“Precisamos reinventar a política ambiental do Rio Grande do Sul, que precisa ser menos pessoal ou menos baseada nas relações pessoais. O mérito por conhecimento precisa ter mais espaço na política ambiental dos estados, sem prejulgamento de partidos ou regulações impostas por interesses”, diz o ecologista.
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Confira a entrevista.
As paisagens distintas do Pampa gaúcho estão sendo “gradualmente alteradas ou simplesmente perdidas”, alerta Marcelo Dutra em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail. Apesar do predomínio da silvicultura na região, atualmente é a cultura da soja que tem preocupado os ambientalistas. Segundo ele, muitos produtores estão aproveitando a supervalorização desta commodity no mercado, e “o que se vê é soja plantada por toda parte. A soja é uma cultura antiga no Pampa, muito comum na região norte do Estado. Entretanto, nunca se viu tamanha produção. Chega a impressionar o volume de áreas convertidas”.
Na entrevista a seguir, Duarte também propõe uma nova compreensão acerca do Pampa, a partir da constatação de que este é um espaço heterogêneo e complexo. “A importância maior desse trabalho, para além do novo olhar que estaremos imprimindo sobre esse sistema, é que estaremos dizendo que o IBGE e muita gente se equivocou em definir essa grande área como um bioma, sem na verdade ser exatamente isso. Não vejo nenhum problema em considerarmos essa região um espaço de transição, pois é o que realmente parece ser, um ‘Espaço de Transição’”. E dispara: “Podemos chamar de ‘Zona de Tensão’, ou de ‘Grande Ecótono’, ou de ‘Complexo Vegetacional’, ou, ou, ou… Mas o que não dá para chamar é de bioma”.
Marcelo Dutra é graduado em Ecologia, mestre e doutor em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Agronomia, da Universidade Federal de Pelotas. É professor da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como descreve as macrofisionomias e paisagens que compõem o bioma Pampa?
Marcelo Dutra da Silva – A Região dos Pampas compreende um complexo de fisionomias, com paisagens distintas, que vêm sendo gradualmente alteradas ou simplesmente perdidas frente aos usos e formas de uso da terra, as quais variam e avançam sobre os espaços naturais remanescentes. O Pampa apresenta valores significativos de áreas naturais perdidas, compondo um mosaico que mistura diferentes tipologias de uso rural em meio a um vasto espaço natural.
Inúmeras áreas desse bioma foram reconhecidas pelo Ministério do Meio Ambiente como prioritárias à conservação, com base na riqueza de espécies, endemismos e fatores abióticos específicos. No entanto, extensas áreas de campo natural vêm sendo convertidas em culturas anuais, como soja, trigo e arroz, além dos cultivos florestais que surgem como mais um elemento potencialmente transformador da paisagem. Marcam os aspectos fisionômicos desse bioma as feições físicas dos terrenos, as quais repercutem compondo paisagens e organizações complexas. A paisagem do Pampa apresenta quatro macrofisionomias, cada uma delas, grosso modo, ajustadas ao tipo físico dos terrenos. A fisionomia que melhor caracteriza o Pampa corresponde aos campos da campanha, na fronteira oeste, onde predomina a cobertura vegetal do tipo estepe. Composta de campos relativamente uniformes, sobre relevos suaves ou de coxilhas, nessa paisagem a pecuária se apresenta como o uso dominante e como o tipo de uso que parece melhor se ajustar, sem comprometer esse tipo fisionômico.
Na Serra do Sudeste, no centro do Pampa, predomina o mosaico campo e floresta, associado aos terrenos dobrados e rochosos, de solos rasos e pouco férteis. Essa é a fisionomia com melhor índice de conservação dentro do Pampa, talvez por conta das limitações impostas ao uso e manejo dos terrenos. Na encosta da Serra do Sudeste, em terrenos rochosos, porém bem mais dobrados, o ambiente de floresta assume a cobertura dominante, ainda que bastante fragmentada e reduzida, num processo que começou no final do século XIV, quando do estabelecimento das primeiras colônias alemã e italiana no sul do estado. No litoral, sobre os terrenos planos e arenosos da Planície Costeira, volta a predominar o campo, incluindo áreas úmidas de banhado, dunas e matas de restinga. Sobre essas fisionomias predomina o cultivo do arroz associado à pecuária. Em menor extensão também está presente o cultivo do pinus, que tem despertado preocupações, uma vez que apresenta grande poder de dispersão e vem se alastrando, contaminando o espaço aberto do litoral.
IHU On-Line – Quais são as principais transformações que vêm ocorrendo no bioma?
Marcelo Dutra da Silva – O Pampa continua sofrendo forte pressão pela agricultura, que avança sem controle sobre os remanescentes naturais, formando novas áreas de cultivo. A pecuária ainda não se reestabeleceu e não vejo sinais de que consiga num prazo curto. O desmatamento ainda é uma realidade, mas o percentual de áreas cobertas com floresta é pequeno e está associado às pressões da pequena propriedade, que tenta sobreviver do cultivo de subsistência e na exploração imposta pela produção de fumo. O plantio comercial de eucalipto continua sendo uma ameaça importante, mas a dispersão do pinus, no litoral, compreende uma das transformações espaciais mais severas do momento, que está decompondo a paisagem costeira, de forma silenciosa e quase sem ser percebida. Também no litoral, as áreas úmidas vêm sendo rapidamente suprimidas, particularmente nos centros de maior urbanização, por exemplo: na cidade de Pelotas, no extremo sul gaúcho. E para além das pressões impostas pelo uso, as espécies invasoras permanecem avançando sobre os terrenos, fragmentando habitats e expulsando espécies por competição.
IHU On-Line – O senhor menciona que além da produção de eucalipto há, no bioma, uma explosão da safra de soja. Desde quando a cultura vem sendo introduzida no bioma e quais as implicações?
Marcelo Dutra da Silva – O cultivo florestal ainda representa a maior ameaça para o sistema campestre do Pampa, formando barreiras, dividindo ou fragmentando o espaço aberto natural. Mas esse está sendo o momento especial da soja, que está supervalorizada no mercado. Muitos produtores estão tentando aproveitar esse momento e o que se vê é soja plantada por toda parte. A soja é uma cultura antiga no Pampa, muito comum na região norte do estado. Entretanto, nunca se viu tamanha produção. Chega a impressionar o volume de áreas convertidas. Lugares em que até então só se viam pastagens cultivadas ou outros tipos de cultura, agora estão cobertos por um único e contínuo tipo cultural, formando um espaço homogêneo. Sem dúvida essa simplificação da paisagem não é uma coisa boa, mesmo em áreas cultivadas. O bom da história é que não é uma conversão permanente: em seguida a soja será colhida e outras atividades começam a preencher o mosaico. Enquanto esse grão continuar valorizado, vamos ver a atividade se expandindo ano após ano. Um aspecto negativo dessas supervalorizações é que elas conduzem o investimento na direção da cultura valorizada, em detrimento das outras atividades econômicas, que enfraquecem ou perdem força, numa perigosa tendência de tudo passar a depender do sucesso de uma única cultura. Além disso, explosões de cultivos podem levar ao frenesi da ocupação de novas fronteiras agrícolas, não importando os riscos que a perda de novos espaços naturais representa para a conservação da biodiversidade.
IHU On-Line – Em que consistiria uma política de planejamento e gestão do território para definir estratégias de controle do uso dos recursos e preservação dos sistemas e da biodiversidade?
Marcelo Dutra da Silva – Pergunta difícil! O planejamento do ambiente é um ato administrativo que visa conhecer os fenômenos espaciais em todas as suas faces e que deve partir da investigação e do uso de ferramentas e métodos compatíveis com a prática. Não existe uma receita pronta para a elaboração de propostas de planejamento. Não existe o método melhor ou pior, e geralmente o processo envolve muitas pessoas da comunidade, todas com igual direito de opinar sobre as demandas, numa verdadeira explosão de ideias. Mas esse momento tem um limite, uma vez que sua construção exige conhecimento técnico e o máximo de rigor científico. Então, não há espaço para “achismos” e a qualidade de sua construção depende do emprego de fundamentos teóricos e a participação de técnicos preparados, experientes e que saibam o que estão fazendo. De boas intenções o inferno está cheio! De outra parte, o planejamento ambiental não se prende apenas aos aspectos naturais do espaço, mas também àqueles aspectos históricos, culturais, sociais e econômicos.
No fundo, o planejamento é um belo exercício de compreensão das relações homem/natureza e de como elas ocupam e transformam (e são transformadas pelo) espaço. No momento, a Secretaria Estadual de Meio Ambiente – SEMA do Rio Grande do Sul trabalha na construção do termo de referência que deverá balizar a construção do Zoneamento Ecológico Econômico do Estado – ZEE. Esse é um documento fundamental, que está fazendo muita falta. Deve ser construído o mais rapidamente possível para servir de orientação às decisões, que hoje não seguem um plano estratégico. Sem dúvida, quando o ZEE estiver pronto ele será o maior avanço na política de planejamento e controle do território gaúcho já feito. A partir dele será possível fazer gestão, será possível construir cenários e definir previsões. É preciso que se entenda que os terrenos do sul são heterogêneos, com diferentes potenciais ou capacidades de uso. Não dá para submeter todos os espaços ao mesmo tipo de uso ou à mesma intensidade de uso, pois respondem às intervenções de forma diferente. Então é preciso considerar, além das diferenças, os efeitos que essas mesmas diferenças produzem. Só espero que o RS (por meio da SEMA) envolva as pessoas certas no processo de construção do ZEE.
IHU On-Line – O senhor pode nos explicar essa suspeita de que o Pampa gaúcho talvez não passe de uma zona de transição ou um grande ecótono, entre dois grandes sistemas ou biomas (campos da campanha ou sulinos ao Sul e Mata Atlântica ao Norte)? Quais são as evidências dessa reinterpretação?
Marcelo Dutra da Silva – Essa imagem do Pampa, de um espaço heterogêneo e complexo, que reúne e mistura, pelo menos, duas grandes “coisas”, em forte competição, não me sai da cabeça, me perturba e tira o sono. O Pampa vai além do espaço brasileiro, mas olhando apenas para essa porção territorial, do centro ao sul do Rio Grande do Sul, percebe-se uma enorme heterogeneidade, tanto na sua composição litológica quanto nos sistemas que sobre essas se estabeleceram e evoluíram, incluindo as paisagens formadas no processo de ocupação e uso humano. Assim, estou vendo, de um lado (ao norte), o bioma Mata Atlântica, de florestas densas e muito verdes e, de outro, já no Uruguai e na Argentina (ao sul e a oeste), uma extensa área campestre, que ainda se mantém e continua sendo fortemente influenciada pelo clima. E, se estou vendo assim, sobra entre elas um espaço que, a meu ver, é uma grande zona de competição entre sistemas e/ou fisionomias. Podemos chamar de “Zona de Tensão”, ou de “Grande Ecótono”, ou de “Complexo Vegetacional”, ou, ou, ou… Mas o que não dá para chamar é de bioma.
Tenho refletido bastante sobre esse limite. A importância maior desse trabalho, para além do novo olhar que imprimiríamos sobre esse sistema, é que estaremos dizendo que o IBGE e muita gente se equivocou em definir essa grande área como um bioma, sem na verdade ser exatamente isso. Na verdade, não vejo nenhum problema em considerarmos essa região um espaço de transição, pois é o que realmente parece ser: um “Espaço de Transição”.
De qualquer forma, é preciso investigar melhor e ir a fundo nos conceitos. Será preciso um grande trabalho de reunião de evidência e talvez essa hipótese leve um tempo razoável, até que seja aceita e comprovada, quebrando o paradigma vigente. Vale lembrar que esse exercício que estou tentando fazer só está sendo possível porque não estou preso na escala dos organismos e sim num plano mais geográfico, atribuindo atenção para os padrões de heterogeneidade que compõem as grandezas do espaço.
Ao mesmo tempo, com igual importância na consideração, as paisagens formadas nesse espaço parecem fazer parte desse processo de competição entre as fisionomias. Alguns trabalhos mostram que o campo resiste “aí” e ainda não foi superado pelo “mato” porque o nosso esforço sobre áreas abertas permanece vivo e muito forte na identidade do gaúcho, com cultivos e a presença de grandes pastadores no nosso tempo, representados pelo gado.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a atuação do governo gaúcho frente às questões ambientais nos ecossistemas regionais?
Marcelo Dutra da Silva – Fraca. Temos boas leis, mas carecemos de controle e fiscalização. O estado não tem o aparelho técnico necessário para conter o avanço da degradação. A nossa política de ação ainda é muito modesta, as informações estão soltas e pouca coisa se encontra sistematizada. Também o estado e os municípios fazem pouco uso das universidades, que por outro lado são pouco estimuladas a desenvolver soluções frente aos problemas.
Precisamos reinventar a política ambiental do Rio Grande do Sul, que precisa ser menos pessoal ou menos baseada nas relações pessoais. O mérito por conhecimento precisa ter mais espaço na política ambiental dos estados, sem prejulgamento de partidos ou regulações impostas por interesses às vezes escusos. Afinal, o ambiente é de todos e a coisa pública deve ser tratada com respeito.