”O papa se equivoca na sua crítica ao capitalismo”.

O melhor do é a sua arte de se transformar. Ele é e continua sendo work in progress. O capitalismo ao qual Marx dedicou a sua obra não existe mais. É um alvo de papelão. A opinião é de Josef Joffe, editor-chefe do jornal alemão Die Zeit, membro do Instituto de Estudos Internacionais Freeman Spogli, da Universidade de Stanford, e membro do Instituto Olin de Estudos Estratégicos, da Universidade de Harvard. O artigo foi publicado no jornal Die Zeit, 28-11-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

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Eis o texto.

O capitalismo é maravilhoso – uma maravilhosa superfície de projeção, sobre a qual se pode descarregar todos os males do mundo, justamente como recém-fez Francisco na sua exortação apostólica Evangelii gaudium (A alegria do Evangelho). Para ele, “capitalismo” se combina com o adjetivo “desenfreado” e, portanto, com a “tirania do mercado divinizado”, que mostra apenas equívocos e injustiça.

Mas o que é o capitalismo? Segundo uma simples definição posterior a Karl Marx e a Max Weber, é um sistema econômico que se baseia na propriedade privada dos meios de produção e na possibilidade de liderança através do mercado – ou seja, o jogo entre oferta, demanda e preço. O motor é a aspiração ao lucro.

Considerado de modo separado, o capitalismo se identifica com a modernidade a partir do feudalismo – com um interlúdio fracassado chamado de comunismo soviético. No feudalismo, os principais meios de produção pertenciam a príncipes, reis e prelados – até mesmo os seres humanos que constituíam a servidão da gleba.

No bolchevismo, fábricas, bancos e entidades pertenciam ao Estado. Não se podia falar em justiça em nenhum dos dois sistemas. O miserável excedente que daí derivava ia para os nobres ou para a Nomenklatura. Ambos os sistemas foram legitimamente varridos do mapa.

Teve-se uma riqueza que crescia astronomicamente somente com a interação entre capitalismo e energia das máquinas. Há 150 anos, Francisco teria atingido, com o seu documento de luta, uma imagem real do capitalismo, mas esse horror já foi condenado abertamente e de maneira ainda mais clara por Charles Dickens e Gerhart Hauptmann.

Desde então, muita água passou por debaixo da ponte. Aquele capitalismo, ao qual Marx dedicou a sua obra, não existe mais. É um alvo de papelão.

Por quê? Porque, nesse meio tempo, o Estado e o capital dividiram entre si o mercado fraternamente. Na Europa, o Estado leva cerca da metade do que o mercado produz. Um terço é constituído por transferências do rico Pedro ao pobre Paulo. Cartéis, trustes e monopólios, que até o século XX obtinham rendas de sonho contra o mercado, foram destruídos pela mão de ferro do Estado.

Exploração? Contra isso, existem os sindicatos e as leis trabalhistas. Desigualdades? Se o papa fosse olhar a tabela do coeficiente de Gini, que mede a distribuição de renda, ele não teria tanta certeza assim. Na Europa Ocidental, esse coeficiente chega, deduzindo as transferências e os impostos, a 0,3 (onde zero seria a perfeita igualdade e 1 a perfeita desigualdade); na Europa Oriental e na América do Norte, é um pouco mais alto.

Quando Sócrates foi questionado sobre o que ele achava da sua iracunda esposa Xantipa, ele respondeu laconicamente: “Em comparação com quem?”. O mesmo vale para o capitalismo: em comparação com o quê? Com Cuba, com a Venezuela, com a Arábia Saudita? Com o cleptocapitalismo da Rússia? Com todas as economias de Estado que desapareceram no século XX?

Restam os obscenos lucros que agora, assim como antigamente, são obtidos no mercado financeiro. Ou por atletas de certos esportes ou por estrelas de cinema, aos quais estranhamente nós concedemos as suas dezenas de milhões. Mas nós não aboliremos tais distorções do mercado abolindo o capitalismo, o motor mais poderoso que o homem inventou.

O mesmo vale para as crises financeiras: a desvalorização do dinheiro já tinha sido elaborada até mesmo pelos imperadores romanos e espanhóis para esconder a sua política de exploração.

O melhor do capitalismo – e digo isto absolutamente em um tom não irônico – é a sua arte de se transformar. Ele é e continua sendo work in progress.

Às vezes, ele se reforma por conta própria, outras vezes é o Estado que intervém, assim como ele faz desde os tempos da invenção da máquina a vapor. Se alguém, porém, como o papa parece sugerir, manda o capitalismo ao inferno, não ganhará com isso nem bem-estar, nem igualdade. Há muitos exemplos disso na história. “Reparatur ist die beste Remedur” (reparar é o melhor remédio).

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