“O mínimo esperado é que o Estado brasileiro faça valer as leis que o povo elegeu e estabeleceu na Constituição de 1988 e através dos documentos internacionais com os quais se comprometeu. Só assim poderemos afirmar que estamos em um Estado brasileiro para os brasileiros e para a humanidade, e não para os interesses econômicos”. O comentário é de Kenarik Boujikian Felippe e Luiz Henrique Eloy Amado em artigo reproduzido pelo sítio do Cimi, 02-01-2013.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/516691-os-tres-poderes-do-estado-brasileiro-sao-os-grandes-autores-das-violacoes-aos-direitos-indigenas-por-acao-ou-omissao
Kenarik Boujikian Felippe é desembargadora do Tribunal de Justiça de São Paulo, cofundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia. Luiz Henrique Eloy Amado, terena da aldeia Ipegue, é assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário do Mato Grosso do Sul (Cimi-MS) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento.
Eis o artigo.
Os três poderes do Estado brasileiro são os grandes autores das violações aos direitos indígenas, por ação ou omissão. Não é por outro motivo que a sociedade se mobiliza na campanha “Eu Apoio a Causa Indígena” (http://movimientos.org/imagem/apoio%20a%20causa%20indigena%20portugues%20-%20site-%20verso%20final.pdf), para se manifestar frente a esses poderes referindo-se a eixos essenciais de violações de cada um deles, que atingem os povos indígenas de todo o Brasil.
As violações de direitos humanos em relação aos povos indígenas têm caráter internacional, pois atingem as comunidades de inúmeros países e fortemente os da América Latina e Caribe.
Os instrumentos normativos internacionais e regionais de direitos humanos – especialmente após a Declaração Universal de Direitos Humanos –, que têm a dignidade humana como referencial ético, não foram suficientes para o resguardo dos direitos relativos aos povos indígenas. Na medida em que tais instrumentos centram sua atenção na perspectiva dos direitos individuais, ficava descoberta a necessidade de proteção sob a ordem coletiva desses povos, afetando sua dignidade como grupo humano com identidade cultural própria.
Diante da constatação desse vazio, foram adotados instrumentos internacionais de caráter coletivo. O primeiro foi o Convênio 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1957, revisado pelo Convênio 169 da OIT, de 1989, posto que aquele tinha visão integracionista. Outros exemplos são a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial e a Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.
Sublinhamos os principais direitos e princípios básicos consagrados no convênio 169: princípio da não discriminação; direito dos povos indígenas de posse das terras tradicionalmente ocupadas; direito de que sua cultura, integridade e instituições sejam respeitadas; direito a determinar sua forma de desenvolvimento; direito de participar diretamente da tomada de decisões acerca de políticas e programas de seus interesses e que lhes afetam; e direito a ser consultado sobre medidas legislativas ou administrativas que também possam os afetar.
Na órbita da ONU, vale destacar que, em 2012, o Brasil se submeteu ao processo de Revisão Periódica Universal, e diversas entidades, dentre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) e a Associação Juízes para a Democracia (AJD), encaminharam suas reflexões sobre o descumprimento das normas de proteção dos povos indígenas do Brasil. Vários países, como Alemanha, Noruega, Polônia, Marrocos, Peru, Turquia, Vaticano e Tailândia, também apresentaram específicas recomendações ao Brasil no tocante aos povos indígenas.
Em termos regionais, ainda não possuímos tratado específico referente a esses povos (a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas está em fase de longa gestação). Mas a Corte Interamericana de Direitos Humanos tem tomado posições protetivas importantes, como no caso Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku versus Ecuador, de junho de 2012, oportunidade em que reconheceu as violações do direito de consulta e à identidade cultural, pois se permitiu que uma empresa petrolífera privada realizasse atividades de exploração no território desse povo, no fim dos anos 1990, sem a realização de consulta. Essa decisão é certamente o norteador na luta dos povos indígenas da América Latina e Caribe.
No Direito interno, a Constituição de 1988 é um marco fundamental do direito dos povos indígenas, protagonistas das conquistas nela estabelecidas, com o acolhimento do princípio da diversidade e alteridade, que consagrou o direito congênito às terras tradicionais ocupadas e declarou nulo todo e qualquer negócio jurídico que as tenha por objeto. Mas o que vemos são comunidades expulsas de suas próprias terras e vistas como invasoras de territórios que há muito são habitados por seus ancestrais, ou como uma ameaça à soberania nacional, principalmente em faixa de fronteira, que sempre defenderam.
Diante das inúmeras violações, vejamos o alerta do professor Dalmo Dallari:
O tratamento que vem sendo dado aos índios brasileiros, as agressões às suas pessoas e comunidades, as invasões mais ostensivas e atrevidas de suas terras, as ofensas frequentes, toleradas ou mesmo apoiadas por autoridades públicas, atingindo a dignidade humana do índio e outros de seus direitos fundamentais, tudo isso mostra a necessidade de um despertar de consciências. Do ponto de vista jurídico, é absolutamente necessário que as autoridades competentes para os assuntos relacionados com os direitos dos índios e de suas comunidades exerçam, efetivamente, suas atribuições legais, pois além das ações arbitrárias os índios estão sendo vítimas de omissões das autoridades.
O fato é que os três poderes do Estado brasileiro são os grandes autores das violações, por ação ou omissão. Não é por outro motivo que a sociedade se mobiliza na campanha “Eu Apoio a Causa Indígena”, a partir de documento aberto a subscrições (www.causaindigena.org), para se manifestar frente a esses poderes referindo-se a eixos essenciais de violações de cada um deles, que em sua essência estão atrelados ao descumprimento do artigo 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição, que obriga a União a concluir a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos – ou seja, 1993.
A campanha quer que a presidenta da República estruture e disponibilize o necessário para que seja resguardada a vida dos indígenas, que se dê garantia de segurança e proteção a eles; que se resguarde a incolumidade das comunidades indígenas em todos os aspectos, especialmente quanto aos direitos econômicos, sociais e culturais; que faça respeitar o caráter sagrado da terra atribuído pelos povos indígenas, providenciando com urgência as demarcações; que escute suas demandas quando da realização de obras públicas; que adote políticas públicas para a emergente regularização de todas as terras indígenas.
No tocante ao Congresso Nacional, alerta para a existência de cláusulas pétreas, que jamais poderão ser modificadas, razão pela qual repudia a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que pretende retirar do Executivo o processo administrativo das demarcações e homologações de terras indígenas, transferindo-o para o Legislativo.
Em relação ao Judiciário, o que se pede é a urgência e a prioridade nos julgamentos, pois a falta de delimitação e demarcação dos territórios tradicionais aguça os conflitos, que se retroalimentam da inoperância desse poder. A garantia de duração razoável do processo, direito humano previsto no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição, é reforçada no tema das demarcações pelo marco estabelecido para que elas fossem efetuadas.
Cabe ao Judiciário ser o garantidor dos direitos nela assegurados, especialmente quando os demais poderes não cumprem esse papel. O Judiciário deve ser o garantidor da Constituição, da vontade soberana do povo, emanada do processo constituinte. Porém, ser garantidor é muito diverso de atuação, como se fosse legislador – algo que não é permitido por ultrapassar os limites impostos na matéria pela própria Constituição –, o que pôde ser observado no julgamento da Petição 3.388 – Raposa Serra do Sol, oportunidade em que o Judiciário impôs condicionantes para balizar critérios para a demarcação das terras indígenas, exclusivamente em relação àquele processo.
No caso Raposa Serra do Sol (http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/18841-terra-indigena-raposa-serra-do-sol-uma-vitoria-significativa-entrevista-especial-com-paulo-maldos-), foram estabelecidos, por iniciativa do ministro Menezes Direito, do Superior Tribunal Federal (STF), 19 condicionantes para a demarcação contínua, sendo necessário registrar que algumas decorrem de previsão constitucional e legal, mas outras afrontam os direitos indígenas, destacando algumas neste espaço.
A condicionante número 4 dispõe: “O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo, se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira”. A evidência não está de acordo com a quadra constitucional. Primeiro porque o § 7º do art. 231 da Constituição Federal estabelece que não se aplicam às terras indígenas as regras que disciplinam a permissão de lavra de garimpo. Em segundo lugar, sendo a terra tradicionalmente de ocupação indígena, o usufruto exclusivo pertence ao índio. Ainda, a lei 7.805/89, que trata do regime de permissão de lavra garimpeira, não se aplica aos índios. Logo, a permissão de lavra garimpeira em terras indígenas deve ser possível desde que exclusivamente em benefício dos índios que tradicionalmente a ocupam, após um licenciamento ambiental e também uma avaliação antropológica, necessitando regulamentação normativa específica.
A condicionante 5, que trata dos atos de relevante interesse da União, dispõe:
O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai.
A de número 7, que igualmente trata dos atos de relevante interesse da União, diz: “O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação”.
Em relação às condicionantes 5 e 7, o art. 231, § 6°, da Constituição estabelece que quaisquer atos de relevante interesse da União poderão restringir a posse, a ocupação e o usufruto exclusivo dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mediante previsão de lei complementar. Dessa forma, políticas que visem o interesse da coletividade poderão ser executadas em terras indígenas, desde que em perfeita harmonia com o direito constitucional dos povos indígenas. A condicionante atropela o direito de participação daqueles que exercem a posse permanente e o usufruto exclusivo das riquezas naturais existentes no solo, nos rios e nos lagos da terra indígena.
O STF, mais uma vez, não faz o juízo de convencionalidade e fere o art. 6°, 1, “a” e 2, da Convenção 169 da OIT, que garante o direito à consulta livre, prévia e informada e real, que o Estado brasileiro insiste em não cumprir, como se constata na realização de diversas obras ao arrepio dessa normativa, negando a autonomia das comunidades indígenas.
A condicionante 11 trata do ingresso, trânsito e permanência de não índios em terras indígenas, dispondo: “Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai”. O ingresso, o trânsito e a permanência de não índios nas terras indígenas devem estar submetidos ao adequado e correto exercício do poder de polícia da União, que o exercerá por meio de seu órgão federal de assistência ao índio. Entretanto, deve-se observar, os índios têm legitimidade para autorizar ou não o ingresso de quem quer que seja em suas terras tradicionais, conforme suas próprias formas de organização social.
A condicionante 17 prescreve que “é vedada a ampliação da terra indígena já demarcada”. A demarcação de terra indígena é um ato declaratório de um direito já existente – o das terras tradicionalmente ocupadas –, e se faz no “bojo de um processo administrativo”, com cumprimento de diversas etapas: identificação e delimitação, demarcação, homologação e regularização fundiária. A terra, objeto de estudo de identificação com o intuito de se averiguar se é ou não de ocupação tradicional, passa pelo estudo histórico e antropológico – as partes têm oportunidade de manifestação e produção de provas; depois é expedida a portaria declaratória, que pode ser levada à apreciação do Judiciário. Posto isso, quando uma terra é demarcada respeitando-se todos os requisitos legais, não há que se falar em ilegalidade, visto que o processo passou pelo trâmite legal. Isso não significa que as demarcações não possam ser corrigidas, especialmente aquelas feitas em forma de ilhas para passarem à forma contínua.
Essa condicionante não pode ser aplicada aos casos das reservas, que são fruto da política indigenista do antigo Serviço de Proteção ao Índio, criadas sem respeito às tradições, traduzindo-se em verdadeiros “confinamentos”. Como exemplo, verifique-se a Terra Indígena Taunay/Ipegue, pois os estudos antropológicos realizados constataram que suas terras são bem maiores do que as atualmente ocupadas por eles, reservas derivadas da política indigenista da época de Rondon.
Por fim, há casos em que a terra foi demarcada conforme prevê a lei, mas, com o passar do tempo, a comunidade foi crescendo, chegando ao ponto de o território ocupado ser insuficiente para a subsistência. Nesse caso, a ampliação do território indígena é necessária, e a União deve providenciá-la com base diversa da demarcação, utilizando o instituto da desapropriação.
Finalmente: as condicionantes, ainda pendentes de recurso, dizem respeito exclusivamente ao caso Raposo Serra do Sol, mas, no âmbito do sistema de Justiça, vale apontar outra violação: trata-se da Portaria 303, da Advocacia Geral da União (órgão que representa a União e que assessora juridicamente o poder Executivo), que quer transportar para todas as demarcações as restrições que o STF impôs. A portaria tem propósitos claros: restringir os direitos constitucionais dos índios, pois afasta expressas determinações constitucionais relativas ao usufruto dos recursos naturais das terras indígenas, em relação à necessidade de consulta a essas populações para aproveitamento de recursos hídricos e para a pesquisa e lavra das riquezas minerais. Ou seja, traz conceito minorante de terras indígenas e, como se não bastasse, quer determinar a retroação para afetar os procedimentos finalizados.
Voltemos agora à Declaração das Nações Unidas já mencionada para registrar o que em seu preâmbulo está inscrito:
Afirmando que todos os povos indígenas são livres e iguais em dignidade e direitos, de acordo com as normas internacionais, e reconhecendo o direito de todos os indivíduos e povos de serem distintos e de se considerarem distintos, e serem respeitados como tais. Considerando que todos os povos contribuem para a diversidade e a riqueza das civilizações e culturas, as quais constituem patrimônio comum da humanidade.
O caminho histórico de 512 anos mostra as grandes dificuldades dos povos indígenas, que só sobreviveram graças à sua resistência, suplantando as pressões dos poderes econômicos, que são cada vez mais fortes e violentos.
O mínimo esperado é que o Estado brasileiro faça valer as leis que o povo elegeu e estabeleceu na Constituição de 1988 e através dos documentos internacionais com os quais se comprometeu. Só assim poderemos afirmar que estamos em um Estado brasileiro para os brasileiros e para a humanidade, e não para os interesses econômicos.
O Estado não tem o direito de estar de outro lado.