Povos Originários: O que podem realmente nos ensinar sobre a adaptação às alterações climáticas

Um fazendeiro rema até seus campos em uma ilha artificial entre canais, parte de um antigo sistema asteca conhecido como chinampas, em 2021. AP Photo /Marco Ugarte

https://theconversation.com/what-ancient-farmers-can-really-teach-us-about-adapting-to-climate-change-and-how-political-power-influences-success-or-failure-217253

Chelsea Fischer, Professora Assistente de Antropologia, Universidade da Carolina do Sul

26 fevereiro 2024

[NOTA DOS WEBSITE: Depois de vermos a crise atual da agricultura no mundo, após a chegada no pós 2ª Guerra, da ideologia da ‘modernização da agricultura/revolução verde’, pode-se pensar que o único caminho é o definido pelo supremacismo branco eurocêntrico. Mas não! Cada vez mais, muitos/as pensadoras/es e pesquisadoras/es das relações humanas e sua sobrevivência em todas as culturas, têm constatado de que há muito mais uma distorção pela imposição da ideologia ‘industrialista’ sobre a produção de alimentos do que o reconhecimento de que esse processo humano deverá estar muito mais conectado com o calor da humanidade e o frescor da humildade do que com a frieza e a insensibilidade das finanças. A agricultura lida com os mistérios da Vida e não com monolíticas e tacanhas Máquinas].

Em dezenas de descobertas arqueológicas em todo o mundo, desde os outrora bem-sucedidos reservatórios e canais de Angkor Wat, no Camboja, até às desertas colônias vikings da Gronelândia, novas evidências mostram imagens de civilizações que lutam com alterações climáticas imprevistas e a realidade de que as suas práticas agrícolas se tornaram insustentável.

Entre essas descobertas também estão histórias de sucesso, onde práticas agrícolas antigas ajudaram civilizações a sobreviver em tempos difíceis.

Os agricultores Zuni no sudoeste dos Estados Unidos sobreviveram a longos períodos de pluviosidade extremamente baixa entre 1200 e 1400 d.C., adotando sistemas de irrigação descentralizados e de pequena escala. Os agricultores no Gana enfrentaram secas severas de 1450 a 1650 plantando grãos indígenas africanos, como o milheto tolerante à seca.

Práticas antigas como essas estão ganhando novo interesse hoje. À medida que os países enfrentam ondas de calor, tempestades e derretimento de glaciais sem precedentes, alguns agricultores e organizações internacionais de desenvolvimento recorrem profundamente aos arquivos agrícolas para reviverem estas soluções antigas.

Um canal que atravessa uma montanha com picos nevados ao fundo.

Um antigo método de irrigação utilizado pelos Mouros através de canais de água está a ser revisitado na Espanha. Grupo de fotos geográficas / imagens universais via Getty Images

Os agricultores atingidos pela seca na Espanha recuperaram a tecnologia de irrigação medieval dos Mouros. As empresas internacionais ávidas por compensações de carbono pagaram muito dinheiro pelo biochar produzido utilizando técnicas de produção pré-colombianas da Amazônia. Os fazendeiros do Texas recorreram a métodos antigos de cultivo de cobertura para se protegerem de padrões climáticos imprevisíveis.

Mas agarrar-se a tecnologias e técnicas antigas sem prestar atenção ao contexto histórico perde uma das lições mais importantes que os antigos agricultores podem revelar: a sustentabilidade agrícola tem tanto a ver com poder e soberania como com solo, água e colheitas.

Sou uma arqueóloga que estuda a sustentabilidade agrícola no passado. As descobertas dos últimos anos mostraram como o passado humano está repleto de pessoas que lidaram com as alterações climáticas de formas sustentáveis ​​e insustentáveis. Os arqueólogos estão descobrindo que a sustentabilidade antiga estava intimamente ligada à política. No entanto, estas dinâmicas são frequentemente esquecidas nas discussões sobre sustentabilidade hoje.

Agricultura Maya Milpa: O acesso à floresta é essencial

Nas planícies tropicais do México e da América Central, os agricultores indígenas maias praticam a agricultura milpa há milhares de anos. Os agricultores de Milpa adaptaram-se à seca orientando suavemente a ecologia florestal através de queimadas controladas (nt.: aqui entre nós temos a ‘coivara’, técnica que os brancos invasores não souberam compreender a inteliggência da ligação do fogo como um instrumento de regeneração do que de devastação) e conservação cuidadosa da floresta (nt.: outra forma obtusa dos brancos de verem tudo com o foco do dinheiro e de recursos econômico-financeiros do que como fonte de vida).

O conhecimento da agricultura milpa capacitou muitos agricultores rurais a navegarem pelas alterações climáticas durante o notório Colapso Maia – dois séculos de desintegração política e despovoamento urbano entre 800 e 1000 d.C. É importante ressaltar que os líderes políticos maias posteriores trabalharam com os agricultores para manterem esta flexibilidade. A sua abordagem leviana ainda é legível nos artefatos e padrões de povoamento das comunidades agrícolas pós-colapso e preservada nos calendários flexíveis de tributos aos agricultores maias, documentados pelos monges espanhóis do século XVI.

Agricultores e pesquisadores maias explicam a agricultura milpa.

Agricultores Maya e pesquisadores explicando o método agrícola ‘milpa’.

Em meu livro, “Enraizando em uma terra inútil: fazendeiros antigos, chefes famosos e justiça ambiental em Yucatán” (nt.: no original em inglês: “Rooting in a Useless Land: Ancient Farmers, Celebrity Chefs, and Environmental Justice in Yucatán”), traço a profunda história da milpa maia. Usando a arqueologia, mostro como os antigos agricultores adaptaram a agricultura milpa em resposta a séculos de seca e convulsão política.

As práticas modernas de milpa maia começaram a chamar a atenção do público há alguns anos, quando organizações internacionais de desenvolvimento fizeram parceria com chefes famosos, como René Redzepi, do Noma, e adotaram o conceito.

Contudo, estes grupos condenaram a prática tradicional dos milpa de queimarem novas áreas de floresta como insustentável. Em vez disso, promoveram uma versão “sem queima” para cultivar milho orgânico certificado para restaurantes sofisticados. A sua versão sem queima da milpa depende de fertilizantes para cultivar milho num local fixo, em vez de usar a ecologia controlada do fogo para gerir a fertilidade do solo em vastas florestas (nt.: temos aqui no Brasil um agricultor suíço, na Bahia, que emprega o manejo da floresta como fonte de nutrientes e não de retirada e eliminação das árvores como recursos madereiros).

O resultado restringiu as práticas tradicionais que os agricultores maias usaram durante séculos. Também alimentou uma ameaça política moderna à agricultura tradicional maia milpa: a apropriação de terras.

A agricultura tradicional milpa requer muita terra florestada, uma vez que os agricultores precisam de realocar os seus campos a cada dois anos. Mas essa necessidade de floresta está em desacordo com as empresas hoteleiras, as explorações pecuárias industriais e os promotores de energia verde que querem terrenos baratos e consideram as práticas de gestão florestal maia milpa ineficientes. A milpa sem queima facilita este conflito ao confinar a agricultura de milho num pequeno espaço indefinidamente, em vez de a espalhar pela floresta ao longo de gerações. Mas também muda a tradição.

Os agricultores maias milpa lutam agora para praticarem as suas antigas técnicas agrícolas, não porque as tenham esquecido ou perdido, mas porque as políticas neocoloniais de privatização da terra minam ativamente a capacidade dos agricultores de gerirem as florestas como os seus antepassados ​​fizeram.

Os agricultores de Milpa são cada vez mais obrigados a adotar uma versão reformulada da sua herança ou a abandonar completamente a agricultura – como muitos fizeram (nt.: novamente a intromissão e a arrogância do supremacismo branco eurocêntrico que se arvoram a definir e determinar sua visão autofágica e devastadora, para todos os povos. É o ‘neocatequismo’. Sempre se metem a querer caterquizar e evangelizar de acordo com seus dogmas escrevagistas)

As frágeis ilhas artificiais do México: ameaças do desenvolvimento

Quando olho para o trabalho de outros arqueólogos que investigam práticas agrícolas antigas, vejo estas mesmas complicações de poder e sustentabilidade.

No centro do México, as chinampas são antigos sistemas de ilhas e canais artificiais. Eles permitiram que os agricultores cultivassem alimentos em zonas húmidas durante séculos.

A existência contínua de chinampas é um legado de profundo conhecimento ecológico e um recurso que permite às comunidades alimentarem-se.

As técnicas Chinampa usam canais e ilhas artificiais. Esta foto mostra um em 1912. Karl Weule, Leitfaden der Voelkerkunde via Wikimedia

Uma ilha agrícola bem conservada entre canais perto da Cidade do México.

As chinampas de Xochimilco são hoje patrimônio mundial da UNESCO, mas a expansão do desenvolvimento a partir da Cidade do México colocou a sua sobrevivência em perigo. Sergei Saint via Flickr , CC BY-ND

Mas a arqueologia revelou que gerações de gestão sustentável da chinampa poderiam ser derrubadas quase da noite para o dia. Isso aconteceu quando o expansionista Império Asteca decidiu reprojetar o Lago Xaltocan para a produção de sal no século XIV e inutilizou as suas chinampas.

Hoje, o futuro da agricultura chinampa depende de uma bolsa de campos protegidos administrados por agricultores locais nos arredores pantanosos da Cidade do México. Estes campos estão agora em risco, uma vez que a procura de habitação leva os assentamentos informais para a zona chinampa.

Campos elevados andinos: uma história de exploração laboral

A agricultura andina tradicional na América do Sul incorpora uma ampla gama de técnicas de cultivo antigas. Um em particular tem uma história complicada de atrair esforços de reavivamento.

Na década de 1980, agências governamentais, arqueólogos e organizações de desenvolvimento gastaram uma fortuna tentando persuadir os agricultores andinos a reviverem a agricultura arbórea elevada. Antigos campos elevados foram encontrados ao redor do Lago Titicaca, na fronteira do Peru e da Bolívia. Estes grupos convenceram-se de que esta tecnologia relíquia poderia reduzir a fome nos Andes, permitindo colheitas consecutivas de batata, sem necessidade de pousio.

Mas os agricultores andinos não tinham qualquer ligação com os campos cultivados de mão-de-obra intensiva. A prática foi abandonada antes mesmo do surgimento da civilização Inca no século XIII. O esforço para reviver a antiga agricultura elevada ruiu.

Uma vista de um plano mostra os contornos onde os campos foram elevados.

Uma fotografia aérea mostra campos elevados pré-colombianos na Bolívia. Umberto Lombardo, Universidade de Berna, Suíça , CC BY-NC

Desde então, mais descobertas arqueológicas em torno do Lago Titicaca sugeriram que os antigos agricultores foram forçados a trabalhar nos campos elevados pelo império expansionista Tiwanaku durante o seu auge entre 500 e 1100 d.C.. Longe da narrativa politicamente neutra promovida pelas organizações de desenvolvimento, os campos elevados não estão lá para ajudar os agricultores a se alimentarem. Eram uma tecnologia para explorar a mão-de-obra e extrair excedentes de culturas dos antigos agricultores andinos.

Respeitando as histórias das práticas antigas

A recuperação de técnicas agrícolas ancestrais pode ser um passo em direção a sistemas alimentares sustentáveis, especialmente quando as comunidades descendentes lideram a sua recuperação. O mundo pode, e penso que deveria, retomar e recuperar as práticas agrícolas do nosso passado coletivo (nt.: retomamos o conceito de Ailton Krenak quando se coloca, de forma despretenciosa, mas definitiva, de se sentir socialmente como um Ser Coletivo. O grande choque civilizatório entre o individualismo egocrata do supremacismo branco eurocêntrico e o coletivismo social, podemos até invocar -cristão-, dos ).

Mas não podemos fingir que essas práticas são apolíticas.

Os agricultores maias milpa que continuam a praticar queimadas controladas, desafiando os privatizadores de terras, compreendem o valor das técnicas antigas e a ameaça representada pelo poder político (nt.: podemos também incluir o autoritarismo e a escravidão imposta, política e economicamente, pelas imensas corporações transnacionais petroagroquímicas). O mesmo acontece com os agricultores chineses chinampa que trabalham para restaurar a alimentação local em comunidades urbanas desfavorecidas. E o mesmo acontece com os agricultores andinos que se recusam a participar em projetos de reabilitação de campos elevados, outrora exploradores.

Dependendo de como são utilizadas, as práticas agrícolas antigas podem reforçar as desigualdades sociais ou criar sistemas alimentares mais equitativos. As práticas antigas não são inerentemente boas – é necessário um compromisso mais profundo com sistemas alimentares justos e equitativos para torná-los sustentáveis (nt.: no nosso entendimento do website, isso só será sustentável se a sociedade global deixar de ser escravizada pelo economismo, pelo individualismo, pela imaturidade social e pela visão excludente sociopata).

Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, fevereiro de 2024.