“O país pode precisar ou não das obras. Mas a forma atual de implementação traz riscos e prejuízos ambientais, sociais e econômicos que extrapolam os eventuais benefícios. É preciso construir um quadro de segurança, adiantando o dever de casa, em vez de buscar fatos consumados”, escreve Roberto Smeraldi, jornalista, é diretor da OSCIP Amigos da Terra – Amazônia Brasileira, em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, 20-09-2012.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/513753-quando-as-hidreletricas-sao-fato-consumado
Eis o artigo.
Vamos assumir que toda megaobra hidrelétrica seja essencial para o país.
(Ao contrário de seus defensores ou críticos de plantão, sabemos que cada caso é um caso: umas podem ser oportunas em certos cenários, outras nunca teriam viabilidade. E que outros investimentos nas redes, para reduzir o monumental desperdício de eletricidade, seriam mais custo-efetivos. Mas vamos comprar o raciocínio de que todas as faraônicas barragens sejam urgentes.)
Estão comprometidos, nas usinas projetadas ou em construção, mais de R$ 100 bilhões. Ora, se nossa economia dependesse delas, estaríamos em maus lençóis, tamanha a insegurança sobre seu custo e prazo reais.
A base jurídica que sustenta as usinas é, em geral, viciada pela pressa em atender tempos políticos e pelo hábito de evitar investimentos prévios críticos, como em regularização fundiária. Muitas vezes se aposta no fato consumado para gerar uma perversa jurisprudência, graças a uma Justiça cronicamente defasada.
Funciona assim: a instalação de grandes canteiros serve para obter decisões liminares ao longo de anos, com obras “stop and go”, até que a própria construção parcial da obra sirva para atestar que é tarde para decidir sobre sua viabilidade ou modalidade. Um dia, a Justiça dirá se ela jamais poderia ter iniciado.
Belo Monte é o caso mais conhecido. O Tribunal Regional Federal julgou que faltam até os pressupostos para considerar um licenciamento. Assim, as obras foram suspensas – e depois retomadas a partir de uma mera liminar.
Mesmo que um dia fosse revertida a decisão do TRF, há inúmeras ações pendentes sobre irregularidades e condicionantes. O próprio leilão só foi realizado porque a Aneel se recusou a tomar conhecimento de uma liminar concedida minutos antes -e derrubada na noite seguinte. O caso da usina do Teles Pires é semelhante, com obras que param e retomam toda hora.
Duas importantes decisões judiciais recentes podem contribuir para alterar este cenário.
Uma, da Justiça federal de Mato Grosso do Sul, adota uma abordagem preventiva, em vez que paliativa. Requer a realização prévia de estudos ambientais estratégicos sobre o conjunto da região impactada, não apenas sobre o impacto de engenharia da obra. É algo que parece óbvio, mas que o governo até hoje considera um complicador.
A outra vem de Rondônia. Lá, por terem queimado etapas inicialmente, as usinas atrasarão os cronogramas que embasavam contratos e preços negociados. Nem tem linhão para transmitir a energia gerada. A usina de Jirau é até objeto de um conflito jurídico internacional entre seguradoras e construtoras.
Nesse quadro, Aneel e Ibama pleitearam a extinção dos julgamentos sobre as licenças por “perda de objeto” – na prática, o argumento das entidades é “se está lá, é legal”.
Ao negar o pedido, a Justiça Federal esclareceu que o licenciamento pode ser julgado até anos depois e alertou sobre o risco. Com obra construída, a cassação póstuma de sua licença pode ser convertida em perdas e danos. Enfim, um pavor para investidores.
Não por acaso, os principais bancos privados adotaram uma postura prudente, mantendo-se longe de Belo Monte e com participação mínima em outros empreendimentos, viabilizados com investimento público, movido por decisão política.
O país pode precisar ou não das obras. Mas a forma atual de implementação traz riscos e prejuízos ambientais, sociais e econômicos que extrapolam os eventuais benefícios. É preciso construir um quadro de segurança, adiantando o dever de casa, em vez de buscar fatos consumados.