Povos indígenas. Os involuntários da Pátria. Reflexão emblemática de um antropólogo numa aula em plena Cinelândia no Rio de Janeiro, pelo dia do Índio.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/554056-povos-indigenas-os-involuntarios-da-patria
“Pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que define o indígena. A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial. A separação entre a comunidade e a terra tem como sua face paralela, sua sombra, a separação entre as pessoas e seus corpos, é uma operação indispensável executada pelo Estado para criar populações administradas”. O comentário é do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro em Aula pública durante o ato Abril Indígena, Cinelândia, Rio de Janeiro – 20-04-2016 e reproduzido por Escola dos Saberes, abril – 2016
Os indígenas, porém, adverte o antrópologo, “são nosso exemplo, um exemplo de ‘rexistência’ secular a uma guerra feroz contra eles para desexistí-los, fazê-los desaparecer, seja matando-os pura e simplesmente, seja desindianizando-os e tornando-os ‘cidadãos civilizados'”.
Segundo ele, “Os índios foram e são os primeiros Involuntários da Pátria. Os povos indígenas originários viram cair-lhes sobre a cabeça uma “Pátria” que não pediram, e que só lhes trouxe morte, doença, humilhação, escravidão e despossessão. Nós aqui nos sentimos como os índios, como todos os indígenas do Brasil: como formando o enorme contingente de Involuntários da Pátria. Os involuntários de uma pátria que não queremos, de um governo (ou desgoverno) que não nos representa e nunca nos representou. Nunca ninguém os representou, àqueles que se sentem indígenas. Só nós mesmos podemos nos representar, ou talvez, só nós podemos dizer que representamos a terra — esta terra. Não a “nossa terra”, mas a terra de onde somos, de quem somos. Somos os Involuntários da Pátria. Porque ‘outra’ é a nossa vontade”.
Eis a Aula pública.
Hoje os que se acham donos do Brasil — e que o são, em ultimíssima análise, porque os deixamos se acharem, e daí a o serem foi um pulo (uma carta régia, um tiro, um libambo, uma PEC) — preparam sua ofensiva final contra os índios. Há uma guerra em curso contra os povos índios do Brasil, apoiada abertamente por um Estado que teria (que tem) por obrigação constitucional proteger os índios e outras populações tradicionais, e que seria (que é) sua garantia jurídica última contra a ofensiva movida pelos tais donos do Brasil, a saber, os “produtores rurais” (eufemismo para “ruralistas”, eufemismo por sua vez para “burguesia do agronegócio”), o grande capital internacional, sem esquecermos a congenitamente otária fração fascista das classes médias urbanas. Estado que, como vamos vendo, é o aliado principal dessas forças malignas, com seu triplo braço “legitimamente constituído”, a saber, o executivo, o legislativo e o judiciário.
Mas a ofensiva não é só contra os índios, e sim contra muitos outros povos indígenas. Devemos começar então por distinguir as palavras “índio” e “indígena”, que muitos talvez pensem ser sinônimos, ou que “índio” seja só uma forma abreviada de “indígena”. Mas não é. Todos os índios no Brasil são indígenas, mas nem todos os indígenas que vivem no Brasil são índios. Índios são os membros de povos e comunidades que têm consciência — seja porque nunca a perderam, seja porque a recobraram — de sua relação histórica com os indígenas que viviam nesta terra antes da chegada dos europeus. Foram chamados de “índios” por conta do famoso equívoco dos invasores que, ao aportarem na América, pensavam ter chegado na Índia. “Indígena”, por outro lado, é uma palavra muito antiga, sem nada de “indiana” nela; significa “gerado dentro da terra que lhe é própria, originário da terra em que vive” [1]. Há povos indígenas no Brasil, na África, na Ásia, na Oceania, e até mesmo na Europa.
O antônimo de “indígena” é “alienígena”, ao passo que o antônimo de índio, no Brasil, é “branco”, ou melhor, as muitas palavras das mais de 250 línguas índias faladas dentro do território brasileiro que se costumam traduzir em português por “branco”, mas que se refere a todas aquelas pessoas e instituições que não são índias. Essas palavras indígenas têm vários significados descritivos, mas um dos mais comuns é “inimigo”, como no caso do yanomami ‘napë’, do kayapó ‘kuben’ ou do araweté ‘awin’. Ainda que os conceitos índios sobre a inimizade, ou condição de inimigo, sejam bastante diferentes dos nossos, não custa registrar que a palavra mais próxima que temos para traduzir diretamente essas palavras indígenas seja “inimigo”. Durmamos com essa. Mas isso quer dizer então que todas as pessoas nascidas aqui nesta terra são indígenas do Brasil? Sim e não. Sim no sentido etimológico informal abonado pelos dicionários: “originário do país etc. em que se encontra, nativo” (ver nota 1, supra). Um colono de ‘origem’ (e língua) alemã de Pomerode é “indígena” do Brasil porque nasceu em uma região do território político epônimo, assim como são indígenas um sertanejo dos semiárido nordestino, um agroboy de Barretos ou um corretor da Bolsa de São Paulo. Mas não, nem o colono, nem o agroboy nem o corretor de valores são indígenas — perguntem a eles…
Eles são “brasileiros”, algo muito diferente de ser “indígena”. Ser brasileiro é pensar e agir e se considerar (e talvez ser considerado) como “cidadão”, isto é, como uma pessoa definida, registrada, vigiada, controlada, assistida — em suma, pesada, contada e medida por um Estado-nação territorial, o “Brasil”. Ser brasileiro é ser (ou dever-ser) cidadão, em outras palavras, ‘súdito’ de um Estado ‘soberano’, isto é, transcendente. Essa condição de súdito (um dos eufemismos de súdito é “sujeito [de direitos]“) não tem absolutamente nada a ver com a relação indígena vital, originária, com a terra, com o lugar em que se vive e de onde se tira seu sustento, onde se ‘faz a vida’ junto com seus parentes e amigos.
Ser indígena é ter como referência primordial a relação com a terra em que nasceu ou onde se estabeleceu para fazer sua vida, seja ela uma aldeia na floresta, um vilarejo no sertão, uma comunidade de beira-rio ou uma favela nas periferias metropolitanas. É ser parte de uma comunidade ligada a um lugar específico, ou seja, é integrar um ‘povo’. Ser cidadão, ao contrário, é ser parte de uma ‘população’ controlada (ao mesmo tempo “defendida” e atacada) por um Estado. O indígena olha para baixo, para a Terra a que é imanente; ele tira sua força do chão. O cidadão olha para cima, para o Espírito encarnado sob a forma de um Estado transcendente; ele recebe seus direitos do alto.
“Povo” só ‘(r)existe’ no plural — povoS. Um povo é uma multiplicidade singular, que supõe outros povos, que habita uma terra pluralmente povoada de povos. Quando perguntaram ao escritor Daniel Munduruku se ele “enquanto índio etc.”, ele cortou no ato: “não sou índio; sou Munduruku”. Mas ser Munduruku significa saber que existem Kayabi, Kayapó, Matis, Guarani, Tupinambá, e que esses não são Munduruku, mas tampouco são Brancos. Quem inventou os “índios” como categoria genérica foram os grandes especialistas na generalidade, os Brancos, ou por outra, o Estado branco, colonial, imperial, republicano.
O Estado, ao contrário dos povos, só consiste no singular da própria universalidade. O Estado é sempre único, total, um universo em si mesmo. Ainda que existam muitos Estados-nação, cada um é uma encarnação do Estado Universal, é uma hipóstase do Um. O povo tem a forma do Múltiplo. Forçados a se descobrirem “índios”, os índios brasileiros descobriram que haviam sido ‘unificados’ na generalidade por um poder transcendente, unificados para melhor serem des-multiplicados, homogeneizados, abrasileirados. O pobre é antes de mais nada alguém de quem se tirou alguma coisa. Para transformar o índio em pobre, o primeiro passo é transformar o Munduruku em índio, depois em índio administrado, depois em índio assistido, depois em índio sem-terra.
E não obstante, os povos indígenas originários, em sua multiplicidade irredutível, que foram indianizados pela generalidade do conceito para serem melhor desindianizados pelas armas do poder, sabem-se hoje alvo geral dessas armas, e se unem contra o Um, revidam dialeticamente contra o Estado aceitando essa generalidade e cobrando deste os direitos que tal generalidade lhes confere, pela letra e o espírito da Constituição Federal de 1988. E invadem o Congresso. Nada mais justo que os invadidos invadam o quartel-general dos invasores. Operação de guerrilha simbólica, sem dúvida, incomensurável à guerra massiva real (mas também simbólica) que lhes movem os invasores. Mas os donos do poder vêm acusando o golpe, e correm para viabilizar seu contragolpe. Para usarmos a palavra do dia, golpe é o que se prepara nos corredores atapetados de Brasília contra os índios, sob a forma, entre outras, da PEC 215.
Os índios são os primeiros indígenas do Brasil. As terras que ocupam não são sua propriedade — não só porque os territórios indígenas são “terras da União”, mas porque são eles que pertencem à terra e não o contrário. Pertencer à terra, em lugar de ser proprietário dela, é o que define o indígena. E nesse sentido, muitos povos e comunidades no Brasil, além dos índios, podem se dizer, porque se sentem, indígenas muito mais que cidadãos. Não se reconhecem no Estado, não se sentem representados por um Estado dominado por uma casta de poderosos e de seus mamulengos e jagunços aboletados no Congresso Nacional demais instâncias dos Três Poderes.
Os índios são os primeiros indígenas a não se reconhecerem no Estado brasileiro, por quem foram perseguidos durante cinco séculos: seja diretamente, pelas “guerras justas” do tempo da colônia, pelas leis do Império, pelas administrações indigenistas republicanas que os exploraram, maltrataram, e, muito timidamente, às vezes os defenderam (quando iam longe demais, o Estado lhes cortava as asinhas); seja indiretamente, pelo apoio solícito que o Estado sempre deu a todas as tentativas de desindianizar o Brasil, varrer a terra de seus ocupantes originários para implantar um modelo de civilização que nunca serviu a ninguém senão aos poderosos. Um modelo que continua ‘essencialmente’ o mesmo há quinhentos anos.
O Estado brasileiro e seus ideólogos sempre apostaram que os índios iriam desaparecer, e quanto mais rapidamente melhor; fizeram o possível e o impossível, o inominável e o abominável para tanto. Não que fosse preciso sempre exterminá-los fisicamente para isso — como sabemos, porém, o recurso ao genocídio continua amplamente em vigor no Brasil —, mas era sim preciso de qualquer jeito desindianizá-los, transformá-los em “trabalhadores nacionais” [2]. Cristianizá-los, “vesti-los” (como se alguém jamais tenha visto índios ‘nus’, esses mestres do adorno, da plumária, da pintura corporal), proibir-lhes as línguas que falam ou falavam, os costumes que os definiam para si mesmos, submetê-los a um regime de trabalho, polícia e administração. Mas, acima de tudo, cortar a relação deles com a terra. Separar os índios (e todos os demais indígenas) de sua relação orgânica, política, social, vital com a terra e com suas comunidades que vivem da terra — essa separação sempre foi vista como ‘condição necessária’ para transformar o índio em cidadão. Em cidadão pobre, naturalmente. Porque sem pobres não há capitalismo, o capitalismo precisa de pobres, como precisou (e ainda precisa) de escravos. Transformar o índio em pobre. Para isso, foi e é preciso antes de mais nada separá-lo de sua terra, da terra que o ‘constitui’ como indígena.
Nós, os brancos que aqui estamos sentados na escadaria da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 20 de abril de 2016, nós nos sentimos indígenas. Não nos sentimos cidadãos, não nos vemos como parte de uma população súdita de um Estado que nunca nos representou, e que sempre tirou com uma mão o que fingia dar com a outra. Nós os “brancos” que aqui estamos, bem como diversos outros povos indígenas que vivem no Brasil: camponeses, ribeirinhos, pescadores, caiçaras, quilombolas, sertanejos, caboclos, curibocas, negros e “pardos” moradores das favelas que cobrem este país. Todos esses são ‘indígenas’, porque se sentem ligados a um lugar, a um pedaço de terra — por menor ou pior que seja essa terra, do tamanho do chão de um barraco ou de uma horta de fundo de quintal — e a uma comunidade, muito mais que cidadãos de um Brasil Grande que só engrandece o tamanho das contas bancárias dos donos do poder.
A terra é o corpo dos índios, os índios são parte do corpo da Terra. A relação entre terra e corpo é crucial. A separação entre a comunidade e a terra tem como sua face paralela, sua sombra, a separação entre as pessoas e seus corpos, outra operação indispensável executada pelo Estado para criar populações administradas. Pense-se nos LGBT, separados de sua sexualidade; nos negros, separados da cor de sua pele e de seu passado de escravidão, isto é, de despossessão corporal radical; pense-se nas mulheres, separadas de sua autonomia reprodutiva. Pense-se, por fim mas não por menos abominável, no sinistro elogio público da tortura feito pelo canalha Jair Bolsonaro — a tortura, modo último e mais absoluto de separar uma pessoa de seu corpo. Tortura que continua — que sempre foi — o método favorito de separação dos pobres de seus corpos, nas delegacias e presídios deste pais tão “cordial”.
Por isso tudo a luta dos índios é também a nossa luta, a luta indígena. Os índios são nosso exemplo. Um exemplo de ‘rexistência’ secular a uma guerra feroz contra eles para desexistí-los, fazê-los desaparecer, seja matando-os pura e simplesmente, seja desindianizando-os e tornando-os “cidadãos civilizados”, isto é, brasileiros pobres, sem-terra, sem meios de subsistência próprios, forçados a vender seus braços — seus corpos — para enriquecer os pretensos novos donos da terra.
Os índios precisam da ajuda dos brancos que se solidarizam com sua luta e que reconhecem neles o ‘exemplo’ maior da luta perpétua entre os povos indígenas (todos os ‘povos’ indígenas a que me referi mais acima: o povo LGBT, o povo negro, o povo das mulheres) e o Estado nacional. Mas nós, os “outros índios”, aqueles que não são índios mas se sentem muito mais ‘representados’ pelos povos índios que pelos políticos que nos governam e pelo aparelho policial que nos persegue de perto, pelas políticas de destruição da natureza levadas a ferro e a fogo por todos os governos que se sucedem neste país desde sempre — nós outros também precisamos da ajuda, e do exemplo, dos índios, de suas táticas de guerrilha simbólica, jurídica, mediática, contra o Aparelho de Captura do Estado-nação. Um Estado que vai levando até às últimas consequências seu projeto de destruição do território que reivindica como seu. Mas a terra é dos povos.
Concluo com uma alusão ao nome de uma rua não muito distante desta Cinelândia onde estamos agora. Em Botafogo existe, como vocês todos sabem, a Rua Voluntários da Pátria. Seu nome provém de uma iniciativa empreendida pelo Império em sua guerra genocida (e etnocida) contra o Paraguai — o Brasil sempre foi bom nisso de matar índios, do lado de cá ou de lá de suas fronteiras. Carente de tropas para enfrentar o exército guarani, o Governo imperial criou corpos militares de voluntários, “apelando para os sentimentos do povo brasileiro”, como escreve o verbete da Wikipedia sobre a iniciativa. Pedro II apresentou-se em Uruguaiana como o “primeiro voluntário da pátria”. Não demorou muito e o patriotismo dos voluntários da pátria arrefeceu; logo o Governo central passou a exigir dos presidentes das províncias que recrutasse cotas de “voluntários”. A solução para esta lamentável “falta de patriotismo” dos brancos brasileiros foi, como se sabe, mandar milhares de escravos negros como voluntários. Foram eles que mataram e morreram na Guerra do Paraguai. Obrigados, escusado dizer. Voluntários involuntários.
Pois bem. Os índios foram e são os primeiros Involuntários da Pátria. Os povos indígenas originários viram cair-lhes sobre a cabeça uma “Pátria” que não pediram, e que só lhes trouxe morte, doença, humilhação, escravidão e despossessão. Nós aqui nos sentimos como os índios, como todos os indígenas do Brasil: como formando o enorme contingente de Involuntários da Pátria. Os involuntários de uma pátria que não queremos, de um governo (ou desgoverno) que não nos representa e nunca nos representou. Nunca ninguém os representou, àqueles que se sentem indígenas. Só nós mesmos podemos nos representar, ou talvez, só nós podemos dizer que representamos a terra — esta terra. Não a “nossa terra”, mas a terra de onde somos, de quem somos. Somos os Involuntários da Pátria. Porque ‘outra’ é a nossa vontade.
Notas:
1 – “A palavra ‘indígena’ vem do «lat[im] indigĕna,ae “natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe é própria”, derivação do latim indu arcaico (como endo) > latim] clássico in- “movimento para dentro, de dentro” + -gena derivação do rad[ical do verbo latino gigno, is, genŭi, genĭtum, gignĕre “gerar”; Significa “relativo a ou população autóctone de um país ou que neste se estabeleceu anteriormente a um processo colonizador” …; por extensão de sentido (uso informal), [significa] “que ou o que é originário do país, região ou localidade em que se encontra; nativo”. (Dicionário Eletrônico Houaiss).
2 – O primeiro nome do SPI republicano (Serviço de Proteção aos Índios) era SPILTN: Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais. Foi SPITLN de 1910 a 1918, depois só SPI, até virar FUNAI em 1967, ao cabo de uma CPI que revelou uma infinidade de abusos, desmandos, violências variadas, explorações e outras benesses protetoras conferidas pelo Estado.