Vandana Shiva entre mulheres.
Berna González Harbour, entrevista para El País
25-07-2022/02.08.2022
Resistir ao furacão da globalização parece impossível em um mundo que avança na modificação genética para uso na agricultura, na consolidação de cultivos intensivos e nos alimentos processados, mas Vandana Shiva, a grande ativista da biodiversidade e do ecofeminismo, parece ter conseguido essa façanha. Cheia de energia, dona de um sorriso que não perdeu intensidade e de uma convicção que desafia as mais virulentas críticas, esta mulher nascida na cidade indiana de Dehradun há 69 anos continua com todo vigor sua luta pela diversidade de sementes contra as monoculturas, pelo papel da mulher na economia, pela água, contra as patentes agrícolas e por um conceito que ela defende como bandeira para novos tempos tempestuosos: o sentimento de pertença. “Belonging.” Uma ideia que em seu discurso engloba muito mais do que o fato de fazer parte de um clube, pois inclui algo tão imaterial quanto a comunidade, o coletivo, a autenticidade e a família em sentido amplo. Muito amplo.
Entrar no universo de Vandana Shiva é viajar no tempo, às origens relacionadas ao despertar de Gandhi e sua forma de resistência não violenta que ela usou contra a derrubada em massa de árvores na sua região do Himalaia nos anos setenta ou contra a mineração extrativista selvagem nos anos 1980. Seu jeito um tanto místico de falar e seu discurso de amor pela terra como um todo conectado do qual nós humanos fazemos parte gera desconfiança e enormes críticas, principalmente da indústria afetada. Mas a verdade é que sua voz clara e precoce contra a Monsanto, a grande corporação de pesticidas e de organismos geneticamente modificados, agora de propriedade da Bayer, repercutiu nos casos legais de dezenas de milhares de pessoas por cânceres relacionados à exposição a seus produtos. A Bayer concordou em 2020 em pagar 11 bilhões de dólares para encerrar essas demandas.
E a verdade também é que Vandana Shiva estudou Física e Filosofia, duas disciplinas tão díspares quanto complementares que lhe permitiram combinar essa mistura de valores e números nas suas causas.
Eis a entrevista.
Que contribuição a ciência e a filosofia lhe deram?
Escolhi a física quando era muito jovem, inspirada por Einstein porque lia seus pequenos ensaios sobre ciência e responsabilidade social. Eu tinha ido para escolas onde não ensinavam ciências, mas procurei bons professores para me formar e consegui uma bolsa para ir à universidade. Estudei Física de Partículas e isso me levou ao mundo da Física Quântica. Eu queria entender melhor, comecei a averiguar e descobri que tudo o que eu queria, as grandes mentes dos fundamentos da teoria quântica de todo o mundo, estavam na Universidade de Western Ontario, no Canadá. E fui para lá para fazer Filosofia e meu doutorado. E agora vou lhe dizer qual foi a contribuição de tudo isso: a Física Quântica trata da conexão à distância, sobre como as coisas se chocam umas às outras sem necessidade de se empurrar fisicamente. Há tantas maneiras de estar conectado! Essa interconexão é a ecologia.
Nossa conversa aconteceu no centro de Palma de Maiorca, onde Vandana Shiva participa do fórum de ativismo e pensamento sobre sustentabilidade Xtant, e pela janela aponta para os arredores de florestas, urbanismo e o mar que chega a poucos metros de nós. “A física também me ensinou a trabalhar com números, com sistemas, com processos, a saber como as coisas evoluem e como se interconectam. E comecei a descobrir que os números estavam sendo mal utilizados.”
Ela dá o exemplo do eucalipto: derrubar florestas nativas para plantar eucaliptos em seu lugar era considerado uma atividade de alto rendimento. “Mas essa nova plantação não cumpre nenhuma das funções da floresta: as funções da água, do húmus. Não contribui com nada de positivo para o solo em termos da água ou da agricultura. E descobri que o suposto alto desempenho era um erro de cálculo, porque não leva em conta todo o sistema. É por isso que minha formação em física me deu uma estrutura para entender o impacto das coisas geneticamente modificadas na biodiversidade e em nossos intestinos.”
E a filosofia? Qual é a contribuição da filosofia?
Precisei fazer uma segunda formação interdisciplinar porque os fundamentos da Física Quântica também levantam questões filosóficas: o que é a ontologia? O que existe no mundo? Toda a questão do indeterminismo, da previsão…
Ao retornar do Canadá, ingressou no Indian Institute of Management em Bangalore, dedicado à saúde pública, ciência e sistemas de energia. E sua primeira grande vitória foi um estudo sobre minas de calcário que fez para o Ministério do Meio Ambiente em 1982, o que levou ao seu fechamento. “Conseguimos mostrar que o calcário das montanhas produzia água e que a economia da água era muito mais importante do que a economia da extração para fazer cimento e encontrar matérias-primas. Pudemos comparar as duas economias: preservar o calcário não parece criar economia porque você não está extraindo.”
“Mas esse calcário está produzindo água, a água cria agricultura e a agricultura cria meios de subsistência, enquanto da outra forma duas empresas ficavam com os lucros, mas nos deixavam sem água e provocavam deslizamentos de terra e inundações. Nosso estudo levou o Supremo Tribunal a fechar as minas de calcário, porque nossa Constituição diz que todo cidadão tem o direito de viver, e o Estado tem o dever de protegê-lo. Aquele projeto de mineração destruía o abastecimento de água e, portanto, o direito à vida. Foi a primeira vez que o direito a um ecossistema estável e sustentável se traduziu em direitos humanos. As minas foram fechadas.”
A partir daí, deu o salto para levantar sua própria fundação. “Percebi o poder de um único estudo. Se pude salvar algo tão importante, quanto mais poderia fazer de forma independente.” Abriu mão do salário mensal e deu ouvidos à sua mãe, que lhe ofereceu a granja da família. E em 1982, criou a Fundação de Pesquisa para a Ciência, a Tecnologia e a Ecologia. “A partir do estábulo da minha mãe”, lembra. “Foi assim que me tornei o que sou: continuei com a ciência, mas não vejo o pensamento como algo separado da ação. Pensar e fazer faz parte do mesmo processo humano. E meu ativismo e minha ciência fazem parte de um processo de vida de responsabilidade, de conhecimento total do que está acontecendo no mundo e do que você pode fazer. Uma vida na qual você assume a responsabilidade por suas ações.”
Você é uma ecofeminista. Muitas feministas temem que o ecologismo prejudique as causas do feminismo ao unir as bandeiras. É realmente um risco?
Se você pensar nas mulheres como constitutivas de pequenas partes: aqui a parte feminista, aqui a parte da ecologia, e se se tornar ecologista, o feminismo afundará, você tem uma forma muito cartesiana e mecânica de pensar. As mulheres são seres humanos, mas acima disso somos seres da Terra. E vivemos há 400 ou 500 anos a desvalorização das mulheres. Descartes fez desaparecer o corpo e considerou o pensamento como atividade de homens privilegiados que definiam o mundo como uma máquina. Bacon disse que a natureza tinha que ser escravizada e torturada para que nos revelasse seus segredos. Todo esse pensamento separava os humanos da natureza e transformava as mulheres em matéria a ser dominada e explorada. Portanto, separar as mulheres do resto é uma falsa escolha, é uma separação reducionista, cartesiana, e é aí que os problemas começam.
O problema do patriarcado e da destruição ecológica estão totalmente interligados. E o potencial de regeneração é o ecofeminismo, o reconhecimento de que a mesma visão de mundo que subjuga a natureza também subjuga a mulher como um objeto passivo. A separação e a hierarquia são parte do problema. Aqueles que têm grandes lucros com a destruição da natureza dizem que você não pode pensar no meio ambiente porque, do contrário, perdem-se empregos. Eles sempre colocam o emprego em oposição à ecologia. Mas um sistema que nega a terra como algo vivo continua sendo uma colonização da terra, das mulheres e dos homens. O outro risco que atribuem a isso é empurrar as mulheres novamente para os antigos papéis de cuidadoras.
Nos anos setenta, as mulheres da minha região protegeram as árvores com o movimento Chipko, que significa abraçar. Outras mulheres defendiam os rios das grandes barragens. Minhas irmãs do Chipko também cuidavam da agricultura e das crianças, especialmente porque os homens haviam emigrado. Essa economia real foi deixada para as mulheres com base na negação desse setor. Porque a economia de hoje baseia-se em ganhar dinheiro. Aristóteles disse que a economia é a arte de viver. A arte de ganhar dinheiro é criminosa. E foi isso que fizemos, confundimos a arte de ganhar dinheiro com a economia. E não é economia. É deseconomia. A verdadeira economia é a arte de viver que as mulheres sustentaram. Todo mundo tem que se ocupar dos cuidados. Mas como nós mulheres sempre fizemos isso, somos líderes da futura economia dos cuidados.
Você acha que as mulheres governam melhor que os homens?
Quando as mulheres trabalham com os valores de uma relação com a terra, elas governam melhor.
Você é uma expoente da luta contra os organismos geneticamente modificados (OGM). Você é contra todos eles, incluindo aqueles que foram modificados para suportar melhor as secas ou as baixas temperaturas?
Eu sou uma cientista e quero ver os sistemas em sua relação com tudo. Não escolhi exatamente a agricultura, à qual dediquei minha vida. Mas em 1984 fui forçado a isso porque em Punjab, onde a Revolução Verde tinha sido introduzida, muitas pessoas morreram por causa dos pesticidas. Depois de Bhopal e de Punjab, me perguntei: de onde vêm esses produtos químicos? E me deparei com Hitler, numa época em que um grupo de empresas havia desenvolvido produtos químicos para matar pessoas em campos de concentração. Agora estavam usando produtos químicos e mudando o pensamento sobre a agricultura e a alimentação. Compreendi então que não se pode olhar para um grão isolado. Você tem que olhar para o que é necessário em termos de energia nas plantas e no solo. A minha opinião é muito simples: temos um quadro de avaliação.
O impacto na biodiversidade e na saúde pública deve ser avaliado. É uma obrigação legal e essa é a minha atitude em relação aos OGM, incluindo os novos. E como a ciência pode ajudar a agricultura? A ciência pode ajudar sendo ciência. Ciência significa saber, e saber significa que, se você tem uma semente, precisa saber exatamente como ela se relaciona com o solo, com as abelhas e os polinizadores. Não se trata de colocar um gene venenoso com toxina e deixar que os organismos do solo morram. Os agricultores são os melhores especialistas. Eles enfrentaram a seca e selecionaram seus grãos, que são os que melhor a enfrentam. Isso é ciência.
Uma ciência que não vem de laboratórios…
A ciência que vem apenas dos laboratórios tornou-se a nova ameaça à vida na Terra. Os alimentos são a divisa da vida, e a maneira como você trata o solo decide a qualidade dos seus alimentos. Você não pode separar o solo da sua saúde, da biodiversidade do solo e dos nossos intestinos. O intestino é como um segundo cérebro. Agora sabemos que os alimentos ultraprocessados são responsáveis pelo aumento vertiginoso de doenças crônicas ligadas à má dieta industrial. Isso é ciência e, no entanto, a humanidade avança cegamente em direção à alimentação produzida em laboratório.
E você pode manipular a política governamental, mas não pode enganar os 100 trilhões de micróbios que habitam nosso intestino. Teremos um desastre sanitário de magnitude inimaginável se continuarmos a comer alimentos de má qualidade, os fake foods. A ciência significa investigar, mas investigar com transparência. E os alimentos são importantes demais para serem deixados nas mãos de 10 bilionários para serem a próxima fonte de seus lucros.
Você sente que ganhou uma batalha específica entre todas as que lutou?
Paramos a Monsanto naquele caso, porque conseguir um protocolo de biossegurança já era uma vitória. Mas não as vejo como batalhas. Vejo minha vida guiada pela busca da verdade e da ação correta. E o simples fato de eu poder dizer às Monsantos do mundo que não podem inventar sementes, que não são Deus, que os organismos geneticamente modificados não são Deus, que não são os criadores do mundo, isso já foi uma vitória.
A globalização fracassou?
Sim, vimos isso durante a catástrofe da Covid. As regras da globalização são escritas pelas corporações. Passei muito tempo trabalhando em um acordo agrícola que foi redigido pela Cargill, a maior comercializadora de grãos do mundo, ou sobre direitos de propriedade intelectual escritos pela Monsanto. Elas são juiz e parte. Elas escreveram as regras da OMC e nos deram um mundo que gera doenças ou tecnologias fracassadas de modificação genética. Os grãos resistentes ao glifosato supostamente deveriam controlar as ervas daninhas e temos superervas daninhas. Uma toxina deveria controlar as pragas e temos superpragas. A semente é a vida em continuidade, em evolução, não uma patente.
São séculos e milênios de contribuição das nossas avós, do solo e do sol. Mas as sementes da Monsanto criam dependência, e se aumentam o preço para os agricultores, estes ficam endividados. E na Índia, embora não lhes fosse permitido ter patentes, a Monsanto cobrava taxas e impostos dos agricultores e aumentou o preço. Quatrocentos mil agricultores indianos cometeram suicídio. Não permitir que os agricultores tenham sementes tornou-se um crime. E agora, com a mudança climática, enfrentamos o desastre. O agricultor torna-se um refugiado climático. As patentes são crimes contra os agricultores e crimes contra o futuro.
O que é a biodiversidade para você?
A biodiversidade é vida, não o resultado da exploração de recursos. Não é uma entrada nos mercados financeiros ou um número. A diversidade de espécies é uma relação entre seres vivos. A biodiversidade produz as plantas. A planta é biodiversidade, alimento que podemos comer. Nós somos biodiversidade ambulante.
E a pertença? O que é isso para você?
A pertença significa saber quem você é, suas relações, o que faz você se sentir em casa, e para mim significa saber que fazemos parte da família da terra. Claro, temos mães e pais, parentes, filhos. Mas esse não é o limite da nossa família. Nós somos a família da terra. Você não pode excluir as árvores, sem elas não teríamos oxigênio. Portanto, pertencer significa conhecer nosso lugar ecológico na teia da vida. Significa que a Terra é a nossa casa. E cuidar dela é a verdadeira economia.
Fala a filha de um agente florestal que a ensinou a amar as árvores enquanto caminhavam pela floresta e de uma inspetora de escola que se tornou uma refugiada após a divisão da Índia e do Paquistão. “Minha mãe se recusou a cantar as canções de ninar inglesas porque são todas sobre a morte: Jack and Jill went up the hill to fetch a pile of water. Jack fell down and broke his crown, and Jill came tumbling after (Jack e Jill subiram a colina, buscar um balde de água, Jack caiu e quebrou sua coroa, e a Jill caiu depois)…”, cantarola Shiva a música que termina em queda e fratura.
“É por isso que minha mãe escrevia suas próprias estórias sobre florestas. Foi assim que aprendemos que cada árvore lhe dá alimento, direta ou indiretamente.” De ambos, diz, aprendeu a simplicidade e também a viver sem medo. “Meu pai costumava dizer que quando sua consciência o guia, não há poder no mundo a temer. E também o poder de compartilhar. Dizia que se você usar mais, terá menos para compartilhar. E se você usar menos e com simplicidade, terá mais para compartilhar. Eles viviam suas vidas de braços abertos para todos.”
Shiva e seus dois irmãos ainda vivem na casa da família, e todos os dias do confinamento agradeceu à sua mãe pelas lichias e mangas que ela plantou. “Todas as manhãs vinham pássaros, borboletas, e agradecia à minha mãe por fazer um lar para tantos seres vivos.” Ela, conclui, está apenas tentando seguir seu exemplo.