Galpões com as centenas de aves, confinadas. Terão os nutrientes necessários com toda sua alimentação artificial?
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01.10.21 | João Peres
Como foram desenvolvidas as aves que permitiram fornecer um produto barato à população mundial
Quando decidi que era hora de voltar a comer frango caipira, o primeiro trabalho foi procurá-lo. Não estava no açougue da esquina, nem no mercado do bairro. Já não era tão fácil quanto antes, embora ainda existisse uma oferta razoável. Isso aconteceu há uns cinco anos.
Ao final, após perguntar a algumas pessoas, encontrei um frango caipira por R$ 50 em um boteco a uns dois quilômetros de casa. Toda a experiência era muito diferente daquela a que eu havia me acostumado. Em vez de um pedaço de carne rosa numa bandeja, um animal inteiro, com uma cor mais para o amarelo que para o rosa.
Limpei-o, deixei marinando e, no dia seguinte, coloquei no forno. Sem saber que o forno não era o lugar certo: a carne, escura, era dura como uma pedra. Minha mãe olhou para o animal e concluiu que era um galo. Um galo velho. E, então, a solução foi cortá-lo em pedaços e preparar um ensopado, que, ainda assim, passou um belo tempo na panela de pressão.
Diante da primeira mordida, fui tomado um por sentimento dúbio. O sabor era completamente diferente. Era bem mais marcante. Mais forte. A carne rígida demandava mastigar por mais tempo. Era tudo tão diferente que nem parecia se tratar do mesmo animal. De fato, hoje sei que não se trata do mesmo animal.
Afinal, que frango é esse? Não o frango caipira: que frango é esse que vendem nos açougues e nos supermercados? Que frango é esse que se transformou no sinônimo-mor de carne barata, fácil de ser consumida em várias refeições ao longo da semana? Que frango é esse que nasce, cresce e morre em, no máximo, 42 dias?
Sim, 42 dias: esse frango cresce tão rápido quanto um pé de alface. Uma batata-doce não sai da terra em menos de quatro meses. Uma mandioca pode levar mais de um ano para ser colhida. E, no entanto, existe um animal que cresce mais veloz que muitos vegetais.
“Ele é uma maquininha, é programado”, disse Iran José Oliveira da Silva. Ele é um estarista, ou seja, um especialista em bem-estar animal na criação intensiva de aves, bois e porcos.
Ele coordena um núcleo de pesquisa em ambiente animal na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, a Esalq, da USP, e é consultor do Ministério da Agricultura. “É um modelo matemático exato. Porque você põe na conta o que ele está comendo de energia. Não estou falando de gramas de ração, não: é lisina, metionina. A quantidade de energia que está recebendo, o quanto ele está convertendo em ganho de peso. Então tudo isso é um modelo matemático.”
A comparação entre frango e máquina não partiu dos críticos da indústria da carne. Ao longo do nosso processo de pesquisa, fomos entendendo que os defensores desse modelo encaram o frango de nossos tempos como uma espécie de carro de Fórmula Um: a avicultura de precisão é tão matemática quanto a engenharia mais sofisticada do automobilismo.
Na equação matemática dos nutrientes, ele é o xis da questão. Ou melhor, o xis de proteína da questão: no século passado, enquanto especialistas e governos se apossaram da dieta para definir o que e como deveríamos comer, o frango foi escolhido para cumprir a função de converter grãos em proteína animal.
“Porque aí você faz o balanço dos ingredientes que quer pôr naquela fórmula. Músculo, gordura, pele, entende?”, explicou Elsio Antônio Pereira de Figueiredo, pesquisador da Embrapa Suínos e Aves.
Numa corrida de Fórmula Um, a diferença entre os carros deve ficar na casa dos décimos de segundo. Essa mesma ideia é aplicada na avicultura de precisão. O problema é que, em vez de vinte carros, a gente tá falando de vinte mil, trinta mil aves que precisam crescer praticamente num mesmo ritmo. A equação entre músculos e gordura, entre calor e frio, entre estresse e calma, tem de ser muito precisa. E sempre depende de qual é a finalidade daquela carne. “Não mais para um frango, para uma carne in natura. Então vai levando para almôndegas, para salsichas, para presuntos, para produtos processados”, continuou Elsio.
Um dos motivos para o sucesso do frango nessa empreitada – se é que dá para falar em sucesso – é o ciclo de vida relativamente curto. É mais fácil testar inovações em aves do que em porcos e bois. Também por esse motivo, tudo se torna mais rentável: mesmo hoje em dia, um boi demora três anos pra ser abatido, e um porco, no mínimo, quatro ou cinco meses.
Tudo isso começou nos anos 1930 nos Estados Unidos. Naquela época, o tempo médio de abate era de 105 dias. Mas, durante várias décadas, conseguiu-se uma redução extraordinária, de um dia por ano. Nos anos 1970, já eram 49 dias. E, hoje, são 42 dias.
Eficiência ou morte
Quando comprava frango de bandejinha, havia uma coisa que não me chamava atenção, mas, hoje, me chama muito a atenção: o peito tem uma altura de três ou quatro dedos. É algo gigantesco. Comparando agora com frangos caipiras, me espanto com a diferença em termos de magreza. Esse é um ponto fundamental.
O frango mais eficiente do mundo, ou um dos dois mais eficientes, é o Cobb 500, um sucessor do Cobb 100, que foi uma das primeiras aves a ser convertida em clone. O Cobb 500 chega aos 42 dias de vida com 2.952 gramas. Essa ave pode ganhar quase 100 gramas num único dia, tendo consumido o dobro disso, 200 gramas. Hoje, ele precisa de menos de cinco quilos de ração pra chegar a três quilos de carne. Parece muito? Quando comparado com um boi, é pouco.
Toda essa eficácia barateou a carne do frango. O que levou a uma explosão no consumo. Se a gente olha pras estatísticas do IBGE, o número oficial é que o Brasil abateu quase seis bilhões de aves no ano passado. O país é hoje um dos grandes consumidores, com 45 quilos ao ano, e um dos maiores exportadores – no ano passado foram quatro milhões de toneladas.
Mas, do ponto de vista genético, esse modelo de avicultura abateu meia dúzia de espécies, porque todo mundo é cópia. Cobb 500 é uma marca, e não um nome. Esse é um aspecto central pra que a avicultura de precisão funcione: todos os frangos precisam ser iguais.
Cobb, Aviagen e Hubbard: três empresas e nada mais. Três empresas controlam todas as bisavós de aves comerciais do planeta Terra. Mas o avicultor não pode criar os próprios pintinhos? Muito difícil. Porque, se ele estiver integrado a uma corporação, como Seara e BRF, o trabalho dele é simplesmente fazer crescer os pintinhos.
Mesmo que ele quisesse, do ponto de vista genético seria muito difícil porque a cada geração essas aves têm uma perda grande de eficiência. É como na Fórmula Um: entre uma temporada e outra, é preciso projetar um carro novo. Cobb, Aviagen e Hubbard criam as bisavós. As empresas matrizeiras já recebem as avós – as matrizes. Essas matrizeiras criam as galinhas que finalmente vão para a indústria da carne, onde são reproduzidas. É só então que os pintinhos são levados para os criadores.
Durante o curso de Medicina Veterinária, Pedro Xavier começou a trabalhar na indústria da carne. Com muito otimismo. “Sendo um veterinário progressista, eu poderia me envolver com uma indústria que alimentava o mundo.” Mas a esperança começou a desmoronar diante da realidade.
Enquanto os filhotes morrem por volta de 40 dias, as mães e os pais precisam durar em torno de 40 semanas. “Elas vivem em sistema com menos luz durante uma época da vida justamente para não ativar uma puberdade muito cedo”, conta. Nesse estágio, a ideia é que essas aves engordem o mais devagar possível, pra que coloquem muitos ovos, e todo mundo ao mesmo tempo.
“Essas aves são aves glutonas, por natureza são aves que têm aptidão pela gula. Elas comem muito porque são geneticamente forjadas a serem animais que comem muito para produzir muita carne.” Mas não no caso dos pais e das mães: algumas pesquisas mencionam uma restrição de até 80% na ração durante a fase reprodutiva. Em alguns dias, o jejum é total.
Nessas fases, as aves são vendidas e exportadas de duas maneiras. Como ovos fecundados, que vão eclodir todos ao mesmo tempo. Ou como pintinhos. “O nível de vibração dos caminhões, a qualidade das nossas estradas, afeta diretamente o desenvolvimento embrionário”, conta Iran, da Esalq. “Se você soubesse o quanto o nível de vibração numa carga de ovos férteis ocasiona a eclosão de pintos sem olhos, sem cérebro, abdome aberto com o bico deformado, que a gente chama de animais de segunda linha ou animais para serem descartados.”
Nós começamos a nos questionar sobre o argumento-chave para justificar esse sistema de criação de animais: a eficiência. Lemos uma série de pesquisas científicas que comparam a incidência de doenças e de mortalidade precoce entre as aves de alta eficiência e as aves comuns. Em todos os casos, frangos como o Cobb 500 tiveram mais problemas. Além dos problemas com o consumo de água, ração, antibióticos e energia elétrica nos enormes galpões.
Cobb 500 e Ross 308. Imagens: Divulgação.
Bombado
Quando passamos das mães para os pintinhos, a lógica é o exato oposto: fazer com que comam o máximo possível, no menor intervalo de tempo possível. Então, os galpões têm luz quase o tempo todo para induzir a que esses animais fiquem acordados.
Segundo a Associação Brasileira das Indústrias de Milho (Abimilho), das 88 milhões de toneladas de milho produzidas no Brasil durante a safra 2020/2021, 55 milhões viraram ração animal e outras 22 milhões foram exportadas. E é por isso que se tornou tão importante desenvolver frangos que morrem em tão pouco tempo: um dia a menos de ração é uma economia gigante de recursos.
Pra ter uma base de comparação, os humanos brasileiros consomem 21 bilhões de quilos de arroz e feijão por ano. Muito menos que o consumo dos frangos.
No começo, os pintinhos demandam temperaturas mais altas. Mas, à medida que crescem, a temperatura dos galpões precisa baixar. O corpo dos animais produz o chamado calor metabólico. Um estudo estima que uma ave de dois quilos produza o equivalente a 15 watts de calor. Agora, multiplica isso por 30 mil aves e você conclui que dentro de um galpão esse calor fica em 450 mil watts.
Na avicultura de precisão, a diversidade é uma ameaça. Ter um plantel homogêneo é fundamental para garantir o manejo eficiente de tantos animais num espaço tão pequeno. “Por exemplo, se em determinado momento aquela ave precisaria ter um quilo e seiscentos gramas e um grupo de aves não chegou a um quilo e trezentos, a própria linhagem já indicava: bom, esse grupo de aves precisa ser descartado”, conta Pedro Xavier.
Essas aves tão modificadas têm dificuldade em controlar o calor do próprio corpo, e precisam da ajuda da tecnologia. Então, nessa fase o gasto de energia é com resfriamento, e não mais com aquecimento. Um caso extremo aconteceu faz pouco tempo, em outubro de 2020, em Bastos, no interior de São Paulo, quando mais de um milhão de aves morreram. Foi com galinhas poedeiras, e não com frangos de corte.
“Num país tropical como o nosso os animais sofrem muito com o calor e eles acabam indo a óbito por estresse térmico”, explica Iran.
Em parte, é por isso que algumas condições de bem-estar avançaram: porque o sofrimento dos animais significa uma perda econômica. No Brasil, nos anos 90, as granjas colocavam até 40 aves por metro quadrado – imagina o que seriam 40 aves no box do banheiro. Essas aves sofriam um superaquecimento, e com isso não comiam. Sem comer, elas engordavam mais devagar ou morriam. “Quando os animais estão estressados existe um desequilíbrio no sangue chamado alcalose respiratória. E essa alcalose respiratória leva os animais a óbito. E essas perdas são significativas. Algumas situações elas chegam de 3 a 5 por cento, certo?”, continua o estarista.
Hoje, segundo o relato dos nossos entrevistados, os avicultores que fornecem pras grandes indústrias usam uma concentração mais baixa, de até 15 aves por metro quadrado.
Tão impressionante quanto o crescimento acelerado é o declínio de uma ave como o Cobb 500. Aos 43 dias, ele simplesmente perde rendimento. Precisa de cada vez mais ração para converter em cada vez menos carne. O que o gráfico da própria empresa mostra é que o animal se torna ineficiente. O que o gráfico não mostra é que, a essa idade, o Cobb 500 já é um aninal senil e com um corpo castigado.
“É igual você pegar um cara bombado aí, que toma bomba na academia, está lá todo musculoso, mas o coraçãozinho continuou pequeno, os órgãos continuam pequenos e o corpo vai crescendo. Então chega uma hora que entra num colapso, certo?”, compara Iran. Pra ele, os 42 dias são o limite: não dá mais pra acelerar esse frango.
Como o Brasil se tornou o epicentro
Nos anos 50 os supermercados estavam se consolidando como formato de compra de alimentos nos Estados Unidos. A Cobb fez uma revolução ao oferecer pedaços de frango, e não mais frangos inteiros. Esse é um passo grande na história do frango.
No final dos anos 50 a Cobb abre a primeira franquia, na Europa, e logo em seguida é a vez do Brasil. O livro Supermarket USA conta uma história interessante a partir de um documento interno da International Basic Economy Corporation – a IBEC era uma empresa da bilionária família Rockefeller que andou de braços dados com a política externa dos Estados Unidos.
A corporação procurava agressivamente por mercados externos para o frango, tentando convencer os consumidores a deixar de lado o animal inteiro e partir para a compra em pedaços. No Brasil, o IBEC já tinha comprado a Agroceres nos anos 50, e agora queria expandir os negócios. A estimativa é de que a empresa controlava 30% do mercado de frango brasileiro no final dos anos 60, e poucos anos depois, em 72, chegou a 50%.
Para ter uma ideia do tamanho dessa transformação, os dados da FAO mostram que o plantel brasileiro de frango era de 130 milhões em 1961. Esse número já tinha dobrado dez anos depois, e em 81 já tinha quadruplicado.
A Agroceres foi a principal importadora do conceito de agronegócio, desenvolvido na Escola de Negócios de Harvard nos anos 50, e que no Brasil começou a virar moda nos anos 90 – uma história contada em detalhes no livro Formação política do agronegócio.
Nos anos 70 e 80, a Agroceres fez parcerias com corporações especializadas no desenvolvimento genético de animais. No caso do frango, a parceria foi com a Ross, hoje mais conhecida como Aviagen, a maior empresa do mundo nessa área.
Quando a Embrapa foi criada, também nos anos 70, incorporou o Centro Nacional de Pesquisa de Suínos e Frangos. Essa divisão fica em Concórdia, no oeste de Santa Catarina, justamente o berço da indústria brasileira de frango de corte. É nessa região que nasceram a Sadia, a Seara e a Perdigão. De lá para cá, o plantel só fez crescer, e cresceu também a dependência dos avicultores em relação às corporações. Hoje, é virtualmente impossível entrar na criação de aves de corte por conta própria.
Na experiência do Pedro Xavier como veterinário das grandes empresas, os problemas de bem-estar animal começaram a se encontrar com os problemas sociais: de um lado, as empresas jogavam alimentos fora e, de outro, pagavam péssimos salários a trabalhadores diaristas.
Na minha experiência, retornar ao frango caipira já não era uma opção. Cortar, preparar e consumir animais havia adquirido outros significados e, para mim, já não fazia muito sentido. Pelo menos não faz, por agora. Mas voltar a consumir um frango tão modificado, numa cadeia marcada por tantas contradições, também não é uma opção.
E, no fundo, essa é uma discussão central. Os defensores desse modelo dão como pressuposto que as pessoas querem e precisam consumir 45 quilos de frango por ano. É como se as empresas não tivessem tido qualquer papel em remoldar nossos hábitos. “Não é um sistema eficiente. Mas eu não posso deixar as pessoas passando fome. Então tem que buscar alternativas”, reflete Pedro. “A gente está trocando milhares de espécies de vida do planeta para um arcabouço de homem, galinha, porco, milho, soja e mais umas cinco coisas. Isso não faz sentido nenhum.”