Os dados do relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil referentes a 2013 evidenciam que a política indigenista em curso no país é omissa no que tange ao cumprimento das diversas obrigações constitucionais e da efetivação dos direitos indígenas. A total paralisação dos processos de demarcação de terras indígenas, os altos índices de mortalidade infantil, suicídio, assassinato, racismo e de desassistência nas áreas de saúde e educação indicam uma atitude de extremo descaso do governo em relação às populações indígenas. Na publicação, organizada pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a falta de empenho e vontade política na proteção e promoção dos direitos desses povos fica evidente também em uma análise dos dados do Orçamento Geral da União de 2013.
http://www.ecodebate.com.br/2014/07/18/relatorio-do-cimi-indica-que-omissao-do-governo-e-a-maior-causa-da-violencia-contra-os-indigenas-no-brasil/
Por Patrícia Bonilha, de Brasília (DF)
Um dos mais explícitos indícios da omissão governamental foi a total paralisação das demarcações de terras indígenas no ano passado, que teve um reflexo direto no acirramento dos conflitos nas aldeias em todo o país. Apesar de uma homologação ter sido assinada, nenhum procedimento demarcatório foi concluído em 2013. Desse modo, a média anual de terras demarcadas da presidenta da República Dilma Rousseff diminuiu para 3,6, a pior média desde o fim da ditadura militar, consolidando-a como a chefe de Estado que menos demarcou terras indígenas na história recente do país.
De acordo com os dados do relatório, das 1.047 terras indígenas reivindicadas pelos povos atualmente, apenas 38% estão regularizadas. Cerca de 30% das terras estão em processo de regularização e 32% sequer tiveram iniciado o procedimento de demarcação por parte do Estado brasileiro. Das terras indígenas regularizadas, em termos de extensão territorial, 98,75% se encontram na Amazônia Legal. Enquanto isso, 554.081 dos 896.917 indígenas existentes no Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2010, vivem nas outras regiões do país, que têm apenas 1,25% da extensão das terras indígenas regularizadas.
Existem 30 processos de demarcação de áreas já identificadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai) como terras indígenas tradicionais que não têm nenhum impedimento administrativo ou litígio judicial. Ou seja, não há nenhuma pendência ou obstáculo para a efetivação da demarcação dessas terras. Desses 30 processos, 12 dependem somente da assinatura da Portaria Declaratória pelo ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, 17 terras indígenas aguardam a homologação pela presidenta da República, Dilma Rousseff, e um processo aguarda a expedição do Decreto de Desapropriação, também pela presidenta Dilma. Outros cinco processos estão na mesa da presidenta da Funai, Maria Augusta Assirati, aguardando apenas a assinatura de aprovação do Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação. Estes dados evidenciam ainda que a proposta de realizar Mesas de Diálogo como forma de resolver a morosidade dos processos de demarcação e os conflitos fundiários foi totalmente fracassada.
De acordo com a Constituição Federal, todas as terras indígenas deveriam ter sido demarcadas até 1993. No entanto, os compromissos assumidos com os setores vinculados ao agronegócio, às empreiteiras, mineradoras e empresas de energia hidrelétrica impossibilitam o governo de cumprir suas obrigações constitucionais. Os interesses privados destes grupos encontram ressonância na política desenvolvimentista praticada pelo governo e também em seus interesses eleitoreiros. “Como é de conhecimento público, estes setores são justamente os inimigos históricos dos povos indígenas e os principais responsáveis pelos massacres, etnocídios e espoliações dos territórios destes povos, além de outros tipos de violência”, evidencia Cleber Buzatto, secretário executivo do Cimi.
Também não é pela falta de recursos financeiros que as demarcações não foram realizadas. Nos desdobramentos do programa Fiscalização e Demarcação de Terras Indígenas, Localização e Proteção de Índios Isolados e de Recente Contato existe uma ação denominada “Delimitação, Demarcação e Regularização de Terras Indígenas”, cuja dotação orçamentária em 2013 foi de R$ 21,642 milhões. No entanto, foram liquidados apenas R$ 5,4 milhões (ou 24,96% do montante). “Observa-se, portanto, que muitos outros procedimentos administrativos poderiam ter sido conduzidos com os 76,04% dos recursos que deixaram de ser aplicados. Portanto, as razões para a não demarcação são vinculadas ao plano político e aos projetos de desenvolvimento do país, nos quais os povos indígenas têm sido considerados irrelevantes e desnecessários”, afirma Iara Bonin, em sua análise sobre a execução orçamentária.
Apesar do orçamento para a assistência em saúde indígena, segundo a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), ter quadruplicado nos últimos quatro anos, ela continuou marcada por uma absoluta omissão na implementação de ações – algumas bastante básicas – que poderiam salvar milhares de vidas anualmente. Um exemplo devastador dessa omissão é o índice de mortalidade infantil em 2013. Dados da Sesai informam que morreram 693 crianças de 0 a 5 anos entre os meses de janeiro e novembro. O caso mais impressionante é o do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Yanomami, em Roraima, com 124 mortes. Enquanto a Sesai relata que nesse mesmo período ocorreram 17 mortes de crianças menores de 5 anos no Mato Grosso do Sul, dados mais recentes do Dsei, de abril de 2014, apresentam um total de 90 óbitos de crianças menores de 5 anos somente neste estado, entre os meses de janeiro a dezembro. Ainda de acordo com o Dsei/MS, o coeficiente de mortalidade infantil de menores de 5 anos é de 45,9 para cada 1.000 indígenas nascidos, mais que o dobro da média nacional em 2013, que é de 19,6 segundo o IBGE, variando de acordo com as regiões.
Novamente, verifica-se que o problema não está relacionado à falta de recursos. Para o programa Saneamento Básico em Aldeias Indígenas para Prevenção e Controle de Agravos foi autorizada a execução de R$ 27,7 milhões, mas o governo utilizou irrisórios 1,39%, deixando de aplicar, portanto, RS 27,3 milhões. A utilização destes recursos para a construção de poços artesianos em várias regiões brasileiras certamente diminuiria o índice de doenças e agravos que vitimizam especialmente as crianças, como a diarreia. “Apesar de todas as denúncias apresentadas pelo movimento indígena e por entidades indigenistas, além de ações judiciais impetradas pelo Ministério Público Federal (MPF), o governo federal mantém-se insensível frente às mortes causadas por doenças facilmente tratáveis”, considera Roberto Liebgott, representante do Cimi na Comissão Intersetorial de Saúde Indígena (Cisi).
O Mato Grosso do Sul continua sendo o estado que mais viola os direitos indígenas. Em 2013 foram registradas no estado 33 vítimas de assassinatos (62% do total no país), 16 casos de tentativas de assassinatos (de um total de 29 no país) e, segundo a Sesai, 73 vítimas de suicídios. Este índice configura-se como o maior em 28 anos, de acordo com os registros do Cimi. Dos 73 indígenas que se suicidaram, 72 eram do povo Guarani-Kaiowá, a maioria com idade entre 15 e 30 anos.
Do total de 33 assassinatos no estado, 31 ocorreram entre indígenas do povo Guarani-Kaiowá e dois casos do povo Terena. Nos últimos 11 anos, os levantamentos do Cimi mostram que pelo menos 616 indígenas foram assassinados no país, sendo que 349 destas mortes ocorreram no Mato Grosso do Sul, onde a maioria das comunidades vive em situação de extrema precariedade, em acampamentos improvisados nas margens das rodovias, nas áreas de preservação obrigatória – faixa de domínio – dentro das fazendas, ou confinados em pequenas reservas criadas pelo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), no início do século passado. A Reserva Indígena de Dourados, por exemplo, apresenta a maior densidade populacional entre todas as comunidades tradicionais do país, abrigando mais de 13 mil indígenas em 3,6 hectares de terra. Nela aconteceram 18 dos 73 casos de suicídio no estado em 2013.
Também foi frequente em 2013 a difusão de discursos com teor preconceituoso e racista em meios digitais de informação, jornais, televisão e rádio. Com o registro de 23 ocorrências, estes casos mais que dobraram em relação a 2012, quando 11 registros foram feitos. Os polêmicos vídeos dos deputados federais Luis Carlos Heinze (PP-RS) e Alceu Moreira (PMDB-RS) inserem-se nesses casos de racismo e incitação à violência contra os povos indígenas. “Em 2013, o crime de racismo manifestou-se de diferentes formas contra os povos indígenas: no impedimento de usarem o transporte coletivo ou de estudantes frequentarem a escola; na não contratação, mesmo que para subempregos; nas inúmeras agressões e ofensas verbais; no não reconhecimento da sua condição de indígena; na impossibilidade de acesso a benefícios sociais; na recusa de receberem atendimento médico; na obrigação de crianças indígenas lavarem banheiros nas escolas e no recebimento de merenda menor que as crianças não indígenas; e na condenação por crimes, mesmo sem provas substanciais, como foi o caso que envolveu o povo Tenharim, no Amazonas”, resume a antropóloga Lúcia Rangel, coordenadora da pesquisa do relatório.
Em relação a este episódio, Egydio Schwade, ex-secretário executivo do Cimi e profundo conhecedor da Amazônia, afirma em seu artigo que as agressões ao povo Tenharim são bastante antigas e a sua motivação sempre foi de ordem econômica espoliadora. “Nesse sentido, não se avista nenhuma justiça para os povos indígenas da região no curto prazo. Nenhum relatório conclusivo que vá ao encontro da justiça. Ao contrário, os inquéritos policiais acabam levando a um e mesmo beco sem saída justa, porque a ‘justiça’ já foi previamente programada para a condenação de inocentes, dos índios ‘no plural’, como ‘bodes expiatórios’. Tudo para proteger os interesses em jogo dos madeireiros, mineradores, fazendeiros e agronegociantes”, conclui Schwade.
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Fonte: Cimi.
Queda da violência contra índios não significa menos conflitos, diz coordenadora
http://noticias.ambientebrasil.com.br/clipping/2014/07/18/107136-queda-da-violencia-contra-indios-nao-significa-menos-conflitos-diz-coordenadora.html
Uma das coordenadoras do relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil, divulgado na quinta-feira (17) pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a antropóloga Lúcia Helena Rangel explicou que o fato de os indicadores de violência contra os índios e seus territórios terem diminuído em 2013, na comparação com 2012, não significa que os conflitos por terras ou os problemas decorrentes da falta de assistência pública tenham se atenuado.
O relatório identifica 53 assassinatos durante o ano passado, contra 60 em 2012. Os casos incluem, por exemplo, o do cacique Ivan Tenharim, da Terra Indígena Tenharim Marmelos, na cidade Costa Marques, no Amazonas, morto em dezembro; o dos tupinambás Aurino Santos Calazans, Agenor de Souza Júnior e Ademilson Vieira dos Santos, mortos a tiros quando retornavam à Terra Indígena Tupinambá de Olivença, na Bahia.
O resultado que mais variou, entre 2012 e 2013, diz respeito ao total de índios que sofreram algum tipo de violência por omissão do Poder Público. Enquanto, no ano retrasado, eram 106.801 vítimas, no ano passado o Cimi identificou 8.014 casos. Entram nesse quesito os reflexos da falta de assistência escolar e à saúde indígena, além da ausência de políticas públicas que impeçam a disseminação de bebidas alcoólicas e outras drogas entre a comunidade e até tentativas de suicídio, segundo a entidade. “A questão sobre se há ou não uma tendência à diminuição da violência sempre surge. Não há uma tendência. Há, sim, uma oscilação ao longo dos anos. Por isso, não temos como dizer se a violência está diminuindo ou aumentando”, comentou a pesquisadora durante a divulgação do documento.
Além do número menor de assassinatos e da redução dos casos de violência por omissão do Poder Público, também caíram os números de homicídios culposos (21 casos em 2012 contra 13, em 2013); tentativas de assassinatos (1.024 contra 328); violência sexual (12 contra dez); ameaças de morte (30 contra 14) e abuso de poder (15 contra 6).
Os casos de suicídio, no entanto, mais que dobraram passando de 23 para 56. Já o total de mortes por falta de assistência à saúde (7), se manteve inalterado. Outro item que aumentou foi as denúncias de racismo e discriminação étnico-cultural. Enquanto em 2012, o relatório registrava 14 casos, em 2013 o total subiu para 3.618 ocorrências. “A liberdade de expressão anti-indígena no Brasil, que já era grande, está aumentando. Ninguém mais tem vergonha de se manifestar contra os índios”, declarou Lúcia.
Como em anos anteriores, a organização, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), reconheceu a dificuldade em se obter dados precisos, já que recorre a várias fontes como relatos e denúncias dos próprios povos e organizações indígenas; missionários do conselho; reportagens de jornais, sites e agências de notícias; órgãos públicos que prestam assistência; Ministério Público, além de relatórios e boletins policiais.
(Fonte: Agência Brasil)
“Com a terra, o céu murchou”. A paralisação das demarcações de terras indígenas
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/533366-com-a-terra-o-ceu-murchou-a-paralisacao-das-demarcacoes-de-terras-indigenas
“Muitas das agressões registradas contra os povos indígenas têm como pano de fundo a paralisação de todos os procedimentos de demarcação de terras indígenas”. A afirmação é de dom Erwin Kräutler, bispo do Xingu e presidente doCimi em pronuncialmento sobre o Relatório de Violência contra os Povos Indígenas publicado pelo Cimi.
Segundo ele, “o Governo Federal deve ser responsabilizado pela trágica realidade vivida pelos povos indígenas que não tem assegurada a posse de suas terras. O governo também age de modo conivente diante das invasões e da depredação dos recursos naturais e é omisso nas suas obrigações constitucionais de fiscalizar, proteger e assegurar o usufruto das terras pelos Povos Indígenas”.
Eis o pronunciamento.
“Com a terra, o céu murchou” (Is 24,4).
Apresentamos mais um Relatório de Violência contra os Povos Indígenas com dados de 2013. Destacamos que muitas das agressões registradas têm como pano de fundo a paralisação de todos os procedimentos de demarcação de terras indígenas, imposta pela Presidente da República Dilma Rousseff.
Recorrentemente o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) tem denunciado a omissão do poder público na condução da política indigenista e o descaso para com a vida destes povos. Em 2013 a omissão se tornou ainda mais enfática quando o governo federal deixou de cumprir sua responsabilidade constitucional de realizar os procedimentos administrativos de demarcação. A atitude de retardar os já morosos processos em curso demonstra que as atenções do governo estão voltadas aos setores da economia e da política ligados ao latifúndio, ao agronegócio, às empreiteiras, mineradoras e empresas de energia hidráulica, que visam exclusivamente a exploração da natureza em terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas. Os interesses privados destes grupos encontram ressonância na política desenvolvimentista praticada pelo governo e também em seus interesses eleitoreiros.
Os dados reunidos neste relatório demonstram que a paralisação dos procedimentos de demarcação das terras indígenas têm graves consequências para vida das comunidades indígenas. Acirraram-se os conflitos em diversos estados da federação, tornando ainda mais instáveis e precárias as condições de sobrevivência das famílias indígenas acampadas à beira das rodovias, ou daquelas comunidades cujas terras se encontram em grande parte invadidas. Além disso, intensificaram-se as violências e ameaças de morte contra indígenas que se mobilizam para reivindicar o inicio ou a continuidade dos procedimentos demarcatórios.
O grave descaso do governo para com os direitos territoriais indígenas gerou também novas investidas contra estes os povos, protagonizadas por grupos privados ou por representantes públicos. Os dados coletados em 2013 evidenciam a promoção, por particulares, de inúmeros eventos públicos com o intuito de criminalizar as lutas indígenas e, ao mesmo tempo, de desqualificar suas formas de vida. Também tem sido frequente a difusão de discursos com teor preconceituoso, discriminatório e racista em meios digitais de informação, bem como em jornais, programas de televisão e de rádio. O “Leilão da Resistência”, promovido pela CNA (Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária) no Mato Grosso do Sul, foi um desses eventos.
No entender do Cimi, o Governo Federal deve ser responsabilizado pela trágica realidade vivida pelos povos indígenas que não tem assegurada a posse de suas terras. O governo também age de modo conivente diante das invasões e da depredação dos recursos naturais e é omisso nas suas obrigações constitucionais de fiscalizar, proteger e assegurar o usufruto das terras pelos Povos Indígenas.
O descaso para com os povos indígenas não se restringe apenas aos direitos territoriais. Manifesta-se também no criminoso desleixo no atendimento à saúde das populações indígenas que resultou, de acordo com dados do próprio Ministério da Saúde, na morte de 693 crianças. A constatação de que, a cada 100 indígenas que morrem no Brasil, 40 são crianças, torna inegável o fato de que está em curso uma política indigenista genocida.
Além de denunciar as violências praticadas contra os povos indígenas e de responsabilizar o governo pelo agravamento dessa dramática situação, este relatório pretende alertar para a necessidade de promovermos uma ampla e intensa luta em defesa da vida. A sobrevivência física e cultural dos povos indígenas está estreitamente vinculada à garantia de seus territórios. Urge revermos as prioridades sociais e as direções políticas de nosso país, realizando debates, reflexões e estudos que estimulem a participação para o controle social e que possibilitem a formulação de propostas e projetos de vida com dignidade para todos.
Para os indígenas expulsos de suas terras ou continuamente ameaçados de perdê-las concretiza-se infelizmente a palavra do Profeta Isaías: “A terra está de luto e doente, o mundo definha, está doente; com a terra, o céu murchou“ (Is 24,4). Para povos indígenas despojados de seu habitat ancestral, o mundo vira deserto e o céu do bem-viver é profanado.
Erwin Kräutler Bispo do Xingu e Presidente do Cimi.