Quem conhece os métodos de motivação para enriquecer em um mundo em estado de demência sabe que a paródia de Scorsese não é tão paródia assim. O comentário é de Matheus Pichonelli em artigo publicado pela Carta Capital, 23-01-2014, sobre o filme O Lobo de Wall Street.
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Foto: The Wolf of Wall Street/Divulgação.
Eis o artigo.
Uma das vantagens de ser rico, explica Jordan Belfort, personagem de Leonardo DiCaprio, logo no início de O Lobo de Wall Street, é que o dinheiro nos permite ser qualquer coisa na vida, inclusive uma boa pessoa. A sentença, dita em tom de deboche, é exposta quando o jovem milionário faz menção ao dinheiro empregado em obras de caridade enquanto circula em uma rotina festiva, com iate, carros de luxo, prostitutas, bebidas e drogas – para relaxar e para acelerar.
É a primeira das muitas confissões que, mais do que o personagem, falam sobre um universo a ser dissecado. Como em outros filmes de Martin Scorsese, a história da ascensão e queda de um império, baseada no livro e autor homônimos e fatos reais, é narrada por dentro. O fio-condutor é a fala do personagem principal, novamente um jovem deslumbrado com a possibilidade de alçar voos mais altos do que o desenhado em um destino pré-definido. É como se Belfort fosse uma extensão, ou uma nova versão, de uma figura conhecida dos filmes de Scorsese, como Henry Hill, o personagem de Ray Liotta que se aproxima dos chefões da máfia em Os Bons Companheiros, ou Sam Rothstein (Robert de Niro), responsável por fazer rodar a máquina do jogo em Casino – no qual, aliás, há uma fala parecida com a de DiCaprio sobre as benesses da aposta: “Eu deveria estar preso, mas aqui recebo homenagens e condecorações”.
Há muito em comum entre os personagens. Todos são talentosos, hábeis, manipuladores, chegam aonde querem e se enriquecem à base do vício e de uma vida particular desregrada. Por meio deles, e de uma fala didática sobre a engenharia do crime, há um convite para conhecer por dentro uma engrenagem. Dessa vez, o mundo a ser descoberto está, a princípio, legitimado. Sai o submundo dos gangsters dos filmes anteriores e entra em cena um endereço nobre: Wall Street.
É ali que a legalidade e a ilegalidade se encontram. É ali também que os personagens, entre medicamentos para acelerar e desacelerar a adrenalina, andam em linha tênue entre a loucura e a sanidade.
Indicado aos principais prêmios do Oscar (melhor filme, melhor diretor, melhor ator e melhor ator coadjuvante, para Jonah Hill), O Lobo de Wall Street não é uma leitura sobre a crise – nem financeira nem humana –, embora ela esteja ali, como uma sombra. É, antes de tudo, uma paródia de um período desumanizado.
De cara, Belfort deixa claro que escrúpulo é piada pronta para quem quer vencer na vida. E vencer na vida para ele – e para muitos que decidem o destino do capital – não é encontrar a cura para o câncer, para a fome ou para a guerra. É simplesmente andar em carro de luxo, poder jogar dinheiro de cima de um iate e poder comprar o que ou o quem quiser, inclusive a esposa e os amigos.
Em uma das cenas, quando começava a despontar como milionário, Belfort é interpelado por um desconhecido que quer saber com o que trabalhava, quanto ganhava por mês e como conseguiu comprar um carro de luxo em tão pouco tempo. A conversa aparentemente surreal sobre dinheiro, sucesso e automóveis é a porta de entrada para que o estranho, Donnie Azoff (o personagem de Hill), se transforme em amigo e braço direito de Belfort em sua própria corretora de valores (os outros aliados, a exemplo dele, não entendem bulhufas de economia, mas sabem como poucos vender o produto: não por acaso, são recrutados no mercado de drogas). Donnie é, de todos, o personagem mais caricatural: é insolente, irresponsável, interesseiro, vazio, atrapalhado. Leva Belfort à beira da ruína o tempo todo ao menor sinal de explosão.
É, em resumo, uma anta que soube bajular as pessoas certas para conseguir o que queria: ganhar dinheiro. Por isso mesmo trata-se do mais verossímil dos personagens (e funciona quase como um alerta ao espectador em relação àquele primo ou amigo distante que te encontra uma vez por ano e faz perguntas sobre o seu contracheque antes de desandar a falar de automóveis, imóveis e lucros que vocês poderiam aferir se montassem uma parceria).
Em seu quinto filme com Scorsese, DiCaprio, um dos favoritos para levar a estatueta de melhor ator, consegue levar à tela a essência de um estado de demência. E este estado de loucura premente corre em paralelo com o caminho da riqueza. No início, ele é o jovem sonhador que veio de baixo, deslumbrou-se com um mundo de ostentação (palavra em voga) e criou o seu próprio camarote (afinal, como já ensinou um certo novo rico dos lados de cá, quem não gosta de andar bem vestido, com carro de luxo e cheio de amigos a estourar champanhe em nossos dentes?).
Para isso, bastou um único dia: o dia em que conseguiu um emprego em Wall Street e teve contato com Mark Hanna (Matthew McConaughey), chefe de uma corretora que o convida para almoçar, tomar drinks e, gratuitamente, o ensina a sobreviver naquele meio, algo alcançável apenas quando se age como um animal. A partir disso, será fácil pautar os humores do mercado de ações e definir os rumos da economia. Não é preciso produzir um só parafuso, alerta o corretor. Basta vender ações cretinas, de empresas cretinas, para compradores cretinos que consultarão suas famílias cretinas acerca dos riscos e cretinamente ficarão satisfeitos com a valorização de papeis dos quais, graças a Belfort e seus escrúpulos, jamais serão resgatados. “Eles não verão a cor do dinheiro, os únicos que ganham nessa somos nós, que levamos para casa a nossa comissão. A única coisa a fazer é entretê-los e convencê-los a comprar outras ações, e outras, e outras, até o infinito”, ensina Hanna.
Absorvida a lição, Belfort cria sua própria corretora, cerca-se de asseclas e enche a sala de funcionários para fazer funcionar uma engrenagem cuja matéria-prima é o carreirismo e a ambição. No topo disso tudo está um jovem em estado de demência, mas que soube decodificar as regras da sociedade do espetáculo. Não importa o que faça na vida privada: ele será sempre o líder, o exemplo, o vencedor, o gênio (Não é de se estranhar que na capa dos livros sobre sucessos empresariais estejam tantos lobos travestidos de empreendedores). Diante da plateia formada pelos empregados, Belfort se comporta como um misto de messias, líder religioso, palestrante motivacional e apresentador de tevê.
Para enganar quem está recrutado para enganar os acionistas, é preciso transformá-los em animais: animais que choram, aplaudem e glorificam o líder da alcateia como se ele, de fato, fosse não um ser humano comum, mas um líder capaz de abrir caminho pelo mar e andar. Quem conhece os métodos motivacionais das grandes empresas e seus cultos ao culto à personalidade de seus líderes sabe que a caricatura desenhada por Scorsese não é tão caricatura assim. Pode produzir risos, mas a tragédia é latente. No universo da máfia, o crime só compensa quando alguém tenta passar a perna em alguém; no mercado financeiro, a enganação é a mola-propulsora. Ganha quem engana melhor.
Culpa? Escrúpulos? Senso de responsabilidade?
Isso é para os fracos. Para os humanos.