Na Ilha do Bananal, a maior ilha fluvial o mundo, situada no Estado do Tocantins (norte brasileiro), e cercada pelos rios Araguaia e Javaés, povos indígenas que vivem em um território reconhecido são proibidos de caçarem, pescarem e retirarem palha de coqueiro para construírem moradia e realizarem rituais. É que parte da área é também regulamentada por lei como Unidade de Conservação, que coíbe qualquer tipo de uso direto da fauna, flora e outros recursos naturais. Diante da incompatibilidade aplicada a esses tradicionais mestres do manejo sustentável, os índios têm sofrido a condição não poderem garantir simples atividades de subsistência para as comunidades.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/537838-povos-tradicionais-sao-proibidos-de-utilizarem-recursos-naturais-por-leis-de-protecao-ambiental
A reportagem é de Marcela Belchior, publicada por Adital, 25-11-2014.
Quem relata o caso é Sara Sanchez, membro da coordenação da regional Goiás/Tocantins do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em entrevista à Adital, ela afirma que órgãos como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) têm coibido as atividades tradicionais das aldeias, especificamente na região terço norte da ilha, onde se situa o Parque Nacional do Araguaia (PNA), em uma área equivalente a 562 mil hectares.
Os povos indígenas javaés, carajás e avá-canoeiros viviam, desde a aprovação da Constituição Federal de 1988, em um território integralmente indígena, quando foram retirados posseiros e outros não indígenas da ilha. Nos últimos anos, entretanto, as circunstâncias mudaram. A sobreposição entre o território indígena e a área de conservação ambiental (o PNA) vem afetando a vida dessa população, gerando um verdadeiro impasse entre organizações conservacionistas e defensores de direitos humanos.
A pesca representa a principal atividade econômica e fonte de proteína na dieta alimentar nas aldeias da região. Com a venda do pescado, as famílias adquirem dinheiro para comprarem produtos básicos, como óleo, arroz, café e açúcar. No entanto, praticar a pesca para fins comercias é, do ponto de vista jurídico, incompatível com os objetivos de um parque nacional.
Sara se posiciona: “o Cimi defende que é uma terra indígena, que se relaciona com o meio ambiente, faz a proteção da floresta, dos rios, das matas e dos lagos. Tudo o que eles fazem é por meio do manejo sustentável, sem depredar o meio ambiente”, afirma. “O argumento das organizações é a proteção ambiental. A proteção ambiental já é feita pelos próprios indígenas, que cuidam da terra. Esses impasses devem ter interesses políticos, porque se não, o que será?”, indaga a representante do Cimi.
“Sabemos que é importante o trabalho do Ibama de proteção ambiental. Só que, nesse momento, eles deixam de fazer esse trabalho. Precisam evitar licenças de desmatamento e de incineração. Têm de cuidar de fazendas degradadas, de pescadores clandestinos que depredam a ilha, da monocultura que suga água do rio e a polui com produtos químicos da lavoura”, destaca Sara. A questão, para ela, deixa de ser apenas ambiental para ser um caso de violação dos direitos humanos.
Contexto mundial
Tal impasse entre territórios de povos aborígenes e áreas de conservação não ocorrem apenas no Brasil. Casos como esse são observados em âmbito mundial. Em informe recente, intitulado “Não há parques sem povos”, lançado durante o Congresso Mundial de Parques, realizado em Sydney (Austrália), em novembro deste ano, a organização de direitos humanos Survival International mostra que quase todas as áreas protegidas são (ou foram) o lar ancestral de povos indígenas, que dependem dessas terras e as têm gerido por milênios. No entanto, em nome de uma suposta conservação, povos indígenas e tribais estariam sendo ilegalmente expulsos dessas áreas, acusados como “furtadores”, por caçarem para comer; estariam ainda enfrentando detenções, espancamentos, torturas e morte por parte de patrulhas “antifurtos”, aponta a organização.
“Apesar dos povos indígenas terem sido expulsos, os turistas e, inclusive em algumas ocasiões, os caçadores que pagam para praticarem a caça grossa [modalidade de elite que é cada vez mais procurada por estrangeiros em busca de animais, como javali, gamo, veado, corço e muflão], são bem-vindos a essas zonas”, destaca a organização.
De acordo com a Survival, que atua em favor da autodeterminação de povos indígenas e de povos isolados, muitas das maiores organizações conservacionistas do mundo estão envolvidas nesse tipo de prática. Estaria implicada, por exemplo, a World Wide Fund For Nature (WWF), criada em 1961 e que diz atuar em vários países pela conservação da diversidade biológica mundial, com a garantia de sustentabilidade dos recursos naturais renováveis e a promoção da redução da poluição e do desperdício.
Outra organização que estaria envolvida na expulsão dos povos aborígenes seria a United for Wildlife, criada pela Fundação Real do Duque e Duquesa de Cambridge e do Príncipe Harry, os herdeiros da Família Real britânica. Segundo a Survival, a organização não reconhece os chamados para respaldar os direitos dos povos indígenas de viverem em suas terras tradicionais e para caçarem para alimentar-se.
Casos em várias partes do globo
Com a mensagem “Caçadores, não furtivos”, povos aborígenes de Botsuana reclamam convivência com meio ambiente. Foto: Survival Internacional. |
Citando casos recentes de expulsão de povos aborígenes, a Survival aponta o caso dos Bayaka, povo pertencente às tribos pigmeias que vivem em selvas da região sul-oriental da República de Camarões, da zona aldeã da República do Congo, da República Centro-Africana e do Gabão. Outros povos que estariam sofrendo com os despejos seriam os caçadores bosquimanos, de Botsuana, que enfrentam restrições em suas terras ancestrais, na Reserva de Caça do Kalahari Central do país. Eles dependem da caça de subsistência para alimentarem suas famílias e a prática foi proibida sem qualquer tipo de política de compensação.
Na Índia, integrantes de uma tribo que vive dentro de uma reserva de tigres foram forçados a abandonar, em 2013, sua terra ancestral em nome da “conservação” dos animais, ainda que não haja nenhuma evidência que eles causem qualquer tipo de dano à fauna da região. Hoje, eles vivem em condições miseráveis, abrigados em refúgios improvisados com plástico.
Para a Survival Internacional, os povos indígenas e tribais são os melhores conservacionistas e guardiões do mundo natural. Segundo a organização, o atual modelo de conservação necessita de uma mudança radical. “A conservação deve ajustar-se ao direito internacional, proteger os direitos territoriais dos povos indígenas e tribais, perguntar a eles que ajuda necessitam para protegerem suas terras, escutá-los e estar preparada para respaldá-los tanto quanto for possível”, defende a organização.
“A cada dia, os conservacionistas gastam milhões. No entanto, o meio ambiente está em uma crise cada vez mais profunda. É hora de despertar e dar-se conta de que há outro caminho (…). Em primeiro lugar, os direitos dos povos indígenas e tribais têm de ser reconhecidos e respeitados. Em segundo lugar, têm de ser tratados como os maiores especialistas na defesa de suas próprias terras. Os conservacionistas devem se dar conta de que eles são os sócios menores dessa causa”, afirma Stephen Corry, diretor da Survival Internacional.