Perdem-se em retórica os objetivos do projeto Rio-92.

“Com quase 70 anos de governança global do desenvolvimento gravemente desconectada de preocupações com a biosfera, e 40 anos de governança ambiental global bastante prejudicada por tal incongruência, é como se não tivesse saído do papel o belo projeto de desenvolvimento sustentável consagrado na Rio-92.” Este parágrafo do novo livro do professor de economia da USP José Eli da Veiga é uma das chaves de sua discussão sobre os rumos do desenvolvimento e do ambiente globais sob a ótica da governança – uma desgovernança, na perspectiva do economista.

 

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A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada pelo jornal Valor, 14-05-2013.

É este precisamente o título de seu 23 livro – “A Desgovernança Mundial da Sustentabilidade” (Editora 34). Logo de início, o autor indica que a antiga polaridade entre “novas iniciativas de caráter ambiental e velhas ações de desenvolvimento”, como acontece desde a conferência de Estocolmo há 41 anos, tem que encontrar um ponto de convergência logo, se o que se quer é chegar a algum lugar diante dos desafios gigantescos de lidar com a mudança climática, a perda da biodiversidade, o número crescente de zonas mortas no oceano pelo uso destemperado de nitrogênio na ou a acidificação dos mares.

O autor dedica os dois primeiros dos quatro capítulos do livro a dar vida à governança global do desenvolvimento e à governança ambiental global. No primeiro caso, recua ao final da Primeira Guerra e à Liga das Nações, o embrião do que viria a ser a Organização das Nações Unidas anos depois. Começa a destrinchar o emaranhado de siglas e conferências internacionais que marcarão as economias no século passado. Vai à mítica reunião dos 730 delegados das 44 nações aliadas que lotam a estação de esqui de Bretton Woods, em New Hampshire, de onde surgirão acordos comerciais e financeiros de importância capital e fala sobre seus filhotes e desdobramentos, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (o famoso Gatt, origem da Organização Mundial do Comércio), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Reconstrução e Desenvolvimento (Bird, hoje Banco Mundial).

Veiga vai povoando suas páginas com os grupos de poder que irão surgindo e cenas dos confrontos. O grupo dos países mais ricos e industrializados (G-7) e sua versão alargada (G-20), o heterogêneo bloco em que se apertam todos os outros (o G-77 mais a China), o clube dos emergentes (os Brics). Pontua o balé de seus encontros com o jogo de interesses, decisões, adiamentos. O autor coloca uma lupa no momento em que se traçam as metas conhecidas por Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), articulados em 2000 para que tenham algum resultado em 2015, e que focam a erradicação da miséria e da fome, o combate à aids e malária, a tentativa de disseminar a educação primária ou reduzir os trágicos índices da mortalidade infantil. Aqui, Veiga mostra alguns furos da canoa. “O aspecto ambiental nem incorpora questões cruciais”, escreve, lembrando que temas fundamentais, como a mudança do clima ou a crise nos oceanos, ficaram muito ao largo dos ODM. “E o econômico não poderia ser mais vago.” Mas ele é otimista em relação aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), fruto da Rio+20 e que começam a ser debatidos, desde que incorporem temas ambientais candentes em relação ao clima, aos oceanos, à biodiversidade.

O autor prossegue trafegando pela intersecção do desenvolvimento e do ambiente, uma trilha que ainda não abandonou a retórica nas políticas públicas da maioria das nações. Ao falar sobre redução das desigualdades, por exemplo, Veiga analisa os padrões das sociedades ricas mais desiguais e não perdoa seu descaso e ignorância ambiental: “São as que revelam as mais altas perdas ecológicas, as que produzem mais lixo, as que consomem mais água e que são responsáveis por mais viagens de avião medidas em distância per capita”.

Ao chegar à governança ambiental, o economista se espanta com a agenda frenética de encontros que os diplomatas do mundo todo procuram cumprir – e que não há grande imprensa no mundo que dê conta de cobrir. “Mesmo deixando de lado os acordos bilaterais, em apenas sete anos, de 2005 a 2011, foram assinados 22 acordos, 59 aditivos e 10 protocolos.” Ao fazer uma revisão das conclusões mais recentes da ciência climática, lança uma crítica dura à maneira como o discurso científico procura convencer os tomadores de decisão da gravidade de suas descobertas sobre a mudança climática. “Falam que há um risco de tanto por cento que a temperatura aumente xis e aí há tanto por cento de chances que aconteça tal coisa. O problema é que desta forma não se convence um político de que a mudança climática é tão importante e que tem que ser tratada da mesma forma do que a questão da segurança e da macroeconomia.”

Lançado na semana em que as emissões de dióxido de carbono na atmosfera atingiram 400 partes por milhão (número que indica que o plano político está fracassando em conseguir acordos globais para enfrentar o aquecimento da temperatura terrestre, o livro de Veiga – que é professor titular da Universidade de São Paulo e pesquisador de seu Núcleo de Economia Socioambiental (NESA), além de orientador em dois programas de pós-graduação, o de Relações Internacionais (IRI-USP) e Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ) – é obrigatório para quem quer mergulhar no universo dos acordos internacionais econômicos e ambientais.

A tese central do autor é claramente explicitada: seu ceticismo de que um acordo internacional sobre mudança do clima saia das conferências climáticas, as chamadas COPs. “Quem pode decidir sobre isso é o G-20”, diz, lembrando que, se isso acontecesse, boa parte das emissões mundiais de gases-estufa estaria equacionada. Veiga também defende uma taxa de carbono internacional, com recursos provenientes destinados a novas soluções energéticas.

“O livro é muito pensado e estruturado, enuncia bem os conceitos fundamentais, atualiza o leitor com o estágio do conhecimento científico, discorre sobre as siglas e o universo de órgãos das Nações Unidas, a dificuldade do consenso, e faz isso com muita precisão”, diz o embaixador Rubens Ricupero. “Ele mostra muito bem que o aquecimento global é um tremendo desafio para a economia. E aí está o problema todo entre economia e ecologia. Os economistas ficam um pouco perplexos diante do desafio ambiental, são herdeiros desta ideia de que o crescimento é infinito. De repente temos um problema que diz que não, que temos que impor limites ao crescimento, e ainda não há tecnologias que possam resolver isso, com um custo razoável”, prossegue Ricupero.

“Imagine um extraterrestre que viesse para cá e tivesse que fazer um relatório com o que viu”, disse Veiga. “Seguramente, ficaria muito impressionado que quase 200 nações têm que se entender em uma coisa chamada ONU. Mas então ele percebe que há uma tremenda desigualdade entre nações e um caos entre os organismos que existem, além de dois processos paralelos, um que discute o desenvolvimento, que é o pessoal que está cuidando a revisão dos ODM, e outro, para debater o desenvolvimento sustentável nos ODS“. Esta é a prova dos nove que não juntou uma coisa com a outra.”

Não é de hoje que o mundo está atrasado em entender politicamente as evidências científicas e traduzir o recado em ações que corrijam a rota de desgovernança ambiental do planeta. “O rumo da governança global certamente já teria deixado de ser tão temerário se os fatos tivessem um papel mais importante na formação dos julgamentos das pessoas, principalmente quando são tomadoras de decisão”, diz Veiga.

O livro “A Desgovernança Mundial da Sustentabilidade” será lançado na quinta-feira, 16 de maio, na sala Crisantempo, em São Paulo. Está programada uma conversa com o autor e o presidente da Fapesp, Celso Lafer, e os ex-ministros Ricupero e Marina Silva.