O som da Antártida

Iceberg na Antártida, avistado na expedição do Greenpeace.ABBIE TRAYLER-SMITH (GREENPEACE)

https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-01-23/o-som-da-antartida.html

ELIANE BRUM

A Bordo Do Navio Arctic Sunrise – 23 JAN 2020

Sabemos o quanto os motores dos navios, barcos e botes poluem os mares. Há ainda os sonares militares. A contaminação sonora confunde a comunicação das baleias, assim como o seu senso de direção, relata a jornalista em expedição no continente gelado

Imaginem. O mar de um azul profundo. Gelos de diferentes tons de branco e azul. Você está na Antártida, o mais inacessível continente do planeta. Pinguins fazendo nados sincronizados, focas-leopardo digerindo pinguins numa soneca num iceberg, baleias caçando ao redor do navio. Qual é o som que você imagina neste lugar que se chama adequadamente de Baía do Paraíso?

Feche os olhos e tente imaginar.

Desta vez vou mostrar uma foto, para ajudar.

Agora, vou contar.

O som da Antártida é…

That’s the way. Haha. Haha. Haha I like it.

Sério.

Os $%ˆ&*$%* turistas do @#$ˆ*&()ˆ%&$ˆ% navio que ancorou na baía bem perto do nosso está fazendo uma festa “disco”. Os passageiros, a maioria chineses, estão dançando loucamente Haha Haha Haha I like it. É isso, amigos. Você vem para o fim do mundo para ouvir Haha Haha Haha I like it.

Quero deixar claro que não tenho nada contra Haha Haha Haha I like it. Já dancei muito, inclusive.

Minha dúvida se dá apenas sobre a adequação geográfica.

(o navio hoje está balançando mais do que liquidificador. precisei parar de escrever e chegar o mais rápido possível à cabine que divido com outra pessoa. o meu é o beliche debaixo, o que é auspicioso. se vomitar, não cai pizza na cabeça de ninguém. escrever com o navio balançando dá enxaqueca em quem não tem enxaqueca. precisei parar e deitar. dormi. agora estou tentando escrever deitada para ver se é possível, mas não estou usando maiúsculas para não me sobressaltar. uma maiúscula pode me fazer vomitar. a gente tenta de tudo)

Por três noites estivemos ancorados na baía do paraíso. não posso afirmar com certeza, mas acredito que havia perto de mil pessoas na baía. nós somos apenas 33, o que já é bastante. mas havia três navios de cruzeiro lotados de turistas. estes navios carregam de 150 a 500 pessoas. havia ainda um pequeno veleiro, certamente a embarcação que causa menos estrago.

Visitei a base argentina Almirante Brown e conversei com a chefe do posto, Astrid Zaffiro. (estou me sentindo melhor, agora. vou retomar as maiúsculas porque ela não merece minúsculas. Astrid é minúscula no tamanho, mas toda MAIÚSCULA no restante.) É a sua quinta missão na Antártida. Neste momento, é a única civil entre sete militares. Não há cientistas por enquanto. Astrid é pequena, é mulher e manda muito bem. Está em um dos lugares mais gelados do planeta, mas seu sorriso nos aquece. Astrid registra os turistas que vão até a base. Em 2014/2015, quando começou, registrou 2 mil. No verão anterior, em 2018/2019, este número havia saltado para quase 8 mil. A maioria dos turistas é chinesa.

Esta, foto abaixo, é a Astrid. Costuma segurar o rádio de comunicação numa mão e a cuia de chimarrão na outra. Vai completar seu próximo aniversário —33 anos— em 7 de fevereiro, na Antártida.

Não é apenas o número de turistas que cresceu. O derretimento do gelo e o calor aumentaram. É o que a observação empírica de Astrid aponta. Ela repete várias vezes que não é cientista, sua área é turismo. Astrid só pode observar. “O que antes era coberto de neve agora não é mais. Antes nevava, agora chove mais do que neva. Há muito mais desprendimentos de gelos, tudo parece mais fino”, ela conta. “Eu fico triste. Acho que as pessoas não percebem que cada gesto seu, que mesmo o seu lixo, impacta aqui.” A mudança é muito rápida. Entre 2014 e 2020 Astrid já sofre pela Antártida. Documenta em fotos pessoais as diferenças de um ano para outro.

Subimos a montanha. A rigor, é a primeira vez que piso no continente antártico. Antes estava no mar e em ilhas. Estamos entre pinguins. Olhamos lá de cima, a Baía do Paraíso está tomada de botes de turismo, um crack se ouve e um pedaço enorme de gelo se desprende. Um turista chinês dá “oi” em mandarim. “Tudo o que falamos está acontecendo agora, ao mesmo tempo”, diz Astrid. “A baía cheia de turistas, o gelo quebrando…”

O que será que o pinguim diante de nós está pensando, penso eu?

A cena me comove. Nós, animais humanos, pelas mais diversas razões, ocupamos tudo. Debatemos muito a violência entre nós, a desigualdade de forças. Mas é de outra ordem o que fazemos com os animais não humanos. Como diz a atriz Marion Cotillard, que também viaja no Arctic Sunrise, “os humanos acham que todos os lugares são a casa deles”.

Aqui está a Marion.

Cercado por turistas, em sua casa que agora derrete, um pinguim macho busca uma pedrinha com o bico e, com toda a delicadeza, a deposita no ninho. Ele deve sentir a insegurança do seu mundo, ele talvez preferisse não ser observado, ele não tem escolha. Então faz o que sabe. Coloca a pedrinha no ninho para garantir a sobrevivência de sua espécie.

É uma pequena cena num universo que derrete. De certo modo, o que grande parte de nós faz é botar pedrinhas no ninho. Atrapalhados, desconexos, às vezes ignorantes, nós desesperadamente tentamos botar a pedrinha no ninho enquanto nosso mundo se desmancha. Às vezes tudo o que nos mantêm vivos é justamente botar a pedrinha no ninho enquanto nossos conterrâneos elegeram um déspota para nos governar, enquanto um novo vírus aparece na China, enquanto Donald Trump brinca de guerra, enquanto a Antártida degela e o nível do mar ameaça engolir cada vez mais pedaços do que poucos anos antes era terra firme.

Esta talvez seja a dificuldade com que nos deparamos para enfrentar a crise climática. Não somos pinguins. Possivelmente seria melhor para todas as outras espécies se fôssemos. O planeta certamente estaria melhor sem os humanos. Nossa espécie causou a crise climática. Então, fazer apenas o que sabemos, fazer apenas o que precisamos para sobreviver a cada dia, e eu sei que para muitos esta é uma tarefa quase acima de suas forças, não é suficiente.

Somos responsáveis pelo que nossa espécie provocou, ainda que seja desigual a colaboração de cada um no superaquecimento global. Fazer algo, como mudar hábitos de consumo e pressionar os governos para realizar políticas públicas para conter a fornalha do planeta é obrigação ética. Se a ética não for importante para alguns, é necessário perceber que não há escolha. O colapso climático que os humanos causaram atingirá todos os humanos. Ainda que muito mais e primeiro os que são menos responsáveis por ele, atingirá a todos. O chamado da crise climática é o chamado para sermos melhores. Este é um daqueles momentos. Daqueles momentos em que viver exige muito. Temos que seguir botando a pedrinha no ninho, mas temos que também fazer mais do que isso. Todos nós. Juntos.

Não quero deixar vocês com That’s the way. Haha Haha Haha I like it. Então vou falar de Tim Lewis. Biólogo marinho freelance, Tim é um escutador de baleias. As baleias sofrem com a poluição sonora dos oceanos. Escutando com Tim, sabemos o quanto os motores dos navios, barcos e botes, e também os geradores, poluem os mares. Há ainda os sonares militares. A contaminação sonora confunde a comunicação das baleias, assim como o seu senso de direção. Episódios de mortes de várias baleias bicudas (Beaked Whales) ao mesmo tempo já foram conectados por cientistas ao uso de sonares militares no Reino Unido. Cientistas também pesquisam se, devido ao excesso de barulho, algumas delas não voltam rápido demais à superfície e tem um aneurisma cerebral. Na Antártida, o número de navios de turistas mostra que Haha Haha Haha I like it é o menor dos problemas delas.

Algumas espécies de baleias sofrem mais do que outras. Penso que, para as mais sensíveis, a invasão humana dos oceanos transformou o cotidiano numa espécie de rave permanente em termos de ruído. Tim as escuta pelo mundo todo. Os golfinhos têm um vocabulário próprio, cada indivíduo pode ter sua própria assinatura ou identidade. As baleias são identificadas pelos clãs. Quando viajam juntas, elas aprendem. Um clã pode incorporar frases de outros. Passam a ser elas e também outras depois de terem vivido a experiência de estarem juntas.

Tim é um homem extremamente gentil. Do tipo que pisa com cuidado mesmo dentro do navio, para não perturbar ninguém, e está sempre pronto a ajudar alguém a tirar as botas de expedição, uma pequena tortura cotidiana. Quando escuta o fundo do mar, seu rosto muda de expressão várias vezes. Penso que, como Dori, a personagem da animação Nemo, da Pixar, Tim fala baleiês. Ou melhor. Escuta.

Este é Tim, o escutador de baleias.

Não conseguimos ouvir baleias até agora. Não chegamos perto o suficiente de nenhuma delas. Na terça-feira, Tim escutou o fundo do mar diante de um iceberg, a 20 metros de profundidade. Há tanta vida no fundo do mar. Me lembrou uma vez, em 2007, quando fiz uma meditação vipássana de 11 dias e descobri um corpo que era meu mas não conhecia. Havia tanto movimento e ruído e vida dentro de mim, e eu tinha vivido mais de 40 anos sem me ouvir. O oceano é assim, cheio de ruídos que desconhecemos. Como a floresta amazônica. Em nenhum desses mundos há silêncio. Há vozes de coisas vivas, há uma diversidade de cantos e de movimentos. Não identifico o que escutei, mas tenho outras palavras dentro de mim agora. Gosto de saber que algumas delas seguirão para sempre desconhecidas. Acho importante conviver com o desconhecido de mim e de fora de mim. Em parte, escrevo para cada vez mais me faltarem palavras para nomear a vida.

Levo esse som comigo para que vocês também possam escutá-lo quando eu voltar com ele. E estranharem. E se maravilharem pelo estranhamento. Por enquanto, fechem os olhos e tentem imaginar o fundo do mar antártico com os ouvidos. A capacidade de imaginar o que ainda não existe é nosso maior talento como espécie. É de imaginação que também precisamos para voltar a imaginar um futuro onde possamos viver sem submeter as baleias a That’s the way. Haha Haha Haha. I liked it.

Até breve. Espero. O navio se agita sobre o mar. Logo alcançaremos o outro barco do Greenpeace. O nome dele é Esperanza.