4a Feira Nacional da Reforma Agrária, no Parque da Água Branca, em São Paulo. Foto: MST
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As feiras livres costumam ser lugares em que todos os sentidos são aguçados. Os aromas de frutos, hortaliças, raízes e temperos se alternam ou se misturam conforme percorremos as banquinhas. Uma riqueza visual acompanha essas ondas aromáticas, com a profusão das cores, texturas, formatos e tamanhos diferentes dos alimentos oferecidos. Os ouvidos vão captando os anúncios de produtos, em que vozes de todos os tipos exaltam suas qualidades e tentam nos atrair com promoções.
Então paramos em alguma banca e os outros dois sentidos entram em cena. Tocamos os alimentos expostos e experimentamos o que pode ser consumido in natura, com os vendedores nos oferecendo pedacinhos na ponta de suas facas, após abrir e descascar tudo na hora. E é aí que pode surgir um diálogo em torno do ingrediente: quanto tempo ele dura, se rende bastante, como pode ser preparado e até se dá para fazer um desconto extra.
Tudo muito diferente do que acontece em um supermercado, onde predominam corredores silenciosos repletos de prateleiras e prateleiras de produtos padronizados, a maioria envolvida por camadas de embalagens, que os seus cheiros não costumam atravessar. E, se há contato humano, costuma ser muito breve, apenas para pedir uma informação sobre a localização de um item ou conferir algum preço, já que até mesmo os caixas andam se tornando automatizados e o próprio cliente registra sua compra e faz o pagamento, interagindo somente com um computador.
De fato, as feiras são um símbolo de resistência à assepsia e a uniformização do mundo contemporâneo. Uma herança milenar, que remonta às origens da urbanidade, já que foi a partir delas que muitas cidades surgiram, se tornando locais de comercialização e de pousada, antes de virarem lugares de moradia.
Com a formação desses centros urbanos, as feiras passaram a ser espaços de encontro e troca entre trabalhadores do campo e da cidade. Os primeiros trazendo seus produtos agrícolas para ofertar aos últimos – aproveitando, também, para adquirir manufaturados feitos por estes. A ocasião era oportuna para boas prosas, troca de notícias e formação de vínculos sociais, alguns que duravam a vida toda.
Da pequena feira no quarteirão à megafeira anual
É verdade que sempre houve datas em que encontros maiores aconteciam. Seja para comemorar alguma ocasião especial, seja para ampliar a quantidade e a qualidade do que seria exposto, criando uma espécie de vitrine de novidades, que atraíam um grande número de visitantes. Mas ninguém imaginaria que uma feira com o nome de Agrishow não teria os frutos da terra como protagonistas e, sim, uma infinidade de máquinas ou outros produtos industriais, como passou a ocorrer de alguns anos para cá.
É a face “moderna” do agronegócio, o “Agro” que se diz “Tech”. O mesmo que não produz comida para o povo local e, sim, commodities para as bolsas internacionais. Que cria desertos verdes, em que só uma espécie consegue viver, já que é geneticamente modificada para aguentar as doses cavalares de agrotóxicos despejados sobre elas. E vale lembrar que essa espécie não é o ser humano, pois onde o Agro Tech chega, os trabalhadores e trabalhadoras do campo saem, muitas vezes expulsos e algumas vezes até sem vida, já que assassinatos por conflitos fundiários enchem os relatórios de organizações de direitos humanos.
Desse modo, não é de se estranhar que os coordenadores da última edição da Agrishow tenham preferido convidar um ex-presidente acusado de genocídio e de golpismo, ao invés de um representante oficial do atual governo democrático, para ser uma das atrações do encontro. Alguém que tem nas costas boa parte da responsabilidade pelos 700 mil brasileirxs mortos durante a pandemia e por tornar o Brasil um pária internacional na área do meio ambiente combina melhor com um evento em que o sistema produtivo que concentra terra e renda, destrói a natureza e adoece a população dá seu “show’.
Mas, infelizmente, até mesmo as pequenas feiras livres que ocorrem todas as semanas nos bairros dos municípios de todo o país também não são mais espaços só de celebração da vida e da troca entre quem planta e quem janta. Alimentos repletos de agrotóxicos, muitos deles destoantes do bioma em que se encontram, vendidos por feirantes que não cultivam o que oferecem: essa é a realidade vivida pela freguesia que frequenta esses espaços.
Ainda que mantenham uma grande variedade de cores, sabores, aromas e sons, sendo um contraponto à falta de vida dos supermercados, as feiras livres não representam mais a festa do encontro direto do povo do campo com o povo da cidade nem a celebração de sua cultura tradicional. Mas há uma exceção: as feiras agroecológicas.
Biodiversidade e saúde nas bancas
Se nas feiras livres convencionais é preciso tomar cuidado com o que se compra, já que vários dos alimentos campeões de agrotóxicos estão fortemente presentes – lembrando que quase sempre eles não são nativos e exigem manobras agronômicas para serem cultivados aqui no Brasil, como é o caso do morango e do pimentão –, nas feiras orgânicas e agroecológicas é possível escolher produtos sem se preocupar com sua dose de veneno. Tudo é cultivado com insumos naturais, muitas vezes, diretamente pelas pessoas que estão ali para fazer as vendas.
Desse modo, é possível saber a origem do que se come, ter acesso aos saberes que os agricultores e as agricultoras possuem sobre o que cultivam, fazer encomendas especiais e até combinar uma visita às suas roças, já que elas não costumam ser muito distantes, diferentemente do que ocorre nas feiras convencionais ou nos supermercados, onde os alimentos podem ter atravessado oceanos para chegar até uma banquinha ou uma gôndola.
Além disso, as feiras agroecológicas costumam ser redutos da nossa rica agrobiodiversidade e nos brindar com frutos nativos do bioma local, muitos deles já raros nas mesas urbanas e até desconhecidos da maior parte da população. É uma oportunidade de conhecer nossas raízes biológicas, as espécies que a natureza fez brotar em nossas terras – em uma lenta seleção que durou milhões de anos – porque se mostraram adequadas ao clima, ao tipo de solo e à manutenção da teia que liga todos os seres vivos que habitam a região. E é também um mergulho em nossa cultura alimentar, já que com esses frutos da terra é que as receitas culinárias e medicinais tradicionais são preparadas e podem ser compartilhadas entre quem circula nas feiras, mantendo viva uma herança que vem sendo passada de geração em geração.
Mas há uma feira em que todas essas potencialidades se ampliam ainda mais e é possível percorrer o Brasil sem sair de sua maior cidade. É a FENARA, a Feira Nacional da Reforma Agrária, um encontro com a duração de quatro dias, em que uma infinidade de alimentos e produtos agroecológicos são ofertados diretamente por camponeses e camponesas que cultivam em assentamentos e acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o nosso MST.
Após sofrer um boicote de 4 anos, tempo em que o governo agrofascista se esmerou em minar as bases de sobrevivência de agricultorxs familiares, a Feira da Reforma Agrária voltou com tudo para sua quarta edição, realizada entre os dias 11 e 14 de maio no seu espaço tradicional, o Parque da Água Branca, um símbolo de resistência rural na metrópole paulistana. Foram 540 toneladas de comida produzida pelas mãos de quem tanto lutou e luta pelo acesso à terra, oferecida por mais de 1.700 feirantes dos quatro cantos do país em uma verdadeira viagem pela cultura agroalimentar brasileira. Tudo acompanhado de muito calor humano, de troca de conhecimento, de arte. Rodas de conversa, apresentações culturais, debates, shows, atos políticos: tudo isso fez do encontro uma potente demonstração do mundo solidário, justo e cheio de vida que tanto ansiamos por construir. Incomparável com as feiras sem natureza promovidas pelo Agro Tech envenenado.
Disputa de narrativa e de modelo de sociedade
Mas, se a Feira da Reforma Agrária voltou com esse vigor e encantou a todxs que a visitaram, a mídia comercial não se esforçou nem um pouco em cobrir o evento. O espaço que deu a ele foi pífio perto da cobertura exaustiva que fez sobre as ocupações feitas pelo MST durante o Abril Vermelho, mês de luta pela terra e contra a violência e a opressão. Sempre distorcendo os fatos para tentar criminalizar o movimento, o que apareceu no noticiário das grandes redes de comunicação foi um conjunto interminável de críticas negativas, como se as ações dos Sem Terra fossem arbitrárias e injustificadas. Não é à toa que a palavra usada para descrever as ocupações foi “invasão”.
E é essa palavra que iremos ouvir ad infinitum no congresso nos próximos dias, já que a bancada ruralista criou uma nova CPI para investigar o MST. Sim, o “Ogronegócio” que invade territórios indígenas, reservas naturais, solos quilombolas, botando tudo o que encontra vivo abaixo para dar lugar às suas monoculturas ou aos seus pastos, vai usar a ampla bancada que financia em Brasília para acusar o movimento de invadir suas santas propriedades. A narrativa é velha conhecida: os Sem Terra são violentos e destroem a produção agropecuária – nenhuma palavra sobre que tipo de produção é essa, nem sobre os danos incalculáveis que ela causa e, muito menos, em relação a como as terras em que ela ocorre foram “adquiridas” pelos que se dizem seus donos.
O objetivo dessa Comissão Parlamentar de Inquérito não é investigar nada, até porque seus criadores sabem perfeitamente que, se for para descobrir algo, o que iriam descobrir é que a produção de comida de verdade feita pelos assentadxs e acampadxs do movimento é muito maior e mais rica do que imaginam. Na verdade, o que está em jogo é a disputa do modelo produtivo – e, mais do que isso, do modelo de sociedade – que nosso país vai adotar. O Agro que é Tóxico vai tentar envenenar as mentes das pessoas não apenas contra o MST, mas contra a própria ideia de Reforma Agrária e contra o próprio governo Lula, que recriou o Ministério do Desenvolvimento Agrário e tem forte diálogo com os movimentos sociais do campo.
Este Agro que é Fogo, que é Golpe e que é Morte vai fazer de tudo para desviar o foco de seus inumeráveis crimes, acusando o MST de tudo aquilo que sabem que não é verdade, abrindo espaço no imaginário popular para suas campanhas eleitoreiras, de olho nas eleições do ano que vem. Há um vídeo que resume muito bem essa postura hipócrita dos parlamentares da chamada bancada do boi. Nele, a deputada federal Sâmia Bonfim, do PSOL, bota as cartas na mesa e não deixa margem para dúvidas em relação à falta de lisura no processo que instalou a Comissão, na qual o relator é ninguém menos do que Ricardo Salles, o pior ministro do meio ambiente que já tivemos e alvo de processos na justiça por seus atos antinatureza.
Mas, se a bancada ruralista vai botar fogo nesse pavio, talvez ela acabe saindo chamuscada porque as lideranças do MST – que provavelmente serão intimadas a comparecer ao inquérito – não vão poupar os representantes do “Ogronegócio” de ouvir boas verdades, desnudando o que estes vêm promovendo no nosso território: da escravização de trabalhadorxs ao desmatamento das nossas florestas, passando pelo envenenamento da população, como revela a Nota Oficial divulgada pelo movimento. Além disso, suas e seus integrantes também vão ter chance de mostrar a forma campesina de organização e de cultivo, expondo como o país tem a possibilidade de escolher entre dois modelos de produção e de sociedade, o que representa a Vida e o que cultua a Morte.
Nessa disputa de narrativas e de projeto político para o Brasil, os movimentos do campo podem contar conosco, integrantes de uma ampla rede agroecológica que se espalha de norte a sul do território e conhece de perto o imensurável valor do trabalho que eles realizam. Estamos a postos para entrar na briga e vamos lutar para que o modelo produtivo envenenado seja superado. Vamos seguir firmes até que todas as nossas feiras – pequenas e semanais, ou imensas como as que tem edições anuais – sejam tão vivas como são as feiras agroecológicas da reforma agrária, voltando a ser espaços de cidadania e de troca entre os povos das cidades, dos campos, das águas e das florestas.