
Militares de alta patente no banco dos réus: os generais Augusto Heleno e Walter Braga Netto são julgados num tribunal civil por golpe de Estado. (Pedro Ladeira/Folhapress/.)
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Eliane Brum, Rio Xingu, Altamira, Amazônia
07 abr 2025
[NOTA DO WEBSITE: Um desnudar de como nós que não somos mais parte dos Impérios Coloniais, como sociedade, ainda estamos agindo direta ou indiretamente com essa visão de mundo de invasores supremacistas brancos eurocêntricos. E, com perplexidade, vemos as Forças Armadas praticando, em boa parte de seus quadros, da mesma forma como se fossem adeptos da doutrina colonialidade. E com práticas de forma surpreendentemente arrasadoras e devastadoras, tanto de ambientes naturais como de etnias e de povos da floresta. As únicas e estupefatas perguntas que nos ocorrem, são: por que? Por que temos tanto desamor por todos os povos, não só os originários, mas todos os outros que têm uma vida integrada e harmônica com os ambientes? Bem como todos os ecossistemas e os seres que os habitam, são tão desprezados e devastados não só pelas Forças, mas por toda a sociedade descendente dos brancos invasores ou dos imigrantes?].
A ideologia da ditadura para a Floresta persiste na democracia, une polos políticos opostos e ameaça nosso futuro.
As gerações de brasileiras e brasileiros que vieram antes de nós morreram sem ver o momento em que militares de alta patente são julgados por um tribunal civil por golpe de Estado. É imenso o que testemunhamos hoje, quando o Supremo Tribunal Federal coloca no banco dos réus dois generais do Exército, Augusto Heleno e Walter Braga Netto, um almirante de Esquadra, Almir Garnier, e um tenente-coronel, Mauro Cid. Com eles são acusados o extremista de direita Jair Bolsonaro (PL), que governou o Brasil de 2019 a 2022, assim como dois civis, o ex-ministro Anderson Torres e o ex-diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) Alexandre Ramagem (PL). Todos pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, organização criminosa, dano qualificado ao patrimônio da União e deterioração de patrimônio tombado. Bolsonaro é o nome mais vistoso, mas a virada de chave é o julgamento de fardados estrelados em um país cuja República foi arrancada em 1889 por um golpe militar que apeou do poder o imperador dom Pedro II. SUMAÚMA reconhece a grandeza desse marco de maturidade (ainda que tardia) do país, mas queremos estender o debate à responsabilidade dos militares na destruição da maior floresta tropical do planeta.
Em mais de 130 anos de República, os militares deram a si mesmos o papel de fiscalizar o poder e intervir sempre que achassem necessário, como se estivessem acima da sociedade e não a serviço dela. Essa distorção corrompeu a democracia brasileira, atacada várias vezes por golpes e tentativas de golpes, e finalmente interrompida por 21 anos de uma ditadura empresarial-militar que se estendeu de 1964 a 1985.
Almir Garnier, Bolsonaro, Braga Netto, Mauro Cid e Augusto Heleno: o nome mais vistoso é o do ex-presidente, mas a virada de chave está no julgamento dos fardados de alta patente. Fotos: Marcelo Camargo/Agência Brasil, Mateus Bonomi/Agif via AFP e Lula Marques/Agência Brasil
A prova do poder acima dos limites dos fardados foi jamais terem sido julgados por sequestrar, torturar e executar opositores. Quando a Comissão Nacional da Verdade investigou os crimes cometidos na ditadura, parte dos estrelados se alvoroçou, em especial o círculo do general Eduardo Villas Bôas, cujas intervenções na vida do país nos últimos anos são conhecidas, assim como sua participação no governo Bolsonaro. Apoiar um capitão reformado que planejou um ataque terrorista – botar bombas em quartéis para pressionar por aumento do soldo – pareceu uma boa ideia para voltar ao poder e controlar a narrativa do que chamam “revolução”. Deliberadamente esqueceram o que disse o general Ernesto Geisel, quarto militar a presidir o Brasil durante a ditadura, em longo depoimento aos pesquisadores Maria Celina D’Araújo e Celso Castro nos anos 1993 e 1994: “Neste momento, há muitos dizendo: ‘Temos que dar um golpe! Temos que voltar à ditadura militar!’. E não é só o Bolsonaro, não! Tem muita gente no meio civil que está pensando assim[…] [Mas] não contemos o Bolsonaro, porque o Bolsonaro é um caso completamente fora do normal, inclusive um mau militar”.
Os piores graduados se uniram ao capitão despachado do Exército com desonra, inclusive com o general da reserva Hamilton Mourão como vice-presidente, e deu no que deu. Deu, inclusive, em mais de 700 mil mortes por covid-19, grande parte delas evitável se o governo Bolsonaro não tivesse executado um plano de disseminação do vírus para alcançar imunidade de rebanho, com a participação decisiva do general Braga Netto. A tentativa de golpe de Estado é o ápice de um governo que semeou ódios, estimulou o armamento da população e deixou uma trilha de órfãos na pandemia.
É na Amazônia, porém, que a marca dos militares na história do Brasil ultrapassou campos ideológicos, se infiltrou no senso comum da população e persiste até hoje. A ditadura empresarial-militar não foi a primeira a intervir na Amazônia, mas foi dela o projeto mais amplo, decisivo e essencialmente destruidor. Nos anos 1970, o projeto da ditadura empresarial-militar para a Amazônia foi disseminado no Brasil com os slogans “Integrar para não entregar” e “Terra sem homens para homens sem terra”. No primeiro, a ameaça à soberania nacional, sempre tirada da boina quando é necessário forjar um inimigo comum enquanto entrega a Floresta para grandes corporações transnacionais, é um clássico. No segundo, a falta de vergonha de afirmar que os povos Indígenas, Ribeirinhos e Quilombolas que habitam a Floresta não eram “homens”, palavra que por sua vez revela a misoginia reinante. As outras espécies só eram lembradas para ufanar a coragem de enfrentar os perigos do que chamavam “deserto verde” ou “inferno verde”.
Converter em ideologia um projeto de exploração da Natureza, no qual o extermínio das populações tradicionais era parte, foi um outro tipo de golpe. Tão bem-sucedido que dura até hoje. Essa ideologia foi disseminada como propaganda, com colaboração decisiva da maior parte da imprensa. A extinta revista Manchete cobriu a destruição da Floresta com títulos comemorativos bem grandiloquentes. Mas foi um projeto especial sobre a Amazônia da revista Realidade, um ícone da reportagem brasileira onde trabalharam alguns dos melhores repórteres do país, que demonstrou o que estava em curso. Vale muito a pena fazer uma leitura dessa edição somente pelos anúncios publicitários. É um desfile de colonialismo da Floresta e de seus povos enaltecido como vitória nacional. Um desses anúncios forjou, inclusive, um “bebê Transamazônico”, que SUMAÚMA foi buscar em reportagem especial que pode ser lida aqui.
Ideologia forjada pela ditadura para a Amazônia em propagandas dos anos 1970: é preciso estender o debate à responsabilidade dos militares na destruição da maior Floresta tropical do planeta. Fotos: reprodução/revista Realidade/Memórias da Ditadura
Há muito para se contar, mas podemos nos limitar a uma das afirmações, a do gaúcho Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5º Batalhão de Engenharia de Construção, um dos primeiros a instalar-se na Amazônia na ditadura: “Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se”.
Ao coronel, apresentado como “lendário” em Rondônia, o repórter fez a seguinte pergunta: “Como é possível fazer as coisas na Amazônia e transformar a região?”. O coronel respondeu: “Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho”.
Pois é. Como ele mesmo admite, possivelmente deveria ter estado na cadeia, porque deu muito errado. A partir da ditadura, iniciou-se o amplo processo de converter a Floresta em mercadorias, reafirmando a fúria colonizadora que trata a Natureza como recurso e seus povos como menos que humanos. Começou ali a destruição de uma cocriação de milhões de anos que chamamos Floresta Amazônica e que, a partir da ação dos militares na ditadura, por ação humana predatória apoiada e executada por diferentes governos, em pouco mais de 50 anos está chegando cada vez mais perto do ponto de não retorno. Algumas partes dela, inclusive, já chegaram, uma vez que a Floresta não é homogênea, nem as ações sobre ela.
A ideologia da Floresta como um deserto verde, um corpo virgem para a violação e extração de mercadorias, se infiltrou e criou raízes no imaginário de brasileiras e brasileiros. Foi transmitida geração após geração junto com a ideia de “progresso” e “desenvolvimento” ao custo da conversão da Natureza em “recursos”. Muito mudou com a redemocratização do Brasil, a partir de 1985, e especialmente com a Constituição de 1988, que reconheceu os direitos dos povos originários e tradicionais, os principais responsáveis pelo que ainda existe de Floresta e de outros biomas. Mas a ideologia forjada pela ditadura para a Amazônia e amparada numa ampla propaganda, essa nunca mudou.
Desmatamento na Rodovia Transamazônica, setembro de 2022, no Amazonas: a ideologia da ditadura empresarial-militar continua rasgando a Floresta e dizimando seus povos. Foto: Michael Dantas/AFP
A frase do comandante – “Quando se quer fazer alguma coisa na Amazônia, não se deve pedir licença: faz-se” – é exatamente o que o governo mais à esquerda da história da República brasileira fez ao impor as hidrelétricas de Belo Monte, no Rio Xingu, de Jirau e Santo Antônio, no Rio Madeira, e de Teles Pires, no Rio Teles Pires. Um exemplo dessa comunhão ideológica num país radicalmente polarizado é o fato de que Dilma Rousseff, torturada pela ditadura, inaugurou a primeira turbina de Belo Monte, e Jair Bolsonaro, defensor da ditadura, inaugurou a última.
Bolsonaro, agora réu por golpe de Estado, ampliou e estimulou a destruição da Floresta como projeto de governo. Hoje, no terceiro mandato de Lula, às vésperas da primeira COP na Amazônia, em Belém do Pará, mais uma vez a ideologia segue muito ativa em projetos como o de abrir uma nova frente de exploração de petróleo na Amazônia, a construção da Ferrogrão, a conclusão da pavimentação da BR-319. Entre vários outros.
A ideologia da ditadura militar segue viva, vivíssima, na Amazônia. É ela que sustenta a tese violenta do “marco temporal”, pela qual os povos Indígenas que estavam ausentes de suas terras ancestrais em 5 de outubro de 1988, na promulgação da Constituição, perdem o direito a elas. Uma obscenidade que deliberadamente ignora que os povos só não estavam em seus territórios porque foram expulsos ou tiveram que fugir para não morrer pela mão dos brancos. É essa mesma ideologia que estrutura o truque da “mesa de conciliação” do ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, que propõe conciliar o inconciliável.
É essa ideologia tão presente e tão ativa que faz com que grileiros (ladrões de terras públicas) e mandantes de crimes sejam tratados como “pioneiros” nas cidades amazônicas, alguns deles hoje no Congresso. É por ela que destruidores da Floresta, alguns envolvidos com fraudes, viram estátuas nas praças. Esse conceito importado do Velho Oeste americano e disseminado por Hollywood reforça a ideia de que o mundo só é descoberto quando os brancos chegam. E é aí que supostamente começaria a história. Muitos desses “pioneiros” e seus subalternos ocuparam a frente dos quartéis no movimento que terminaria na invasão da Praça dos Três Poderes no dia 8 de janeiro de 2023.
Essa ideologia faz com que os 434 não Indígenas mortos e desaparecidos pelas mãos da ditadura sejam muito mais visíveis do que os 8.350 Indígenas mortos e desaparecidos pela mesma ditadura – e isso numa investigação da Comissão Nacional da Verdade que se limitou a apenas dez povos originários, entre os mais de 300 existentes hoje no Brasil. Mesmo para a esquerda, que sustenta a memória dos mortos e desaparecidos da ditadura contra a persistente tentativa de apagamento desse capítulo inacabado da história, a ideologia de que os Indígenas são menos humanos emerge em fatos e atos, ainda que o discurso seja obviamente outro.
A primeira vez que generais vão para o banco dos réus por golpe de Estado deve ser o princípio de uma mudança profunda, radical, não só no DNA dos militares brasileiros, mas da sociedade civil. É o Brasil inteiro que precisa fazer o movimento de enfrentar contradições. Não por ética, apenas. Mas porque essa ideologia que habita mesmo quem pensa estar livre dela está matando a Floresta e seus povos – e, se a Floresta morrer, para muitos será o fim da história. Enfrentar o aquecimento global exige enfrentar a ideologia imposta pela ditadura que se infiltrou na sociedade brasileira e norteia a ação humana na Floresta há mais de meio século.
Temos uma oportunidade para isso neste momento. Esperamos que ela não seja mais uma vez perdida. SUMAÚMA fará a sua parte.
Indígenas são reprimidos pela polícia durante protestos contra a Copa e políticas do governo em 2014: Dilma Rousseff, torturada pela ditadura, inaugurou a primeira turbina de Belo Monte no Pará. Foto: Joedson Alves/Reuters
Texto: Eliane Brum
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo editorial: Viviane Zandonadi
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de Redação: Eliane Brum