outras. E quando estiver na média-grande, que seja manejada para que tenha alta diversidade e alta quantidade de carbono. A regeneração natural sozinha normalmente é de baixa diversidade. Então eu preciso enriquecer isso.
Que fatores têm contribuído para o avanço da restauração da Mata Atlântica?
Entre os motivos, os proprietários rurais perceberam que o passivo dentro das propriedades é muito pequeno e não vale a pena ficar brigando por isso. Estamos falando, por exemplo, do setor sucroalcooleiro, onde o déficit de mata ciliar é 2,5% da área deles. Então é muito pouco para ficarem impedidos de certificação, sujeitos ao Ministério Público, etc. Eles têm mais complicações para a Reserva Legal, mas para isso têm um monte de soluções, incluindo compensação dentro e fora de unidade de conservação.
E esse movimento está fazendo a diferença?
Isso já está acontecendo há muito tempo. E muitas vezes não é nem a iniciativa do Código Florestal, já que existem políticas públicas interessantes, no Sudeste. Por exemplo, o setor sucroalcooleiro tem uma iniciativa que se chama RenovaBio. Esse é um programa do governo pelo qual as usinas vão ganhar muito mais dinheiro vendendo carbono, além de açúcar e álcool. E elas todas estão correndo atrás de aderir porque é interessantíssimo economicamente. O primeiro item dessa iniciativa é o cumprimento da legislação ambiental. Isso está acontecendo em várias áreas. O mercado está exigindo certificação ambiental de cana e café. Com esse tipo de exigência a gente vai ter mais restauração.
Quais são outras tendências para a restauração diante desse movimento do mercado?
Vai aumentar muito a restauração pela questão da negociação de créditos de carbono, porque isso virou um mercado. Já têm muitas empresas comprando áreas e fazendo restauração para negociar o carbono. Hoje ele é atrativo economicamente, mas até muito recentemente não era. Ao preço de 2 ou 3 dólares [por tonelada] não despertava interesse, mas de 15 a 20 dólares, já começa a ser interessante. Assim se consegue pagar a restauração com carbono e até ter lucro. Entre 2022 e 2023 os proprietários terão que aderir ao PRA e elaborar o PRADA. A partir disso, eles têm 20 anos para fazer a restauração. Então, nas próximas duas décadas, teremos na Mata Atlântica um grande processo de restauração impulsionado por esses fatores: carbono e cumprimento da legislação ambiental.
Há outras tendências que podem contribuir para a sustentabilidade da Mata Atlântica?
Uma mola propulsora, nos próximos anos, vai ser a produção de madeira nativa certificada. Essa é uma alternativa interessantíssima, inclusive, ligada à restauração. É também uma perspectiva super nova que vai acontecer de forma significativa. Além disso, os cafeicultores estão percebendo que os cafezais próximos de florestas podem ter um aumento de produtividade de 40%. Não só pela polinização, como também pela redução do controle de pragas. A demonstração de que uma floresta dentro da paisagem rural garante serviços ecossistêmicos, aumentando a produção das atividades agropecuárias, deve ser um caminho muito forte nos próximos anos.
Jornalista e pesquisadora especializada em temas socioambientais com longa trajetória como colaboradora de jornais, revistas e websites. Pelo grande interesse despertado por questões que envolvem a relação entre sociedade e natureza tem trilhado um caminho interdisciplinar na formação acadêmica. É doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento (PPED), vinculado ao Instituto de Economia e mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social pelo Programa EICOS, vinculado ao Instituto de Psicologia, ambos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na academia é integrante do Grupo de Pesquisa Governança, Ambiente, Políticas Públicas, Inclusão e Sustentabilidade (GAPIS/UFRJ). Nos seus artigos e livros já publicados discute as interfaces da comunicação com temáticas como conservação da biodiversidade, mudanças climáticas e outras grandes agendas que também se refletem na sua cobertura jornalística.