Pampa é o bioma menos protegido do país

Pampa

Apenas 47,3% da vegetação nativa do Pampa está preservada. Esse é também o bioma brasileiro com a menor área dentro de unidades de conservação no país: somente 3,3%, segundo o Ibama. FOTO DE SARITA REED/NATIONAL GEOGRAPHIC BRASIL

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Apesar de negligenciados, os pampas apresentam a maior biodiversidade de plantas por metro quadrado entre os ecossistemas brasileiros. Menos da metade da vegetação nativa está preservada. O Pampa está mais degradado do que o Cerrado e a Amazônia.

sexta-feira, 4 de outubro de 2019

A biodiversidade brasileira manifesta-se de diversas formas. A mais conhecida é a das amplas florestas tropicais, com altas árvores e rios de quilômetros de largura.

Já outras formas de biodiversidade são mais sutis, suaves, às vezes até difíceis de serem percebidas, apesar de ricas em espécies. É o caso dos campos sulinos, no Pampa, o segundo menor bioma do Brasil. Localizado no estado do Rio Grande do Sul, ele ocupa apenas 2% do território nacional. Os pampas, como também são chamados, estendem-se ainda por outros países da América do Sul, sobretudo Uruguai e Argentina.

Caso se contabilize a biodiversidade total do bioma, o Pampa está atrás dos maiores ecossistemas brasileiros – Mata Atlântica, Amazônia, Cerrado e Caatinga. Porém, levando-se em conta o número de plantas encontradas por metro quadrado, o Pampa é o bioma que apresenta a maior diversidade. Foi o que pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) concluíram ao encontrar 57 espécies diferentes de plantas em 1 m² de campo nativo. Em segundo lugar, vem o Cerrado, com 35 espécies vegetais por metro quadrado.

“Embora a gente possa pensar no campo como algo que talvez não tenha tanta riqueza, até por já conviver com a atividade pastoril há 300 anos, os pesquisadores são uníssonos em destacar que, apesar da atividade antrópica, é uma área que mantém alto nível de biodiversidade quando bem manejada”, analisa Annelise Monteiro Steigleder, Promotora de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto Alegre.

Apesar disso, a conservação do bioma não tem sido prioridade para as autoridades. Monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra que somente 47,3% da vegetação nativa está preservada.

Dados do Inpe apontam também para aumento no número de queimadas nos oito primeiros meses deste ano em comparação com o mesmo período de 2018, saltando de 593 para 981 focos de incêndio, um crescimento de 65%. É o maior índice desde 2009.

Ademais, recentemente, o ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, indicou a produtora rural Maira Santos de Souza como chefe do Parque Lagoa do Peixe, maior reserva federal do bioma. A atitude do ministério foi contestada pela Associação Nacional dos Servidores Ambientais, que se preocupa com a fragilização da política ambiental. Souza foi indicada pelo deputado Alceu Moreira, membro da Frente Parlamentar da Agropecuária, conhecida como ‘bancada ruralista’.

Paisagem única

A vastidão é o que mais impressiona no Pampa preservado. Ao contrário das extensas planícies do Cerrado, os campos sulinos estão sobre colinas com declives, conhecidas pelos locais como coxilhas. Do alto, nada obstrui a vista. Para onde quer que se olhe, avistam-se amplos espaços abertos com gramíneas de diversos tons de verde-amarelado, pequenas casas e gado. Há também a dramaticidade do céu, onde não raro o azul-celeste dá lugar a pesadas nuvens de chuva que vêm do Uruguai.

Cenas assim, contudo, são cada vez mais raras. “Hoje, o Pampa está muito diferente das suas características originais pela conversão agrícola e pela silvicultura”, alerta Valério De Patta Pillar, professor do Instituto de Biociências da UFRGS.

A vegetação original está intercalada por plantações de arroz e soja na parte sul e por florestas de eucaliptos e pinus nas regiões mais ao leste. Além disso, incentivos à mineração e ao uso intensivo de pesticidas também ameaçam os campos nativos.

Uma das facetas mais dramáticas da deterioração do bioma é relatada por Alice dos Santos, 96 anos, que vive nos pampas desde que nasceu.

De sua casa, no interior da cidade de Alegrete, região oeste do Rio Grande do Sul, avistam-se massas de areia clara encravadas sobre os campos.

“Anos atrás, era pouquinho, bem baixinho. Era pouca areia, depois aumentou bastante. Por aí tudo tem areia agora”, relata.

Essas regiões são conhecidas popularmente como desertos, o que é impreciso, já que chove regularmente na região. Assim, os pesquisadores referem-se a elas como areais.

“A região tem solos muito arenosos e suscetíveis à erosão, tanto à hídrica quanto à eólica. É um fenômeno natural, porém, o que tem acontecido é que a intensificação do uso e cultivo desses solos acelerou o processo. Então, alguns dos areais expandiram em função do uso agrícola e também do uso intensivo da pecuária”, explica Pillar.

Martha Ribeiro é produtora rural e vive com seu marido no assentamento Unidos pela Terra, criado em 2009. A região é cercada por areais e várias famílias relatam dificuldades para realizar suas atividades agrícolas. “Tem umas partes com muita areia. Muita erosão também. Temos que tomar cuidado especial.”

A degradação das terras é um dos principais problemas em escala mundial, tanto que esta década (2010-2020) é dedicada ao combate à desertificação pela ONU. No Pampa brasileiro, há esforços para conter a arenização, embora ainda insuficientes. Uma das práticas mais comuns é plantar pinus ou eucaliptos, espécies exóticas, sobre as áreas degradadas.

“Alguns produtores conseguiram fazer consorciamento de plantas nativas com eucalipto para diminuir a formação desses areais. Às vezes, conseguem até recuperar algumas áreas”, afirma Jesus, representante do Sindicato dos Produtores Rurais de Alegrete.

A prática divide opiniões. Se, por um lado, consegue controlar em parte o avanço dos areais e gerar renda, por outro reforça a monocultura de espécies exóticas, o que gera impactos em recursos hídricos e isola o ambiente, dificultando o fluxo de outros seres vivos.

Políticas públicas ausentes

Pampa é o bioma oficial brasileiro com menor percentual de terras dentro de unidades de conservação (2,7%). O Cerrado, em comparação, possui 8,3% de sua cobertura original em territórios de preservação ambiental; e a Amazônia, 27,3%. A meta 15 do programa de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU prevê que o Brasil delimite, até 2020, pelos menos 17% das terras do Pampa como reservas ambientais.

Porém, para especialistas, criar áreas de conservação sem pensar nos corredores ecológicos como um todo não é o bastante. “Precisamos de uma rede de pequenas áreas que se conectem uma com as outras”, afirma Pillar. Para Steigleder, a criação de unidades de conservação precisa “vir concatenada com instrumentos mais amplos de gestão territorial, de modo que se incentive os produtores a também preservarem. Senão a gente vai ter uma ilha campestre rodeada por eucaliptos”, pondera.

Os corredores ecológicos são favorecidos com a obrigatoriedade de manutenção de reservas legais dentro das terras produtivas. Pelo atual Código Florestal (lei 12.651/2012), a regra é que cada imóvel rural no Pampa deve manter 20% de cobertura vegetal nativa. No entanto, há várias exceções, em especial no que concerne a áreas de uso consolidado. Onde a vegetação nativa foi totalmente suprimida antes de julho de 2008, por exemplo, não é necessária a reserva legal.

Os casos deveriam ser averiguados um a um. Entretanto, um decreto de 2015 do então governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori, estipulava a premissa de que todos os imóveis do Pampa eram áreas de uso consolidado. Assim, não haveria, em princípio, a necessidade de manter a reserva legal prevista pelo Código Florestal.

O Ministério Público contestou a legalidade do decreto, que acabou suspenso liminarmente pelo Tribunal de Justiça por meio de uma ação civil pública. O processo ainda não foi julgado em definitivo.

Preservar o Pampa não significa proibir a atividade produtiva no bioma. É exatamente o oposto. Para especialistas, o ideal seria conjugar a conservação ambiental com a tradicional atividade pecuária, em decadência na região. “Se houvesse uma política pública de benefícios fiscais para que esses produtores decidissem manter a atividade pastoril, sustentável, isso conservaria a paisagem natural do bioma pampa e consequentemente a sua biodiversidade”, afirma Steigleder.