O marco temporal de 1500

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Raoni Paris

Chef Raoni à Paris

Por RUBEN CAIXETA DE QUEIROZ*

01/09/2021

E se os indígenas tivessem invadido a Europa?

Imagine o leitor se, por destino da história, não tivessem sido os europeus aqueles que chegaram e invadiram por volta de 1500 as Américas, habitadas por milhões e milhões de povos indígenas, mas, ao contrário, estes tivessem chegado na Europa e dominado o velho continente? O que teria acontecido? Difícil prever, mas dá para pensar que talvez o planeta terra (e a própria humanidade) não estivesse à beira do colapso e da extinção, e os índios não precisassem, hoje, estar brigando para “adiar o fim do mundo”.

É provável que a terra não teria sido escavada e desenterrada para extrair e outros minérios, e nosso planeta não teria sido tão aquecido! É provável que o conceito de humanidade entre nós seria outro, todos (humanos e não-humanos) seriam parte da “natureza”, como disse Ailton Krenak, ou que a humanidade fosse uma condição extensiva ao que o ocidental formulou como seres naturais, animais, inanimados ou sem alma”. Enfim, que nós, humanos, pertencêssemos ao mundo, e não que o planeta terra fosse uma coisa a ser apropriada, expropriada, escavada, sangrada, matada!

Porém, não foi isso o que aconteceu, os europeus foram aqueles que invadiram a América, trouxeram doenças, semearam a guerra, escravizaram, exterminaram a maior parte dos nativos e, por fim, tomaram posse do seu território! Depois disso, de muita peleja, em alguns casos, resolveram fazer certas concessões, medidas reparatórias, do tipo, dar um pedaço de terra para que os sobreviventes indígenas ali vivessem de “acordo com seus costumes e tradições”!

Contudo, alguns dos defensores dos direitos dos colonizadores voltam a insistir, em 2021, que o direito reparatório deve ir até somente os indígenas se integrarem ao mercado e ao modo de vida capitalista e ocidental. Outros insistem em relativizar o direito dos indígenas, restringindo a demarcação do seu torrão de terra somente no caso onde estivesse ocupado por eles em 1988, é o tal marco temporal. Uma espécie de “teoria de Copacabana”, dita por algum juiz ou fazendeiro ou juiz-fazendeiro, temendo que um dia, devido ao suposto “direito ilimitado” dos indígenas, eles pudessem reivindicar a retomada não só da sua terra atualmente ocupada, mas da outrora (quando era dos índios) maravilhosa terra do Rio de Janeiro.

Parece que esta tese de Copacabana apareceu pela primeira vez num jornal de 1950, foi retomada num julgamento do STF em 2014, e reaparece agora no discurso ruralista a favor do marco temporal. Numa nota da Frente Parlamentar da Agropecuária, numa maneira de pressionar e aterrorizar a mais alta corte do país no momento em que é apreciado o recurso com repercussão geral (RE 1017365), pode-se ler: “Caso não haja, em pleno século XXI, uma data limite de demarcações, qualquer área do território nacional poderá ser questionada sem nenhum tipo de indenização, inclusive áreas de grandes metrópoles, como Copacabana, no Rio de Janeiro. O Supremo Tribunal Federal tem a oportunidade de garantir a segurança jurídica, com a resolução dos conflitos, ao equilibrar o direto de todos os cidadãos brasileiros, evitando excessos no processo de ‘autodemarcação', que leva a tensão no campo.”

Ora, caros ruralistas, sabemos que vocês querem mesmo é expulsar os indígenas de suas terras para contratá-los como boias-frias nas suas lavouras, não precisam ficar assustados, pois, como disse o jornalista Rubens Valente, se a “teoria de Copacabana” sempre aparece para assustar o país, ela é insustentável por dois motivos básicos: nenhum indígena reivindica Copacabana, nem a praça da Sé em São Paulo;se reivindicar, não precisa ser doutor em direito para supor que a chance de perder passa dos 1.000%.

Caros ruralistas, não queiram turvar o debate para turbar os direitos indígenas! A recusa da tese do “marco temporal” não levaria de forma alguma a uma demarcação de todas as terras indígenas, pois para isso todas precisariam passar por um longo e rigoroso processo legal e administrativo, regulado pelo decreto 1775/96. No geral, tais processos somente são concluídos após décadas, como eu mesmo já tive a oportunidade de coordenar dois deles a serviço dos indígenas e do Estado brasileiro, pois necessitam levar em conta estudos profissionais, pesquisas históricas e de campo, cartorial, e, ainda, abrir no seu andamento oportunidade de contestação para qualquer pessoa ou parte da sociedade. No final, muitos deles ainda são levados à – e ali se arrastam por outras décadas!

Como se vê, trata-se de um processo muito mais exigente e demorado do que aquele que está abrigado na legislação infraconstitucional ou aquele que está em curso nos projetos de lei em aprovação no congresso nacional (como o PL 2633/20 ou o PL 490/07), relativos à propriedade privada na área rural, passíveis de regularização sem vistoria prévia, bastando, isso mesmo, a análise de documentos e de declaração do ocupante de que segue a legislação ambiental. Em alguns casos, não há sequer vistoria do Instituto Nacional de Colonização e (Incra), o ocupante não-indígena basta dizer que esteve na área antes de 2008! Ora, não precisaria dizer que esta ocupação (invasão) foi feita, no mínimo, sobre uma terra indígena (pois o todo foi Terra Indígena), em muitos casos sobre terras públicas na forma de unidades de conservação ou de reserva aos povos tradicionais!

Quando se fala que os índios, para o direito pleno sobre as terras que ocupam, precisam provar estar ali presentes em 1988, é legítimo nos perguntar: e quando eles foram expulsos de forma violenta de seus locais de habitação e/ou foram vítimas dedeslocamentos forçados? Exemplos? Há centenas deles, cito um, o dos Xokleng, em Santa Catarina, que, a partir de 1850, foram caçados e expulsos de suas terras pelos colonos alemãs sob o comando de Hermann Bruno Otto Blumenau, como está escrito no livro Die If You Must de John Hemming.

Valdelice Tupinambá: “Somos os verdadeiros donos deste Brasil. Não estávamos aqui [somente] em 1988, mas desde antes de 1500”.

Eduardo Viveiros de Castro: “A ‘tese' do marco temporal visa não apenas congelar a situação de expoliação territorial dos povos indígenas reconhecidos pelo Estado em 1988, como invalidar a condição indígena dos povos que só a tiveram reconhecida após (e por causa de) a promulgação da Constituição”.

Os ruralistas de hoje devem ter inveja e se sentirem herdeiros de Oliveira Viana, ministro do TCU, membro da Academia Brasileira de Letras, que, na Introdução do Censo de 1920, publicada pelo Ministério da em 1922, fez um elogio rasgado ao genocídio dos povos indígenas, exaltando a obra civilizadora do bugreiro (apressador de indígena) e do grileiro.O historiador Paulo Ignácio Corrêa Villaça (2010) cita uma passagem do livro A evolução do povo brasileiro, de Oliveira Viana, na qual o autor, na pegada dos defensores da grande propriedade, defende a apropriação ilegal das terras no oeste paulista: “Nessa obra de conquista civilizatória da terra, o bugreiro vence o obstáculo material, que é o índio nômade, povoador infecundo da floresta infecunda. Há, porém outro obstáculo jurídico, que é o direito de propriedade (…). É ao grileiro que cabe resolver esta dificuldade. É ele que vai dar ao colonizador progressivo, cheio de ambições e de capitais, o direito de explorar este tesouro infecundo. Para isso cria, pela chicana e pela falsidade, o indispensável título de propriedade. O bandeirante antigo, preador de índios e preador de terras, rude, maciço, inteiriço, brutal, desdobra-se pela própria condição do meio civilizado em que reponta e faz-se bugreiro insidioso, eliminador do íncola inútil, e grileiro solerte, salteador de latifúndios improdutivos. Exerceram ambos, porém, duas funções essenciais à nossa obra de expansão colonizadora: e a ferocidade de um e a amoralidade de outro tem assim, para excusá-las, a magnitude incomparável dos seus objetivos ulteriores”.

*Ruben Caixeta de Queiroz é professor titular de antropologia na UFMG.

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