A filósofa francesa Séverine Kodjo-Grandvaux em evento em Saint Louis, Senegal, em 27 de janeiro.PAULO TOSCO
https://elpais.com/planeta-futuro/2022-02-01/el-hombre-europeo-busco-ser-el-centro-del-mundo.html
Saint-Louis, Senegal – 01 de fevereiro de 2022
Em seu último ensaio, a filósofa francesa Séverine Kodjo-Grandvaux relaciona os conceitos de ecologia e colonialismo e propõe uma relação individual e coletiva mais consciente com o universo: o Ocidente deve repensar os modos de ser e estar com outras populações.
Séverine Kodjo-Grandvaux é uma filósofa francesa de 45 anos, associada ao Laboratório de Estudos e Pesquisas da Lógica Contemporânea da Filosofia (LLCP) da Universidade de Paris 8, que realiza parte importante de seu trabalho em conexão com grandes pensadores africanos como Felwine Sarr, Achille Mbembe ou Souleymane Bachir Diagne. Autora de African Philosophies (Présence Africaine, 2013), e co-editora do livro Law and Colonization (Bruylant, 2005), Kodjo-Grandvaux foi responsável pelas páginas de cultura da revista Jeune Afrique, e atualmente é jornalista do principal jornal francês, Le Monde, no qual escreve sobre questões relacionadas ao racismo, pensamento e cultura.
Seu último livro, Devenir Vivants (Edições Phillipe Rey), publicado no ano passado, é um ensaio ecológico que ainda não foi traduzido para o espanhol (nt.: nem para o português). Nem a tarefa será fácil. O título, literalmente, seria algo como “tornar-se vivo ou reconverter-se em seres vivos”, fórmula que afastaria a pergunta que o autor faz à humanidade: é necessária uma consciência coletiva do nosso vínculo com o universo. “Nós somos cosmos”, diz ela.
No dia 27 de janeiro, ela participou de um encontro organizado pelo Instituto Francês de Saint Louis, no norte do Senegal, sob o título Reconstruindo Juntos: Responsabilidade Individual para Alcançar um Futuro Humanista e Sustentável, e essa entrevista aconteceu lá. Rigorosa e simpática, ela brinca ao se deparar com um rato que cruza seus pés no meio da conversa: “Isso é convivência mesmo!”
Pergunta: Em seu último ensaio, você lida com a questão da ecologia traçando a história colonial europeia. Como esses temas estão conectados?
Resposta: Abordei o tema após a segunda edição dos Ateliers de la Pensée (oficinas de pensamento) – uma iniciativa dos pensadores Felwine Sarr e Achille Mbembe para debater questões contemporâneas da África – que tratou da condição planetária e política dos seres vivos. Não pensei que me levaria de volta à memória da história colonial, que é minha. O ponto de partida é que na história da humanidade sempre existiu o desejo de colonizar as populações vizinhas, mas só na modernidade essa ambição se espalhou pelo planeta, e da Europa os homens partiram para dominar o mundo inteiro: América do Norte, América do Sul, Austrália, África e Ásia.
Interessou-me saber de onde surgiu esse novo excesso na história, e percebi que, além da perspectiva econômica (que coincide com o nascimento do capitalismo, e a necessidade de novos mercados e novas terras para cultivar) havia um psicológico fator. É o momento da descoberta do heliocentrismo, que Freud descreve como a “primeira ferida narcísica”: o homem não é o centro do universo. O que se observa, do ponto de vista das ideias, é que há um recuo na Terra: como ela não pode ser o centro do universo, o homem europeu busca ser o centro do mundo. Para isso, ele faz uma distinção entre a ordem natural e a cultural, e se distancia da natureza para controlá-la e explorá-la.
Na história da humanidade sempre existiu o desejo de colonizar as populações vizinhas, mas só na Modernidade essa ambição se estendeu ao planeta.
P: Que consequências teve?
R: As primeiras populações a serem identificadas como “parte” da natureza na Europa são as mulheres, aludindo ao seu vínculo orgânico com o universo, com a terra, com os ciclos lunares… Há páginas exageradamente violentas de filósofos da época, como Francis Bacon, que justifica queimar bruxas e torturar mulheres em nome da ciência por impedir o conhecimento e o progresso matemático.
Da mesma forma, a curiosidade que leva os europeus a percorrerem o mundo que rapidamente se transforma em desejo de conquista, explorando os recursos naturais dos territórios que alcançam: ouro, madeira… mas também das populações que habitam essas outras terras ainda ligadas à ordem natural. E, portanto, exterminável ou explorável.
Quando começou o tráfico de escravos, em francês os carregamentos de escravos eram designados como “madeira de ébano” e acho que é muito simbólico porque as pessoas são chamadas de natureza: por serem madeira, podem ser cortadas de suas raízes, carregando em um navio, deportação… A humanidade é degradada a um estado vegetal ou animal, pondo em movimento um sistema perverso de habitar o mundo, que se desenha na Europa, mas se expande por todo o planeta.
P: Até que ponto o dano causado por essa história passada ainda está presente?
R: O tráfico de escravos e a escravidão não foram um acidente ou um erro do capitalismo: estão intrinsecamente associados e se alimentam. O sistema que eles criaram, particularmente os sistemas bancário e de seguros, tremendamente desiguais e destrutivos, foi lançado nessa época e continua até hoje. Outra coisa que herdamos daquele momento histórico são as monoculturas intensivas que foram promovidas nas plantações. As grandes colheitas de algodão, café ou cana-de-açúcar levaram ao desmatamento maciço em regiões como o Haiti, Santo Domingo ou outras áreas do Caribe onde fenômenos naturais devastadores estão causando impactos. Para diminuir o impacto destrutivo da humanidade sobre o meio ambiente, é necessário que as populações ocidentais repensem as formas de ser e estar com outras populações, pois ainda continuamos nessa lógica de dominação com a natureza, que se traduz em uma relação de dominação de outros.
P: Você chega à conclusão de que “o mundo está sufocando”. Depois dessa constatação, como seguir em frente?
R: A Europa moderna foi fundada na negação da nossa união com o cosmos, perdendo a consciência de que habitamos uma terra que é um planeta ligado a um universo. Embora continuem a existir caminhos espirituais ou religiosos que mantiveram esta ideia, perderam-se de vista os laços físicos e orgânicos que nos ligam ao cosmos e que experimentamos diariamente: a alquimia que se produz através das plantas para que o ar seja respirável, a necessidade de vitamina D do sol, o impacto da lua nas marés… É preciso trabalhar essa consciência e viver em co-presença com outros seres vivos.
P: Não está em harmonia?
R: Desconfio de discursos que dizem que você tem que viver em harmonia com a natureza, porque a natureza pode ser extremamente caótica e violenta em suas manifestações, como furacões ou pragas de gafanhotos… Você não precisa viver em harmonia com isso, você tem que saber que existem e vivem em copresença. Temos que implementar habitats inteligentes para que a presença humana não agrave esses fenômenos devastadores, como secas ou chuvas torrenciais. A Covid-19 nos conscientizou de que não somos todo-poderosos e nos deu a oportunidade de repensar nossa forma de habitar o planeta.
P: Nessa busca por outras formas de vida, você olhou frequentemente para a África, por quê?
R: As ligações históricas entre os continentes europeu e africano moldaram as populações de ambos os lados do Mediterrâneo. Aposto em questionar esses encontros, que foram especialmente dolorosos e violentos, mas dos quais também deram frutos belas coisas e belas relações. O que proponho não é estar sempre focado em olhar para o que a Europa contribui para África, mas, pelo contrário, abrir-se ao que África pode contribuir para as nossas sociedades europeias. As cosmologias africanas estão ligadas às ecologias primárias que pensam o homem como um dos elementos da natureza, não necessariamente o dominante, mas aquele que, por seu caráter único, tem a maior responsabilidade pelo cuidado com o meio ambiente.
O que proponho não é estar sempre focado em olhar para o que a Europa contribui para África, mas, pelo contrário, abrir-se ao que África pode contribuir para as nossas sociedades europeias.
P: Você acha que na Europa há vontade de aprender com outras vozes?
R: Acho que na Europa existe atualmente uma forte reação de identidade, auto-absorção, medo do novo, do estrangeiro, do diferente, até do próprio vizinho, como vimos com a gestão do covid. Mas há outra corrente que busca alternativas, menos visíveis porque não são experiências pensadas a partir da perspectiva hegemônica ou nacional ou supranacional, mas sim muito locais. Há muitas pessoas que não esperam mais nada do sistema atual e que inventam e questionam “o que é possível”, que experimentam outras formas de fazer as coisas. Chamo-lhes “resistências”: as redes de solidariedade, as pessoas que acolhem os migrantes… podemos estar num ponto chave onde ou vamos piorar, ou as pessoas estão a tomar as rédeas com soluções alternativas.
P: Como jornalista, como você percebe a recepção dessas histórias alternativas na mídia convencional?
R: Nunca me limitei a falar de outras histórias, filosofias ou ideias. Vejo isso também nas reuniões ou debates em que participo: há uma verdadeira sede de conhecimento, há um público disposto a ouvir outras histórias, que se questiona e quer debater outros futuros.
P: No encontro do qual você participa em Saint Louis, você faz alusão expressamente a repensar as relações entre a França e a África. Existe uma vontade real de mudar?
R: Acredito que por parte de alguns meios de comunicação franceses que trabalham com a África há uma consciência da necessidade de mudar as formas de fazer as coisas. Ainda é comum o reflexo colonial paternalista que consiste em pensar que a França vai ajudar os africanos, que mantém essa ideia de superioridade. É preciso admitir que o que a França trouxe ao continente nem sempre foram boas ideias, que houve erros e que, em muitos casos, as soluções apresentadas não correspondiam aos problemas reais.
Encontro filosófico ‘A Noite das Ideias’, organizado pelo Instituto Francês, na cidade de Saint Louis (Senegal). PAULO TOSCO
Esta consciência foi possível porque uma elite africana, como Felwine Sarr ou Achille Mbembe, executou a tarefa de explicar que não está disposta a esperar que a França ou as instituições internacionais lhes digam o que fazer, e que defendem a sua própria soluções. Depois de algum tempo, alguns atores franceses entenderam a mensagem, que corresponde a experiências que tiveram no terreno, e entidades como os Institutos Franceses, as Alliances Françaises ou a Agência Francesa de Desenvolvimento (AFD) viram que não é possível continuar como antes.
A reflexão vai tanto na direção da ação (o que significa trabalhar na África hoje), como nas modalidades de ação: as soluções não são mais pensadas, mas são “co-construídas”, criam-se alianças que são palavras novas que são ouvidas cada vez mais. De qualquer forma, percebo que há uma vontade: não devemos ser céticos, mas devemos estar vigilantes. Há muita coisa em jogo.
P: Em inúmeras ocasiões, as reflexões filosóficas são percebidas como distantes da realidade. Nesse sentido, o Fabrique de Souza nasceu em Camarões.
R: É uma experiência que nasceu das reflexões intelectuais que surgiram na 3ª edição dos Ateliers de la Pensée com o objetivo de repensar a relação entre a humanidade e a natureza a partir de um território específico, Souza, a 40 minutos de Douala, reunindo cientistas, artistas, jovens empresários, advogados e agricultores. Entendemos que as soluções têm que partir do conhecimento local ou do conhecimento tradicional que ainda não desapareceu e que é interessante fazê-lo dialogar com a tecnologia e a ciência. Nesse cruzamento, identificam-se experiências que podem ser operacionais para o mundo contemporâneo e mais eficazes do que soluções apenas científicas e/ou trazidas do norte.
Assim, desde 2019, montamos uma fazenda biológica e estamos trabalhando no mapeamento cultural e social, para estudar a reinserção da economia nas práticas culturais. Há também três estudantes de doutorado camaroneses que estudam a posse da terra, as dinâmicas sociais derivadas da chegada na área de refugiados anglófonos e o patrimônio terapêutico e culinário. La Fabrique de Souza é uma utopia ecológica nos tempos modernos.
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Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, fevereiro de 2022.