O pássaro sobrevive, mas a um preço que não enobrece ninguém.

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Naomi Klein é uma escritora talentosa e há poucas dúvidas sobre o problema que ela identifica. Anos de afirmações de céticos quanto ao aquecimento mundial obscureceram a compreensão pública sobre o que os cientistas estabeleceram em relação às ”, escreve Pilita Clark, jornalista, em artigo publicado pelo Financial Times e reproduzido pelo jornal Valor, 14-10-2014. A tradução é de Sabino Ahumada.

 

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/536333-o-passaro-sobrevive-mas-a-um-preco-que-nao-enobrece-ninguem-

 

 

Eis o artigo.

A Nature Conservancy, criada há 63 anos, é um colosso entre os grupos ambientais. Com cerca de US$ 6 bilhões em ativos e 3,6 mil funcionários, é renomada por manter milhões de acres de reservas para proteger a natureza selvagem da destruição trazida pelo desenvolvimento. Portanto, soou como boa notícia que uma empresa petrolífera tenha lhe cedido, nos anos 90, terras no Texas onde habitava um dos pássaros com maior risco de extinção na América do Norte, um tetraz-das-pradarias.

Imagine a consternação quando, mais tarde, veio à tona que a Nature Conservancy estava enchendo seus cofres ao deixar que uma empresa de e gás perfurasse um poço num lugar de preservação. “Para conservacionistas tradicionais”, escreve Naomi Klein em seu novo e provocador livro “This Changes Everything“, “foi um pouco como descobrir que a Anistia Internacional havia aberto sua própria ala prisional em Guantánamo“. E apesar da subsequente promessa da Nature Conservancy, em 2003, de que não permitiria novas perfurações, Naomi revela que a organização ainda ganha dinheiro com um poço nas terras do Texas – algo que diz lamentavelmente ter de aceitar para honrar acordos legais anteriores, como havia indicado que poderia ser necessário na época.

Esse caso evidencia, segundo Naomi, a verdade dolorosa por trás do “fracasso catastrófico” de algumas organizações ambientais no combate à indústria dos combustíveis fósseis, responsável pelo aumento das emissões de gases causadores do efeito estufa. “Grandes partes do movimento, na verdade, não vêm combatendo esses interesses – fundiram-se a eles”, escreve, destacando grupos “verdes” que aceitaram doações ou parcerias da indústria de combustíveis fósseis ou convidaram executivos do setor para seus conselhos de administração. Não é coincidência, sugere Naomi, que muitas organizações ambientais também tenham defendido políticas climáticas que são as menos impactantes para a indústria de , incluindo mercados de carbono generosamente concebidos e o uso de gás natural como uma ponte de transição para um sistema de energia mais limpa.

A denúncia contra esses grupos em “This Changes Everything” é um motivo pelo qual o livro deverá receber muito mais atenção do que as obras típicas sobre mudanças climáticas. Naomi é uma das figuras mais influentes da esquerda e uma proeminente ativista contra as mudanças climáticas. Vê-la atacando organizações “verdes” com tanto vigor é, tomando sua retórica emprestada, um pouco como ver o papa divulgar uma encíclica contra os católicos.

O alvo central do livro, no entanto, é algo muito maior do que elementos dentro do movimento ambiental que são pró-empresas. Em conformidade com seu primeiro sucesso de vendas, o antiempresarial “Sem Logo” (de 1999), e com “A Doutrina do Choque” (2007), uma crítica às políticas econômicas de livre mercado, “This Changes Everything” é uma convocação às armas contra o do século XXI. A diferença é que, desta vez, Naomi toma as mudanças climáticas como arma para a luta.

Sua tese é que o movimento climático foi vítima do “timing”. Cientistas chegaram a uma opinião decisiva sobre os perigos do aquecimento mundial nos anos 80, uma década em que a fé no poder dos mercados livres de restrições decolou e ficou mais difícil do que nunca argumentar a favor da regulamentação e de um papel mais forte do Estado.

Agora, Naomi argumenta, a crise climática que se aproxima criou uma “oportunidade histórica” para se atacar a , a privatização e outros aspectos de um modelo econômico que está fundamentalmente em divergência com um saudável. Da mesma forma que os desastres da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial conduziram a uma série de reformas sociais e econômicas, desde as aposentadorias até as moradias públicas, Naomi espera que a ameaça climática estimule um movimento na sociedade para reanimar um forte intervencionismo no mercado.

Esse, claro, é precisamente o tipo de mentalidade que alguns escritores conservadores há muito sustentam ser a base do movimento climático “melancia” (verde por fora, vermelho por dentro), recheado de socialistas disfarçados buscando levar adiante seus propósitos ideológicos. Quanto a isso, Naomi é franca: “Há muito tenho grande preocupação sobre a ciência do aquecimento mundial – mas fui impulsionada a ter um engajamento mais profundo, em parte, porque percebi que poderia ser o catalisador de formas de econômica e social nas quais sempre acreditei”.

Os conservadores, também, argumenta a autora, veem o aquecimento mundial em termos políticos, reconhecendo que potencialmente “detona” seu palanque ideológico, de impostos baixos e pouca regulamentação. E quanto a isso, escreve, eles não poderiam estar mais iludidos do que os líderes ambientais que pensam poder salvar o mundo com “pequenos ajustes na forma usual de se fazer negócios”.

Basta olhar para a elevação incontida das emissões de carbono, apesar dos esforços desses lideres e de bilionários “verdes” como Richard Branson, que em 2006 comprometeu-se a gastar US$ 3 bilhões nos dez anos seguintes para combater as mudanças climáticas – promessa que mostra dificuldades em cumprir. Esse caminho benéfico às empresas é um fracasso comprovado, diz Naomi. “O problema é que não há outra década para perder depositando esperanças nessas ações secundárias”.

Naomi é uma escritora talentosa e há poucas dúvidas sobre o problema que ela identifica. Anos de afirmações de céticos quanto ao aquecimento mundial obscureceram a compreensão pública sobre o que os cientistas estabeleceram em relação às mudanças climáticas. A opinião dos cientistas, no entanto, é clara desde 1990, ano em que a principal autoridade mundial sobre o clima, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), da Organização das Nações Unidas (), publicou a primeira de cinco profundas avaliações científicas, de palavras cuidadosamente escolhidas, sobre o que se poderia afirmar quanto ao aquecimento mundial. Todas concluíram que as emissões resultantes das atividades humanas aumentam as concentrações atmosféricas de gases causadores do efeito estufa e aquecem a superfície da Terra.

Ainda assim, os argumentos de Naomi quanto às razões de os líderes terem deixado de responder adequadamente nem sempre são persuasivos. Ela destaca que, durante os anos em que os governos foram incapazes de aprovar uma estrutura legal rigorosa para impor a redução das emissões de gases causadores do efeito estufa, eles conseguiram criar regras e penalidades claras na Organização Mundial do Comércio (OMC). Os membros da OMC, no entanto, também passaram mais de dez anos tentando, sem sucesso, concluir um acordo mundial para reduzir tarifas, como parte das igualmente tortuosas negociações da “rodada de Doha“, em grande parte por diferenças entre os países ricos e as economias emergentes, que atrapalharam da mesma forma as negociações climáticas.

Algumas de suas prescrições sobre como mudar o mundo para uma baseada em fontes renováveis de energia – acabar gradualmente com os subsídios aos combustíveis fósseis; elevar o preço do carbono – são precisamente o que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entre outras instituições, vêm propondo há muito tempo.

Seu livro foi lançado no mesmo dia que um estudo encomendado pelo Reino Unido e outros seis países, no qual se argumenta que a redução de custo da energia de fontes renováveis e outras mudanças significa que as alterações climáticas agora podem ser combatidas sem sacrificar o crescimento econômico – e muito menos todo o edifício do capitalismo.

Naomi diria que não temos mais tempo para descobrir se prescrições centristas como essa vão funcionar. Um centrista poderia dizer que, para descobrir, não temos tempo para esperar que o capitalismo seja desmantelado. Mas quanto mais o mundo esperar por qualquer resposta significativa contra as mudanças climáticas, mais convincentes os argumentos de Naomi vão se tornar.

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