“As recomendações e análises dos economistas (inclusive as minhas), mesmo quando prestadas em boa fé, estão eivadas de valorações e pressupostos não revelados, para não falar de ostentações de rigor e cientificidade incompatíveis com a natureza do objeto investigado, incidente ontológico quase sempre ignorado pelos praticantes da “Ciência Triste“. Isso não lança necessariamente dúvida sobre a honestidade intelectual dos economistas, mas, sim, os obriga a explicitar as “visões” (como dizia Schumpeter) que antecedem e fundamentam suas análises”, escreve Luiz Gonzaga Belluzzo, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, em artigo publicado no jornal Valor, 03-07-2012.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511126-os-conhecimentos-e-os-interesses
Eis o artigo.
Em seu último artigo no “New York Times”, Paul Krugman desferiu golpes na moleira do ex-senador Phil Gramm e na testa de Glenn Hubbard, ex-chefe da assessoria econômica de Bush Filho. Em fevereiro de 2008, Hubbard negou a crise. Em julho de 2008, o crash financeiro em marcha batida, Gramm declarou ao jornal “Washington Post” que os Estados Unidos padeciam de uma “recessão mental” e se haviam convertido em uma “nação de chorões”.
Não vou tratar aqui de outras manifestações do republicano Gramm. Já Hubbard, no jogo de máscaras, ora ostenta o disfarce de professor, ora atarraxa a persona de consultor de empresas. Merece, portanto, nossa atenção. Decano da Business School, Glenn Hubbard, entre outras pertinências, é contratado do Analysis Group, uma consultoria especializada em defender “interesses especiais” nos tribunais, nas audiências parlamentares e nas agências encarregadas de cuidar de práticas antimonopolistas. Não é preciso dizer que Hubbard é frequentemente convidado a manifestar suas opiniões doutas e independentes, ademais de científicas, na mídia impressa e imagética.
Glenn Hubbard, o leitor há de se lembrar, é um dos entrevistados no documentário “Inside Job“. Impostado em suas feições de acadêmico respeitável e recatado, o rosto adornado por óculos que, pendurados em qualquer nariz, poderiam revelar as mais elevadas propensões intelectuais, Hubbard sentiu-se acuado pelas perguntas de Charles Ferguson. O diretor de “Inside Job” questionou o dublê de acadêmico e consultor a respeito do conflito entre seus trabalhos de opinião remunerada e os princípios que regem (ou deveriam reger) a vida acadêmica. Hubbard não respondeu e ameaçou encerrar a entrevista.
No livro “The Predator Nation: Corporate Criminals, Political Corruption and the Hijaking of América“, Ferguson desfila trechos de artigos escritos por Hubbard às vésperas do crash financeiro. Seriam cômicas as análises, não fossem trágicas as consequências das sabedorias prolatadas pelo insigne economista.
Pontificava, então, o professor de Columbia: “O desenvolvimento do mercado de capitais nos Estados Unidos aperfeiçoou a alocação de capital e dos riscos. Isso deu maior estabilidade ao sistema bancário americano, proporcionou mais empregos, salários mais elevados, recessões menos frequentes, mais brandas e uma revolução no financiamento de imóveis residenciais”.
Mais adiante, prosseguiu em sua apoteose mental: “O desenvolvimento dos mercados de capitais ajudou a distribuição mais eficiente dos riscos. Essa capacidade de transferir riscos facilitou a inclinação a assumi-los, mas essa maior inclinação não desestabiliza a economia. Assim, os mercados financeiros asseguram o direcionamento dos fluxos de capitais para os melhores usos e (garantem) que as atividades de maior risco e maiores rendimentos tenham funding sólido.”
Não satisfeito, emendou: “Os mercados de capitais ajudaram a tornar os mercados (sic) de residências menos voláteis. As contrações de crédito que periodicamente afetavam a oferta de fundos para o financiamento de residências e abalroavam o setor de construção são coisas do passado. Cederam os custos associados aos empréstimos hipotecários. Nestes tempos, as famílias podem obter um financiamento de 100% do valor das residências… A revolução no mercado hipotecário também contribuiu para uma transformação radical, ao tornar a economia menos inclinada a flutuações cíclicas.”
As recomendações e análises dos economistas (inclusive as minhas), mesmo quando prestadas em boa fé, estão eivadas de valorações e pressupostos não revelados, para não falar de ostentações de rigor e cientificidade incompatíveis com a natureza do objeto investigado, incidente ontológico quase sempre ignorado pelos praticantes da “Ciência Triste“. Isso não lança necessariamente dúvida sobre a honestidade intelectual dos economistas, mas, sim, os obriga a explicitar as “visões” (como dizia Schumpeter) que antecedem e fundamentam suas análises.
Essas cautelas tornam-se ainda mais imperiosas quando as sabedorias dos interesses subjugam os interesses pelo conhecimento. Na “era da informação e dos consultores”, só a velhinha de Taubaté ignora a importância da “opinião autorizada” e chancelada pela “dignidade acadêmica” na formação dos consensos dominantes nas últimas décadas. As divergências legítimas e inevitáveis foram escoimadas em benefício de certezas tão sólidas quanto esféricas em suas estultícias como as asseveradas pelo professor Hubbard.
Depois da exibição do documentário “Inside Job“, a Universidade de Columbia passou a exigir de seus professores a revelação das empresas à quais prestam serviços de consultoria ou assessoria de qualquer natureza. Não se trata de proibir a atividade profissional dos docentes e pesquisadores, mas de obrigar o esclarecimento do público sobre o conflito de interesses quando os participantes do debate estiverem envolvidos em relações comerciais.
É ilegítimo e fraudulento, por exemplo, aceitar a redação de um parecer que contrarie as evidências mais escancaradas, como o fez Frederic Mishkin, ex-membro do Board of Governors do Federal Reserve ao opinar, nos idos de 2006, sobre a situação econômica da Islândia. “Financial Stability in Iceland” é o nome da peça. Mishkin escreveu: “A Islândia não é uma economia emergente. Comparações da Islândia com economias emergentes, com a Tailândia [na crise asiática de 1997-98] estão completamente equivocadas. A Islândia, ao contrário, tem excelentes instituições. A qualidade de sua burocracia e os baixos índices de corrupção colocam o país entre os mais bem governados do mundo, em contraste com a supervisão prudencial inadequada dos países que experimentaram instabilidade financeira.”
A opinião do economista, diz Ferguson, legitimou e renovou as energias de uma das maiores fraudes financeiras “do mundo”. Fraudes que devastaram a economia do país. A Câmara de Comércio da Islândia pagou US$ 120 mil pela obra-prima de autoengano.