Os indígenas kaingang eram pejorativamente chamados de bugres. Foto: Museu do Índio
25 de julho de 2024
[NOTA DO WEBSITE: Duas matérias, no mesmo dia e na mesma mídia pública alemã, DW. A mesma história, mas vista sob prismas diferentes. As duas partes vítimas da mesma ideologia que promoveu a ocupação dos territórios originários com o intuito de instalar uma colônia que estivesse a serviço dos Impérios Coloniais, uns mais visíveis e explícitos do que outros. No entanto, a doutrina sempre foi igual: agregar patrimônios=recursos móveis e imóveis aos cofres dos Impérios. E para tanto, os espaços americanos deveriam ser considerados como terras sem gente para abrigar gente sem terra. Argumento este que foi propalado, séculos depois, pela ditadura militar, do século XX, quando fez o mesmo com as terras do Pantanal, da Amazônia e do Cerrado. Lembram do discurso do Garrastazu Médici quando, na televisão em cadeia nacional, ‘apresentou’ as obras da Transamazônica? Idêntica visão de mundo que se perpetua no tempo e nos espaços. Será que não dá para se ver no exato dia de hoje com os homens do ‘agronegócio’ o mesmo de sempre? Percebam que esta ideologia da apropriação do patrimônio da humanidade, que sempre os povos originários de todas as Américas foram os guardiães e, com inteligência e harmonia, conservando e integrando, por princípios sociais e éticos, antes da chegada dos primeiros invasores, supremacistas brancos eurocêntricos, na modalidade portuguesa, no século XVI e que vem se desdobrando, sob várias modalidade europeias, desde então? Hoje são os crentes da doutrina da colonialidade, mas a visão sobre a Vida permanece idêntica. Como se vê, a história branca sempre é contada por eles, os ‘cristãos’, os ‘bravos’, os ‘competentes’, os ‘progressistas’, os ‘meritocratas’, em contraposição aos ‘selvagens’, os ‘obtusos’, os ‘primitivos’, os ‘desgrenhados’, os ‘pagãos’, os ‘impuros’, os ‘bugres’].
As terras aonde os imigrantes alemães chegaram não eram desocupadas, mas habitadas por indígenas como os kaingang, que foram dizimados ao longo das décadas pelos grupos de extermínio conhecidos como bugreiros.
Engana-se quem pensa que conflitos com indígenas no Sul ocorreram somente com a chegada dos primeiros europeus ao Brasil. As terras que foram cedidas aos imigrantes alemães não eram desabitadas, matos “de ninguém”. Em vez de encontrarem campos tranquilos ou a romântica Urwald (floresta virgem) que idealizavam, os recém-chegados foram praticamente largados à própria sorte pelas companhias de colonização para obter seu sustento em espaços que já eram ocupados.
Os kaingang, ligados à família linguística jê, tradicionalmente habitavam uma longa extensão territorial entre o norte do Rio Grande do Sul e o oeste de São Paulo, marcada pela presença das araucárias. Quando os imigrantes alemães aportaram em São Leopoldo, em 1824, essa etnia já estava com seu território reduzido, sob pressão de fazendeiros luso-brasileiros, bandeirantes e tropeiros. Ainda assim, restavam áreas com floresta densa, onde se refugiavam.
“A chegada dos alemães vai acabar sufocando ainda mais essas populações, concentrando-as nas regiões norte e nordeste do Rio Grande do Sul”, afirma o pesquisador Sandor Bringmann.
Com a chegada dos europeus, duas concepções de mundo completamente diferentes entraram em choque. De um lado, a lógica do colono da pequena propriedade familiar, com roças e a criação de porcos e galinhas, buscando a prosperidade prometida pelo Estado. Do outro, o kaingang regido por princípios de coletividade e fronteiras mais fluidas. “Apropriar-se do milho, da mandioca e de animais dos imigrantes era plenamente compreensível para os kaingang, que não têm essa ideia de posse e circulavam por seu tradicional território”, explica o historiador Luís Fernando da Silva Laroque.
Os kaingang viviam da caça e da coleta do pinhão e praticavam uma agricultura incipiente. “Colocar nessas populações a pecha única e exclusiva de populações caçadoras e coletoras faz parte de um processo de construção histórica delas como incapazes, muitas vezes para justificar a tomada de terras. Não produziam excedentes, mas sempre cultivaram pequenas roças de mandioca e milho”, diz Bringmann.
Os relatos dos assaltos indígenas
A maior parte dos conflitos diretos entre colonos e indígenas é registrada já no início do processo de colonização e se estende até meados de 1946. Quando a imigração se intensifica e os recém-chegados avançam para as bacias do Taquari-Antas e do Caí, em áreas onde ainda não havia imigrantes, os kaingang passam a revidar.
De acordo com o pesquisador Laroque, de 15 a 20 conflitos foram registrados em cartas ou documentos oficiais. “Muitas das fontes são cartas mandadas aos parentes alemães que ficaram na Europa. Estima-se que houve muitos casos de que não se tem registro. Não era interessante divulgar esses dados, já que o discurso era de uma terra vazia.”
Dois homens do grupo indígena kaingang no Rio Grande do Sul. Foto: acervo Museu do Ín.dio
Nas “correrias”, como eram chamados os assaltos dos kaingang às propriedades dos colonos, as tribos recolhiam colheitas, ferramentas – principalmente de metal, que não era conhecido por eles – e, muitas vezes, matavam ou raptavam pessoas. Os registros históricos enfatizam o caráter de selvageria dessas incursões, sem levar em conta como funcionava a sociedade kaingang, cujos membros eram pejorativamente chamados de “bugres”: selvagens, bárbaros, de maus costumes e má aparência.
“Para os kaingang, eles estavam aprisionando pessoas numa guerra. Ao falar em ataques e raptos, parte-se de uma ideia de que eles são bandidos. As vítimas são dos dois lados. O verdadeiro responsável é o projeto político e econômico da época”, frisa Laroque.
Segundo um memorando manuscrito sobre a colônia alemã de Mundo Novo assinado por Sebastião José de Monteiro em 1854, “a flagrante e contínua invasão dos bugres e correrias trouxe constantemente todos os moradores em vigília e sobressalto”. Um desses episódios, relatado por Monteiro, é o assassinato de um colono e o subsequente rapto de seus filhos e esposa. “Essa crise fatal motivou o descontentamento a tal ponto que quase os colonos se retiraram”, consta do documento.
Grupos mercenários apoiados pelo Estado
Se há cartas e documentos relatando as mortes de alemães, o mesmo não pode ser dito dos indígenas. Essas mortes são menos documentadas e contabilizadas. “Eles eram perseguidos como grupo étnico: o Estado brasileiro não tinha uma política de extermínio oficial, mas era muito conivente”, diz a historiadora Soraia Dornelles.
As próprias companhias colonizadoras se associavam ao Estado para fornecer proteção às colônias, criando os grupos de mercenários conhecidos como bugreiros.
Os bugreiros tinham conhecimento de particularidades geográficas e faziam uma espécie de vigilância nos lotes coloniais, atuando como batedores de mato que iam atrás dos grupos indígenas. “A partir dos ataques dos nativos, essas companhias paramilitares começam a fazer uma perseguição mais intensa a essas populações, e grandes massacres certamente ocorreram nesses encontros nas matas”, diz Bringmann.
Os bugreiros aprisionavam e matavam os indígenas e, em alguns casos, ganhavam por par de orelhas que entregavam. “Em Santa Catarina tem muita documentação da captura do par de orelhas por parte das tropas de bugreiros”, diz Bringmann. Segundo ele, o mesmo ocorreu no Rio Grande do Sul, mas está menos documentado.
Esses grupos paramilitares reuniam imigrantes, caboclos e até mesmo indígenas, já que o auxílio de nativos era crucial para a localização no território. “O cacique Doble trabalhou ajudando essas companhias. Alguns o pintam como um traidor do seu grupo. Só que ele só fazia guerra com aqueles grupos kaingang que eram inimigos do seu grupo”, explica Laroque.
Muitas vezes as incursões dos bugreiros às matas faziam com que crianças voltassem órfãs e acabassem sendo adotadas por famílias de imigrantes alemães, diz Dornelles. “Essa violência resultava na incorporação tanto de crianças indígenas como de mulheres que eram forçadas a fazer parte das famílias. Essa identidade indígena é apagada dentro da história familiar de muitos sul-brasileiros.”
Os aldeamentos e o processo de aculturação
Os aldeamentos indígenas no Rio Grande do Sul foram uma estratégia dos governos provincial e imperial iniciada em 1845 para concentrar as populações indígenas em áreas específicas. Esses aldeamentos buscavam facilitar o controle e a aculturação dos povos indígenas, liberando terras para os imigrantes europeus.
“No entendimento do Estado, os imigrantes eram os únicos que tinham a capacidade de desenvolvimento. Os indígenas eram considerados incapazes de produzir na escala que o progresso demandava”, explica o historiador Bruno Ferreira Kaingang, da UFRGS.
A vida nas últimas aldeias indígenas de São Paulo
Foram criados quatro aldeamentos principais: Guarita, Nonoai, Campo do Meio e Pontão, concentrados nas regiões norte, noroeste, e central do Rio Grande do Sul, além de outros menores. Os números de habitantes não eram grandes, poucos aldeamentos passavam da casa das centenas.
Inicialmente, os aldeamentos eram coordenados por autoridades laicas, mas logo contaram com a participação de missões religiosas, das ordens dos jesuítas, capuchinhos e dominicanos. Em alguns pontos houve também a presença da Igreja Luterana.
Aos indígenas eram fornecidos artigos de subsistência, como roupas, sementes e ferramentas, com o intuito de adaptá-los ao modo de vida ocidental, principalmente ao trabalho agrícola. “Os kaingang não viam o colonizador como superior, muito menos a religião católica. Mas tinham o sentido da troca, e essas trocas de materiais começaram aos poucos a ser atraentes”, explica Dornelles.
Na época, privar essas populações de seu idioma nativo era visto como algo positivo; uma benesse, e não uma violência – à qual a comunidade sempre resistiu, diz Ferreira Kaingang. “Os kaingang sustentaram muito a língua, mesmo com muito ataque das escolas, que os obrigavam a falar português e caracterizavam a língua indígena como feia e inútil.”
Cinco anos após a criação dos primeiros aldeamentos indígenas foi instaurada em 1850 a Lei de Terras, a primeira medida para regular a compra e venda de terras no país. Assim, os espaços ocupados pelos indígenas passaram a ser considerados terras “devolutas” e foram legalizados nas mãos de outros donos. “Para as populações indígenas foi um verdadeiro desastre. Áreas gigantescas foram vendidas a preços irrisórios, geralmente para grandes fazendeiros”, comenta Bringmann.
Muitos indígenas não ficavam nos aldeamentos, ou iam e vinham, inclusive realizando incursões guerreiras às colônias nos períodos em que ficavam fora. Um grande problema era a alocação de grupos rivais dentro de um mesmo aldeamento, o que resultava em confrontos e deserção. Essas particularidades eram ignoradas pelas lideranças da época, que reduziam os indígenas à condição uniforme de “selvagens”.
Habitantes da Terra Indígena Nonoai, no Rio Grande do Sul, em 1978. Foto: Assis Hoffman/Povos Indígenas no Brasil, Instituto Socioambiental (ISA)
Nem todos os caciques aceitaram os aldeamentos, e houve resistência. “Eles tinham de fazer uma escolha”, diz Ferreira Kaingang. “Ou ficavam quietos num lugar, ou seriam mortos, perseguidos. Alguns escolhem unir-se aos bugreiros.”
Especialista nos grandes caciques do século 19, Laroque ressalta as distintas formas de operação desses protagonistas. “O grupo liderado por Nikué, por exemplo, atacou várias colônias de imigrantes alemães e se recusou a ir para os aldeamentos devido a inimizades. Nikué adotou uma postura de guerra contra os colonos.”
Já outros caciques adotaram uma postura de colaboracionismo, como por exemplo o cacique Doble, que firmava alianças com o governo provincial e os imigrantes para obter vantagens ao seu grupo e consolidar sua liderança. “Doble é uma figura complexa, capaz de jantar na casa do presidente da província num dia e ser visto roubando colonos no meio do mato no outro”, diz Dornelles. Líderes colaboracionistas acabaram sendo vistos como figuras ambíguas e contraditórias.
Inicialmente, os aldeamentos eram vastas áreas de terra, mas com o tempo foram drasticamente reduzidos. A transição do regime imperial para o republicano reclassificou-os como “postos indígenas”, e muitos passaram por um período de abandono tanto em termos de atendimento religioso quanto de assistência da província.
No século 20, os aldeamentos passaram a ser chamados de “toldos”, e a Constituição de 1988 reconheceu e demarcou alguns desses espaços como terras indígenas, que existem até hoje, por exemplo Guarita e Nonoai. Condições precárias frequentemente levam os indígenas a migrarem para as cidades para venderem artesanato.
Ferreira Kaingang nasceu e cresceu na terra indígena Guarita, remanescente do aldeamento de mesmo nome. “Guarita tem uma história peculiar, os indígenas de lá fizeram trabalho praticamente de escravos até o início de 1980. Trabalhavam nas chamadas lavouras comunitárias, onde se desenvolveram grandes extensões de soja e trigo, mas nunca se beneficiaram desse projeto”, diz.