Onde está o centro do mundo? Em Paris, em Washington, em Londres ou em Brasília e Pequim? Até poucos anos atrás, a resposta era inequívoca: as três capitais ocidentais eram os núcleos do poder mundial. Hoje já não mais.
22/9/2011
http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=47652
O século XXI marca o fim da dominação ocidental sobre o resto do mundo e abre uma nova fase histórica que o economista francês Alexander Kateb define como “a segunda globalização dominada pelos países do Sul”. O Brasil e a China têm um papel central na reconfiguração econômica e moral dos centros de poder.
Em um brilhante ensaio sobre o grupo Brics, composto por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, Alexander Kateb analisa o modo como o centro de gravidade se deslocou para outras zonas do mundo e coloca o acento sobre o fracasso do modelo neoliberal e as ideologias neocolonialistas com as quais o Ocidente se apropriou do planeta. “Acabou a era em que as grandes potências ocidentais podiam decidir sozinhas o futuro do mundo”.
A crise financeira, o colapso da Zona do Euro e a intervenção do Brics para salvar a Europa demonstram a pertinência da análise do economista francês. Seu livro, As novas potências mundiais, por que os Brics mudam o mundo, destaca a “vingança” daqueles que antes eram considerados “os párias do mundo” sobre as chamadas democracias exemplares que hoje sucumbem aos excessos do sistema financeiro, a corrupção, a dívida e dos déficits.
Professor da Universidade de Ciência Política de Paris, diretor do gabinete de conselho e análise Competente Finance, Kateb é um dos primeiros ensaístas do Ocidente a observar a profundidade e a dimensão com que o mundo mudou de rumo sem que a imprensa tenha consciência disso.
A entrevista é de Eduardo Febbro e está publicada no jornal argentino Página/12, 20-09-2011. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
O mundo virou de ponta a cabeça. Os emergentes ajudam hoje as potências ocidentais. É como se o santo ajudasse o diabo.
A crise financeira de 2008 acelerou um movimento de fundo que remonta aos anos 1980. Estamos assistindo ao fim de um modelo econômico dominado pelos Estados Unidos e os países ocidentais e ao surgimento de um mundo muito mais diverso, muito mais aberto, com vários pólos de potência. É um mundo onde os países não ocidentais pesam cada vez mais, e amanhã vão pesar de forma mui mais preponderante. A China será a maior economia mundial dentro de 10 anos e dentro de cinco anos ultrapassará os Estados Unidos na paridade do poder aquisitivo. Há uma profunda mudança em relação aos hábitos mentais e a tudo o que conhecemos nos últimos dois séculos. Eu chamo isto de “a grande convergência”. Os países emergentes, que se industrializaram mais tarde que o Ocidente, absorvem seu atraso e buscam influenciar os grandes temas do governo mundial, a economia, as finanças, o meio ambiente, a geopolítica e a segurança. Isto se pode explicar muito bem mediante a teoria econômica: quando um país se industrializa, tende a se equiparar aos outros países. Há então uma convergência. Esta convergência esteve bloqueada durante muitos anos por um sistema de dominação política como é o colonialismo. Enquanto estes países tiveram os meios para resolver os problemas internos, em parte graças ao fato de que o Estado desempenhou um papel muito forte – tanto na China, na Índia, na Rússia e no Brasil – as dinâmicas se puseram em funcionamento. A China é hoje a locomotiva de toda a economia mundial.
Você ressalta algo muito forte quando diz que a situação atual põe fim a dois séculos de dominação ocidental.
Durante dois séculos, o Ocidente acreditou que dominava o mundo. No começo foi a Inglaterra, país onde nasceu a Revolução Industrial; depois vieram os Estados Unidos, que substituíram a Grã-Bretanha depois da Primeira e da Segunda Guerra Mundial. Finalmente, hoje nos damos conta de que foi apenas um momento na escala da história. Isso que se chamou de momento ocidental está se acabando graças ao avanço da China. É preciso recordar que, até o século XVIII, a China foi a maior economia mundial. Podemos dizer que se produz um giro muito grande e também, se situarmos o fenômeno atual sob a leitura de uma extensão histórica longa, um retorno à situação de dois séculos atrás.
A influência e o peso dos países emergentes ultrapassam em muito o âmbito econômico. Você observa que essa influência se estende a todos os campos.
Sem dúvida. Acontece que a economia é o pilar: se não houver uma economia poderosa, não se pode desenvolver a independência e a influência. Mas o peso demográfico e territorial desses países, seu impacto no meio ambiente mundial, nos recursos naturais, os torna indispensáveis no jogo da economia mundial, e isso lhes oferece uma legitimidade para atuar em outros campos. Esses países projetam sua potência tanto em nível regional como mundial. Observe a particularidade do Brasil: durante dois séculos, o Brasil viveu fechado em si mesmo, mas a partir dos anos 1970 e, sobretudo, com o retorno da democracia, o Brasil tem a vontade de se colocar como modelo de desenvolvimento do Sul.
Você adianta uma ideia nova quando escreve que entramos na fase 2 da globalização, uma globalização dominada pelo Sul.
Esta globalização 2 é diferente da primeira porque os países do Sul não têm a mesma história que os países do Norte, não viveram os mesmos traumas. Os países do Sul aprenderam a lição. Por isso, hoje, a sensibilidade desses países sobre as questões mundiais, do meio ambiente, do comércio, em suma, tudo o que diz respeito a esses temas estratégicos, os leva a analisar as coisas de uma forma muito diferente. Isso é o que o Brasil quis fazer em 2003 durante a Conferência de Cancún sobre o meio ambiente; isso é o que a China está fazendo agora quando propõe a saída do dólar e a criação de uma moeda internacional. São sinais de que estes países buscam mudar a natureza profunda dos intercâmbios mundiais. Trata-se de uma visão que deseja aliar os interesses do desenvolvimento com os interesses comerciais. Trata-se de uma lógica muito diferente da que constatamos durante todos estes anos de neoliberalismo triunfante, isso que surgiu no Consenso de Washington. A última manifestação dessa visão neoliberal é a Organização Mundial do Comércio. A OMC liquidou todas as preferências para os países em desenvolvimento que ingressaram no organismo e acabaram caindo em sua armadilha.
Como se explica a ajuda que os países do Brics vão dar à Europa?
Os países do Brics estão em posição de força, começando pelo simbólico: eles têm agora uma saúde econômica muito mais importante que os Estados Unidos ou a Europa. São estes países que hoje dão uma lição quando há alguns anos eram considerados como os párias da economia mundial. Têm então uma grande legitimidade. Sem dúvida, se o grupo Brics se dispõe a ajudar a Europa é devido a que isso também ajuda o grupo. Ajudando a Europa, apóiam suas economias. Ainda não são suficientemente fortes para dispensar os países ocidentais. Os países do Brics estão preparando seu lugar na nova ordem mundial que está se configurando.
Há uma profunda ironia em tudo isso. Excetuando a China, os países do Brics foram os mais endividados e agora são eles que aparecem como os salva-vidas de um sistema internacional que antes os asfixiou.
Realmente, há nisto uma grande ironia da história, ao mesmo tempo que reflete um vício de funcionamento fundador na ação do Fundo Monetário Internacional. A filosofia inicial do FMI consistiu em ajudar os países a corrigir sua balança de pagamentos e recuperar a estabilidade sem transtornar com isso sua estrutura econômica. Mas, nos anos 1980, o FMI mudou e se converteu no grande policial que conhecemos, salvo, é claro, para os grandes países como os Estados Unidos, que acumularam déficits sem que o Fundo movesse um dedo. Mas foi graças às crises que os países emergentes conseguiram se distanciar do FMI e ser independentes, ao mesmo tempo que os países ocidentais continuavam se afundando. O presidente argentino Néstor Kirchner teve um gesto muito forte quando reembolsou o FMI. Na mesma época, o presidente russo, Vladimir Putin, pagou adiantado ao Fundo e os demais países emergentes fizeram o mesmo para se livrar das garras do FMI. A decisão de Kirchner foi tanto mais corajosa, medida em que, durante anos, o FMI manteve a Argentina em seus braços e isso não fez mais que levar o país a um beco sem saída. A saída de helicóptero de Fernando de la Rúa foi não apenas o símbolo do fracasso de um país, mas também de um sistema de pensamento. Kirchner teve a audácia de marcar simbolicamente a ruptura com a antiga ideologia. Todos os países que se distanciaram do FMI conheceram depois um sólido período de crescimento.
Kirchner na Argentina, Lula no Brasil… houve uma convergência regional histórica.
Lula esteve em todas as lutas da esquerda brasileira contra a ditadura, e quando foi presidente agiu de maneira muito responsável: não rompeu com todos os acordos internacionais, reembolsou a dívida com o FMI e ao mesmo tempo conservou os benefícios do período de estabilização. Lula entendeu que se o Brasil quisesse se projetar para o futuro não deveria cometer os erros do passado, ou seja, a crise da dívida provocada pela ditadura e toda a dependência com o FMI que veio depois. Lula provou que era possível conciliar desenvolvimento econômico e democracia.
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