O Duradouro Sistema de Castas nos EUA

Ilustração fotográfica: Chris Burnett

https://www.nytimes.com/2020/07/01/magazine/isabel-wilkerson-caste.html

Nossos ideais fundadores prometem liberdade e igualdade para todos. Nossa realidade é uma hierarquia racial duradoura que persiste há séculos.

De Isabel Wilkerson

  • 1 de julho de 2020

Vimos um homem de bruços na calçada, preso embaixo de um carro, e acima dele outro homem, de uniforme, com pele mais clara do que a do homem no chão sendo que este mais claro se apoiava sobre o mais escuro, com o joelho enfiado no pescoço dele. O mais claro tinha suas mãos ao lado do corpo, nos bolsos — será que as mãos dele estavam tão displicentes assim em seus bolsos? — tal era sua calma casual e indiferença, mostrando uma confiança de ter direitos embutidos os quais lhe atribuíam a capacidade de dominação sobre o mais escuro.

Ouvimos o homem no chão implorando ao homem acima dele, vimos o terror em seu rosto, ouvimos seus suspiros suspensos no ar, bem como gritos angustiados de um coro invisível ao fundo da imagem que pediam ao homem mais claro que parasse com aquilo. Mas este homem mais claro, o dominante, olhava diretamente aos espectadores, para a câmera e, assim, para todos nós ao redor do mundo como testemunharíamos mais tarde. Mas, em vez de prestar atenção aos gritos do coro, pressionava seu joelho mais fortemente o pescoço do homem mais escuro, como era o direito concedido a ele pela hierarquia de sua organização. O homem no chão, no entanto, ficou em silêncio, sem ar. Um líquido claro deslizou pela calçada. Assim, vimos um homem morrer diante de nossos olhos.

O que não vimos, nem imediatamente, foi o arcabouço como se fosse um andaime invisível, de um sistema de castas com regras e suposições antigas que tornavam possível tal ato de horror, que mantinham o papel de cada ator naquela cena, através de suas garras. Fora da câmera, dois outros homens de uniforme, que pareciam com o homem mais claro, seguravam o mais escuro do outro lado do carro da polícia quando o crepúsculo se aproximava em Minneapolis. No entanto, outro homem de uniforme, de ascendência asiática e, portanto, não da casta dominante, ficou parado, assistindo, imobilizado, ao que parecia, distante de sua própria humanidade e potencial causa comum, o momento em que do homem mais sombrio escapou-lhe a consciência. Logo descobrimos que o homem mais escuro naquele local, era George Floyd. Foi acusado de tentar passar adiante uma nota falsa de US $ 20 e, como incontáveis ​​homens negros ao longo dos séculos, perde a vida pelo que poderia ter sido somente uma mera advertência para aqueles da casta dominante.

Nas semanas que antecedem a comemoração da data da fundação do país, pelo povo, protestos e levantes ocorreram em cidades de todos os estados, como em Bakersfield, Charleston, Buffalo, Poughkeepsie, Wichita, Boise, Sioux Falls. Os manifestantes acabam derrubando estátuas como a de Cristóvão Colombo em St. Paul, Minnesota. Outra de Jefferson Davis em Richmond, Virgínia. E o país foi forçado a refletir uma observação de Frederick Douglass há um século e meio (the observation of Frederick Douglass a century and a half before) : “O que, para o escravo americano, é este quarto de julho? O que, poderíamos perguntar em nossos dias, é a liberdade para aqueles que ainda lhes é negada enquanto seu próprio país celebra a sua?”

Uma velha casa e uma luz infravermelha

O inspetor habilitou sua lente infravermelha para perceber um arco deformado no teto, é um feixe de luz invisível procurando nas camadas de ripas para testar o que os olhos não podiam ver. Esta casa foi construída há gerações, e eu havia notado o discreto vergão num canto de gesso no quarto de hóspedes e o atribui à sua idade. Com o tempo, o vergalhão no teto tornou-se uma onda que se alargava e aumentava apesar do novo telhado. Ele foi se formando além da percepção cotidiana, há anos. Uma casa velha tem seu próprio temperamento e comportamentos, como se fosse uma tia viúva com uma história que a envolve, seu mistério, na forma de um quebra-cabeça emaranhado que aguarda solução. Por que isso está escondido no canto sudeste de um beiral? O que há por trás desse pedaço de tijolo descolorido? Numa casa antiga, o trabalho nunca termina e nem se espera que seja.

Os EUA é uma velha casa. Nunca podemos dizer que o trabalho está encerrado. O vento, as inundações, as secas e as revoltas humanas atingem sua estrutura que já combate quaisquer das falhas deixadas na falta de atenção em sua fundação original. Quando você mora em uma casa antiga, pode não querer entrar no porão depois de uma tempestade para ver o que as chuvas provocaram. Escolhe não olhar, no entanto, por sua conta e risco. O proprietário de uma casa antiga sabe que tudo o que estiver sendo ignorando, nunca desaparece. O que quer que esteja à espreita irá apodrecer, independentemente de se escolher ou não. A ignorância não é proteção contra as consequências da inação. Tudo o que se estiver desejando, irá atormentar até se reunir coragem para enfrentar o que se prefere não ver.

Nós, neste país, somos como proprietários que herdamos uma casa em um terreno bonito do lado de fora, mas tem instáveis tanto o solo como as rochas onde ela se assenta, arfando e contraindo ao longo de gerações, rachaduras remendadas, mas as rupturas mais profundas desapareceram por décadas, mesmo séculos. Muitas pessoas podem dizer com razão: “Eu não tive nada a ver com tudo isso e quando começou. Não tenho nada a ver com os pecados do passado. Meus ancestrais nunca atacaram povos indígenas, nunca possuíam escravos”. E sim, nenhum de nós estava aqui quando esta casa foi construída. Nossos ancestrais imediatos podem não ter nada a ver com isso, mas aqui estamos, os atuais ocupantes de uma propriedade com rachaduras de estresse, paredes e fissuras arqueadas na fundação. Somos os herdeiros de tudo o que é certo ou errado. Não erigimos pilares ou vigas irregulares, mas tudo isso agora é de nossa responsabilidade lidar com ela.

E qualquer deterioração adicional está, de fato, em nossas mãos.

Sem resolver, as rupturas e rachaduras na diagonal não se consertam por si mesmas. As toxinas não desaparecem, mas se espalham, lixiviam e sofrem mutações, como se já as tivessem. Quando as pessoas vivem em uma casa antiga, elas se ajustam às idiossincrasias e aos perigos que se escondem em uma estrutura antiga. Colocam baldes embaixo de um teto com goteiras, sustentam o chão que range, aprendem a passar por cima daquele degrau de madeira podre na escada. O desajeitado se torna aceitável e o inaceitável se torna somente inconveniente. Viver com isso por tempo suficiente e o impensável se tornará normal. Expostos ao longo das gerações, aprendemos a acreditar que o incompreensível é o que a vida deveria ser.

Em minha própria casa, o inspetor estava enfrentando o mistério do teto deformado e então ele primeiro segurou um sensor na superfície para detectar se estava úmido. Como a leitura é inconclusiva, ele puxou a câmera infravermelha para tirar uma espécie de raio-X do que quer que estivesse acontecendo, a ideia é que não se pode resolver um problema até e a menos que possa vê-lo. O inspetor pode agora ver além do gesso, além do que havia sido revestido com papel de parede ou pintado, como somos chamados a fazer na casa em que todos nós vivemos, para examinar uma estrutura feita há tanto tempo.

Como outras casas antigas, os EUA têm um esqueleto invisível: seu sistema de castas.

Ele é tão central para sua operação quanto os pregos e vigas que não se pode ver nos prédios físicos que chamamos de lar. A casta é a infraestrutura de nossas divisões. É a arquitetura da hierarquia humana, o código subconsciente de instruções para manter, no nosso caso, uma ordem social de 400 anos. Olhar para as castas é como focar no raio X do país contra a luz.

[O projeto de 1619: reformulando o legado da escravidão nos Estados Unidos.]https://www.wsws.org/pt/articles/2019/12/14/1619-d14.html

Um sistema de castas é uma construção artificial, uma classificação fixada e incorporada do valor humano que define a supremacia presumida de um grupo contra a inferioridade presumida de outros grupos com base na ancestralidade e em traços frequentemente imutáveis, traços que seriam abstratamente neutros, mas são atribuídos significado de vida e morte em uma hierarquia que favorece a casta dominante, cujos antepassados ​​a projetaram. Um sistema de castas usa limites rígidos, geralmente arbitrários, para manter as fileiras separadas, distintas entre si e em seus lugares designados.

Ao longo da história humana, três sistemas de castas se destacaram. 

O persistente sistema de castas de milênios da Índia. O sistema de castas tragicamente acelerado, arrepiante e oficialmente vencido da Alemanha nazista. E a pirâmide de castas que muda de forma, não dita, baseada em raças nos Estados Unidos (nt.: queremos destacar que consideramos a mesma realidade para o Brasil e outros atuais países, ex-colônias europeias, onde vingou a escravidão, principalmente negra, e a espoliação dos povos originários). Cada versão se baseava em estigmatizar as consideradas inferiores para justificar a desumanização necessária para manter as pessoas de nível mais baixo na base e racionalizar os protocolos de execução. Um sistema de castas perdura porque muitas vezes é justificado como vontade divina, originada em texto sagrado ou nas supostas leis da natureza, reforçado por toda a cultura e transmitida através das gerações.

À medida que avançamos em nossas vidas diárias, a casta é a arrumadeira sem palavras de um teatro escuro, a lanterna lançada nos corredores, guiando-nos para nossos assentos predestinados para uma apresentação do espetáculo da vida.

 A hierarquia da casta não tem a ver com sentimentos ou moralidade. É sobre poder — quais grupos o possuem e quais não. Trata-se de recursos — quais são vistos como dignos deles e quais não são, quem os adquire e controla, e quem não. Trata-se de respeito, autoridade e premissas de competência — e quem os recebe e quem não.

Como um meio de atribuir valor a toda a espécie da humanidade, a casta guia cada um de nós frequentemente além do alcance de nossa consciência. Ele incorpora atá a medula de nossos ossos uma classificação inconsciente das características humanas e estabelece as regras, expectativas e estereótipos que foram usados ​​para justificarem as brutalidades contra grupos inteiros de nossa espécie humana. 

No sistema de castas norte americano (nt.: e de outras ex-colônias europeias), o sinal de classificação é o que chamamos de raça, a divisão dos seres humanos com base em sua aparência. Nos Estados Unidos, a raça é a principal ferramenta e o chamariz visível da casta.

A raça faz o trabalho pesado para um sistema de castas que exige um meio de divisão humana. Se fomos treinados para ver os humanos na linguagem da raça, então a casta é a gramática subjacente que codificamos quando crianças, bem como quando aprendemos nossa língua materna. A casta, como a gramática, torna-se um guia invisível não apenas de como falamos, mas também de como processamos informações, os cálculos autônomos que figuram em uma frase sem que tenhamos que pensar nisso.

Muitos de nós nunca estudamos gramática, mas sabemos em nossos ossos que um verbo transitivo requer um objeto, que um sujeito precisa de um predicado; sabemos, sem pensarmos a diferença, entre a terceira pessoa do singular e a terceira do plural. Podemos mencionar “raça”, referindo-nos às pessoas como negras, ou brancas, ou latinas, ou asiáticas ou indígenas, quando o que está embaixo de cada rótulo são séculos de história e atribuições de suposições e valores quanto a características físicas em uma estrutura de hierarquia humana.

Como as pessoas se parecem, ou melhor, a raça à qual foram designadas ou às quais se percebe pertencer, é o visível sinal de sua casta. É o cartão de memória histórico para o público de como eles devem ser tratados, onde se espera que eles morem, que tipo de cargo eles devem ocupar, se pertencem a esta seção da cidade ou a um assento em uma sala de reuniões; se eles teriam expectativa de se dirigir com autoridade sobre esse ou aquele assunto; se eles receberão alívio da dor em um hospital; se eles têm mais ou menos probabilidade de sobreviver ao parto no país mais avançado do mundo; e se eles podem ser baleados pelas autoridades, impunemente.

Sabemos que as letras do alfabeto são neutras e sem sentido até serem combinadas para formarem uma palavra, que por si só não tem significado até que seja inserida em uma frase e interpretada por quem a fala ou ouve. Do mesmo modo que “preto” e “branco” foram aplicados a pessoas que literalmente não eram nem uma nem outra, mas sim gradações de marrom, bege e marfim, o sistema de castas enquadra as pessoas em postes umas ao lado das outras e atribui significado aos extremos bem como as gradações intermediárias e, em seguida, reforça estes significados, os replicam nos papéis que cada casta atribui e daí são designados, permitidos ou requeridos para que os desempenhem.

Concomitantemente, em décadas recentes, aprendemos com o genoma humano que todos os seres humanos são 99,9% iguais. “Raça é um conceito social, não científico”, disse J. Craig Venter, especialista em genômica que dirigiu a Celera Genomics quando o sequenciamento inicial foi concluído em 2000. “Todos nós evoluímos nos últimos 100.000 anos a partir do pequeno número de tribos que migraram da África e colonizaram o mundo”. O que significa que todo um sistema de castas raciais, o catalisador dos ódios e da guerra civil, foi construído sobre o que a antropóloga Ashley Montagu chamou de “uma seleção arbitrária e superficial de traços”, derivada de uma pequena fração das dezenas de milhares de genes que produzem um ser humano. “A ideia de raça”, escreveu Montagu, “era, de fato, a criação deliberada de uma classe exploradora que buscava manter e defender seus privilégios contra o que era lucrativamente considerado como uma casta social inferior”.

Casta e raça não são sinônimos nem mutuamente excludentes. Elas não só podem como coexistem na mesma cultura e servem para reforçar um ao outro. A raça, nos Estados Unidos, é o agente visível da força invisível da casta. Casta são os ossos, corre pela pele. Raça é o que podemos ver, os traços físicos que receberam significado arbitrário e se tornaram uma abreviação para que é uma pessoa. Agora a casta é a poderosa infraestrutura que mantém cada grupo em seu lugar. Sua própria invisibilidade é o que lhe confere poder e longevidade. E, embora possa entrar e sair da consciência, possa incendiar-se e reafirmar-se em tempos de agitação bem como retroceder em tempos de relativa calma, é uma presença constante na operação do país.

A casta é rígida e profunda; a raça é fluida e superficial, sujeita a redefinições periódicas para atender às necessidades da casta dominante no que é hoje os Estados Unidos. Embora os requisitos para se qualificar alguém como branco tenham mudado ao longo dos séculos, o fato de uma casta dominante ter permanecido constante desde o início — quem se encaixasse na definição de branco, em qualquer ponto da história, foi concedido direitos e privilégios legais da casta dominante. Talvez mais crítica e trágica, no outro extremo da escala, a casta subordinada também tenha sido fixada desde o início como o piso psicológico sob o qual todas as outras castas não podem cair.

Assim, todos nascemos em um jogo de guerra silencioso, com séculos de idade, alistado em equipes que não são de nossa própria escolha. O lado a que somos designados no sistema norte americano de categorização de pessoas, é proclamado pelo uniforme da equipe que cada casta veste, sinalizando nosso valor e potencial presumidos. Que qualquer um de nós consiga criar conexões permanentes através destas divisões fabricadas, é um testemunho da beleza do espírito humano.

Um americano intocável

No início do inverno de 1959, depois de liderar o boicote aos ônibus de Montgomery/Alabama que surgiu da prisão de Rosa Parks e antes dos julgamentos e triunfos por vir, o Rev. Dr. Martin Luther King Jr. e sua esposa, Coretta, desembarcaram na Índia, na cidade então conhecida como Bombaim, para visitarem a terra de Mohandas K. Gandhi, pai de protestos não-violentos. Eles foram cobertos com guirlandas de flores na chegada e King disse aos repórteres: “Para outros países, eu posso ir como turista, mas para a Índia eu venho como peregrino”.

Ele sonhava muito ir à Índia. Lá ficaram por mais de um mês, acolhidos pelo primeiro-ministro Jawaharlal Nehru. King queria ver por si mesmo o lugar cuja luta pela liberdade do domínio britânico inspirara sua luta pela justiça nos EUA. Ele queria ver os chamados intocáveis, a casta mais baixa do antigo sistema indiano de castas, de quem lera e simpatizava, e que foram deixados para trás depois que a Índia conquistou sua independência na década anterior.

Ele descobriu que as pessoas na Índia estavam acompanhando os julgamentos de seu próprio povo oprimido na América do Norte e que conheciam o boicote aos ônibus que ele liderava. Onde quer que fosse, as pessoas nas ruas de Bombaim e Déli, se aglomeravam ao seu redor para pedir um autógrafo.

Uma tarde, King e sua esposa viajaram para o extremo sul do país, para a cidade então conhecida como Trivandrum, no estado de Kerala, e visitaram estudantes do ensino médio cujas famílias eram intocáveis. Foi o diretor da escola que fez sua apresentação.

“Jovens”, disse ele, “gostaria de apresentar a vocês um companheiro intocável dos Estados Unidos da América.”

King ficou chocado. Não esperava que esse conceito fosse aplicado a ele. Realmente ficou desconcertado, no início, com esta frase. Afinal tinha voado de outro continente, jantara com o primeiro ministro. Não via assim esta conexão, não viu o que o sistema de castas indiano tinha a ver diretamente com ele. Não percebeu isso imediatamente por que as pessoas da casta mais baixa da Índia o veriam, um negro americano e um visitante distinto, como de uma casta baixa como eles. Ou seja, vê-lo como um deles.

“Por um momento”, recordaria mais tarde, “fiquei um pouco chocado e irritado por ser chamado de intocável”.

Então ele começou a pensar na realidade da vida das pessoas pelas quais lutava — 20 milhões de pessoas, consignadas à mais baixa posição nos EUA, por séculos, “ainda sufocados em uma gaiola hermética de pobreza”, em quarentena em guetos isolados, exilados em seu próprio país.

E ele disse a si mesmo: “Sim, sou intocável e todo negro nos Estados Unidos da América é um intocável”. Naquele momento, ele percebeu que a ‘Land of the Free‘ (nt.: Terra dos Livres) havia imposto um sistema de castas não muito diferente do sistema de castas da Índia e que ele vivera sob este sistema, toda sua vida. Era isso que estava por baixo das forças que ele estava lutando na América do Norte. Mais tarde, ele descreveria esse despertar na Ebenezer Baptist Church in Atlanta in 1965 during his sermon for the Fourth of July (nt.: Igreja Batista Ebenezer, em Atlanta, durante o sermão de 04 de julho de 1965).

“Casta” não é uma palavra frequentemente aplicada aos Estados Unidos. É considerado o idioma da Índia ou da Europa feudal. Mas alguns antropólogos e estudiosos da raça nos Estados Unidos fazem uso da palavra há décadas. Antes da era moderna, um dos primeiros americanos a adotar a ideia de casta foi o abolicionista antebellum (nt.: expressão atribuída ao tempo pré-guerra da Secessão) e senador dos EUA, Charles Sumner, enquanto lutava contra a segregação no norte. “A separação de crianças nas Escolas Públicas de Boston, por causa de cor ou raça”, escreveu ele, “é da natureza de Castas e, por isso, é uma violação da Igualdade”. Ele citou um nativo da Índia: “Casta faz distinções entre as criaturas onde Deus não fez”.

Quais são as origens e o funcionamento da hierarquia que interferem na vida cotidiana e nas chances de vida de todo norte americano? Havia isso invadido minha própria vida com regularidade e consequências perturbadoras? Eu queria entender as origens e a evolução de classificar e elevar um grupo de pessoas por sobre outro e as conseqüências de fazê-lo para os supostos beneficiários e aqueles atingidos abaixo destes. Movendo-me pelo mundo como uma experiência de casta viva e pulsante, eu queria entender as hierarquias que eu e muitos milhões de outros, tivemos que navegar para buscarmos nosso trabalho e sonhos.

A Palavra “R” (nt.: esta expressão – palavra ‘r’ significa tratar pejorativamente pessoas deficientes)

Uma vez despertados para o poder subjacente da casta, podemos ver melhor a ferramenta da corrida pelo que ela é. O que enfrentamos em nossos dias atuais não é o racismo clássico da era de nossos ancestrais, mas uma mutação do software que se ajusta às necessidades atualizadas do sistema operacional. No meio século desde que os protestos pelos direitos civis forçaram os Estados Unidos a tornar ilegal a discriminação sancionada pelo Estado, o que os norte americanos consideram racismo mudou e agora a palavra é uma das mais controversas e incompreendidas na cultura norte americana. Para muitos na casta dominante, a palavra é radioativa — ressentida, temida, negada, lançada de volta para quem ousa sugerir. A resistência à palavra muitas vezes invalida qualquer discussão sobre o comportamento subjacente que ela pretende descrever, corroendo-a de significado.

Os cientistas sociais geralmente definem o racismo como a combinação de preconceito racial e poder sistêmico, vendo o racismo, como o sexismo, como principalmente a ação de pessoas ou sistemas com poder pessoal ou de grupo sobre outra pessoa ou grupo com menos poder, pois os homens têm poder sobre as mulheres, brancos sobre pessoas de cor e dominantes sobre os subordinados.

Mas, com o tempo, o racismo muitas vezes foi reduzido a um sentimento, uma falha de caráter, conflituada com preconceitos, ligada ao fato de ser uma pessoa boa ou não. Passou a significar ódio manifesto e declarado a uma pessoa ou grupo por causa da raça atribuída a eles, uma perspectiva que poucos jamais teriam. Embora as pessoas admitam ou denunciem sexismo, xenofobia ou homofobia, elas podem imediatamente desviar as acusações de racismo, dizendo que não têm “um tiquinho do meu corpo que seja racista” ou são a “pessoa menos racista que já se conheceu”. Da mesma forma, eles “não vêem cor”, que seu “melhor amigo é preto” e podem até ter se convencido em um nível consciente destas coisas.

O que o racismo significa em uma época em que nem os extremistas o admitem? Qual é o teste decisivo para o racismo? Quem é racista em uma sociedade em que alguém pode se recusar a alugar para pessoas de cor, prender imigrantes marrons em massa ou exibir uma bandeira confederada, mas não ser “certificado” como racista, a menos que ele confesse ou seja pego usando sinalização depreciativa ou insultos? O desejo instintivo de rejeitar a própria ideia de discriminação atual com base em um composto químico na pele é uma admissão inconsciente do absurdo da raça como conceito.

Sem uma definição universalmente acordada, poderíamos ver o racismo como um continuum e não como algo absoluto. Podemos nos libertar do teste de pureza de saber se alguém é ou não racista e trocar esta mentalidade por alguém que vê as pessoas como existindo em uma escala com base nas toxinas que eles absorveram do ar poluído e inescapável da instrução social que recebemos na infância.

A casta, por outro lado, antecede a noção de raça e sobreviveu à era do racismo formal patrocinado pelo Estado, praticado há muito tempo oficialmente no cotidiano convencional. A versão moderna do racismo facilmente negável pode ser capaz de disfarçar a estrutura invisível que criou e mantém a hierarquia e a desigualdade. Mas a casta não nos permite ignorar a estrutura. Casta é estrutura. Casta está na percepção do cotidiano. Casta é o limite que reforça as atribuições fixas com base na aparência das pessoas. A casta é uma entidade viva e pulsante. É como uma corporação que busca se sustentar a todo custo. Para alcançar um mundo verdadeiramente igualitário, é necessário olhar mais profundamente do que aquilo que pensamos que vemos.

Casta é a concessão ou retenção de respeito, status, honra, atenção, privilégios, recursos, benefício da dúvida e bondade humana a alguém com base em sua posição percebida ou posição na hierarquia. A casta se contrapõe a uma mulher afro-americana que, sem cerimônia ou desculpas, se senta à cabeceira da mesa falando russo. Ela privilegia um homem asiático-americano a colocar sua experiência tecnológica a serviço da empresa, mas não aspirar a ser um executivo-chefe. No entanto, é lógico que um jovem branco de 16 anos sirva como gerente de loja em detrimento de funcionários da casta subordinada que tenha três vezes sua idade. A casta é insidiosa e, portanto, poderosa porque não é ódio; não é necessariamente pessoal. São os sulcos desgastados de rotinas reconfortantes e expectativas impensadas, padrões de uma ordem social que estão em vigor há tanto tempo que parece ser a ordem natural das coisas.

Qual é a diferença entre racismo e casteísmo? Como casta e raça estão entrelaçadas na América do Norte, pode ser difícil separar as duas. Qualquer ação ou instituição que zomba, prejudica, assume ou atribui inferioridade ou estereotipifica com base num construto social de raça pode ser considerada racismo. Qualquer ação ou estrutura que tente limitar, reter ou colocar alguém em uma classificação definida, que procure manter alguém em seu lugar, elevando ou denegrindo esta pessoa com base em sua categoria percebida, pode ser visto como casteísmo.

O casteísmo é o investimento em manter a hierarquia, a fim de assegurar sua própria classificação, vantagem ou privilégio ou elevar-se acima dos outros ou garantir outros abaixo dos dominantes. Para aqueles nas castas marginalizadas, casteísmo pode significar: a procura em manter os que estiverem em um degrau desfavorecido que percam para os que dominam; fazer bajulações e permanecerem nas boas graças da casta dominante, que servem para manter intacta a estrutura.

Nos Estados Unidos, racismo e casteísmo ocorrem frequentemente ao mesmo tempo ou se sobrepõem ou figuram no mesmo cenário. Casteísmo é sobre posicionar e restringir estas posições, em relação a outras. O que a raça e seu precursor, o racismo, fazem extraordinariamente bem, é confundir e distrair a estrutura subliminar do mais poderoso Senhor Sith da casta. Como o elenco com um braço quebrado, da mesma forma como os personagens de uma peça, o sistema de castas mantém todos em seus locais fixos.

Por esse motivo, muitas pessoas — incluindo aquelas que podemos considerar como boas e gentis – poderiam ser castistas, ou seja, investidas em manter a hierarquia como está ou se contentar em não fazer nada para mudá-la, mas não seriam racistas no sentido clássico, não ativo e abertamente odioso deste ou daquele grupo. Racistas reais, odiadores reais, por definição, seriam castistas, pois seu ódio exige que aqueles que são percebidos como abaixo deles, conheçam e mantenham seu lugar na hierarquia.

Em termos cotidianos, não é o racismo que leva um cliente branco de uma loja de roupas a procurar uma pessoa aleatoriamente negra ou parda que também está comprando e, equivocadamente, pedir um suéter de tamanho diferente ou a um convidado branco de uma festa pedir a uma pessoa negra ou parda que também esteja como convidada para buscar uma bebida, como aconteceu com Barack Obama como senador, ou mesmo um juiz para condenar uma pessoa de casta subordinada por uma ofensa pela qual uma pessoa de casta dominante possa nem mesmo ser cobrado. Isso é casta, ou melhor o policiamento e a adesão ao sistema de castas. É autônomo, inconsciente, resposta reflexiva às expectativas de mil entradas de imagens e downloads da sociedade neurológica que fixam as pessoas em determinadas funções com base em sua aparência e no que elas foram historicamente designadas ou nas características e estereótipos pelos quais foram categorizadas. Nenhuma categoria étnica ou racial é imune às mensagens que todos recebemos sobre a hierarquia e, portanto, ninguém escapa às suas consequências.

Quando assumimos que uma mulher não está habilitada para liderar uma reunião, uma empresa ou o país, ou que uma pessoa de cor ou um imigrante não pode ser a pessoa com autoridade, não é residente de uma determinada comunidade, não poderia ter participado de uma escola particular ou mesmo ser merecedora de tal, quando sentimos uma pontada de choque e de ressentimento, de uma ferida pessoal, uma sensação de injustiça ou talvez até vergonha de nosso desconforto ao ver alguém de um grupo marginalizado em um emprego, um carro ou casa ou faculdade ou mesmo num compromisso mais prestigioso do que fomos levados a esperar, estamos refletindo a codificação eficiente da casta, o reconhecimento subconsciente de que a pessoa saiu de seu lugar assumido em nossa sociedade. Estamos respondendo às nossas instruções incorporadas sobre quem deve estar onde e quem deve estar fazendo o quê, há uma violação da estrutura e/ou dos limites que são as marcas da casta.

Raça e casta não são a causa e não são responsáveis ​​por todos os resultados ruins ou encontros desagradáveis. Mas a casta se torna um fator, para qualquer grau infinitesimal, nas interações e decisões entre gênero, etnia, raça, status de imigrante, orientação sexual, idade ou religião que têm consequências em nossa vida cotidiana e em políticas que afetam nosso país e além. Pode não ser tão consumidor de tudo quanto seus alvos podem percebê-lo ser, mas também não é a relíquia antiga, o anacronismo de longa data, que os pós-raciais, pós-inimigos de tudo continuam desejando. Sua invisibilidade é o que lhe confere poder e longevidade. A casta, juntamente com sua fiel raça de servos, é um fator X em quase todas as equações norte americanas e qualquer resposta que alguém possa ter para lidar com nossos desafios atuais é falha sem ela.

Através do nevoeiro de Delhi para os paralelos na Índia e na América do Norte

Meu voo para a Índia pousou em um véu cinza que escondia o terminal e sua torre no aeroporto internacional de Déli. Era janeiro de 2018, meus primeiros momentos no subcontinente. O piloto procurou uma via de passagem através da neblina como uma cortina. Eram duas da manhã e era como se tivéssemos pousado em uma chaleira a vapor, ainda estávamos no ar em uma nuvem e o ar noturno pressionando contra as janelas da cabine, não podendo ver nada no chão. Eu não tinha ouvido falar de chuva na previsão e fiquei fascinada por esse nevoeiro sobrenatural no meio da noite, até perceber que não era nevoeiro, mas fumaça — de usinas de carvão, dos carros e da queima de resíduos — que estava presa ao vento estagnado. A poluição foi uma mortalha no início para ver a Índia como realmente ela era.

Ao amanhecer, o sol empurrava a neblina e, assim que me conectei com meus anfitriões, corri junto com eles para atravessar um cruzamento, um trecho aberto de asfalto com carros correndo em todas as direções, sem faixas ou limites de velocidade. Fomos pelas ruas laterais para a conferência que estávamos assistindo. Vi altares à beira do caminho e templos de cogumelos com suas guirlandas e flores de seda para as divindades hindus na base das figueiras sagradas. Lá, os passageiros podem fazer uma pausa para refletirem quando se dirigem ao trabalho, a um exame ou a uma consulta médica. Os santuários da calçada me pareciam exóticos até que pensei no ritual norte americano de altares espontâneos de flores e balões no local de algo muito diferente, no local de um acidente ou tragédia, como foi com a Heather Heyer, ativista morta no infame comício da extrema direita em Charlottesville, Virgínia, apenas alguns meses antes. Ambos altares refletem um desejo humano de se conectar e honrar algo ou alguém além de nós mesmos.

Os Estados Unidos e a Índia são profundamente diferentes entre si — em cultura, tecnologia, economia, história, composição étnica. E, no entanto, muitas gerações atrás, estas duas grandes terras tinham situações paralelas, cada uma protegida por oceanos, férteis, cobiçadas e governadas por um tempo, pelos britânicos. Cada uma adotou hierarquias sociais e mantém grandes abismos entre os mais altos e os mais baixos em suas respectivas terras. Cada uma foi conquistada por pessoas que se dizem ser arianos que chegam, em um caso, do outro lado do Oceano Atlântico, e no outro, das terras do norte da Índia. Os que são considerados mais baixos em cada país serviriam aos que eram considerados elevados. O país mais jovem, os Estados Unidos, se tornaria a democracia mais poderosa da Terra. O mais antigo, a Índia, se tornaria o mais populoso.

Suas hierarquias são profundamente diferentes. E, no entanto, como se operassem com o mesmo manual de instruções, traduzido para atender às suas culturas distintas, ambos os países adotaram métodos semelhantes para manterem linhas rígidas de demarcação e protocolos. Ambos os países mantiveram sua casta dominante separada, além e acima daquelas consideradas mais baixas. Ambos exilaram seus povos originários — os Adivasi na Índia, os nativos norte americanos nos Estados Unidos — para terras remotas e às margens invisíveis da sociedade. Ambos os países promulgaram uma amálgama de leis para acorrentarem lá nas profundezas, o grupo mais humilde — os Dalits na Índia (anteriormente conhecidos como intocáveis) e os afro-americanos nos Estados Unidos —, usando o terror e a força para mantê-los lá.

“Talvez apenas os judeus tenham tanto tempo de história de discriminação quanto os Dalits”, escreveu o advogado dos direitos civis norte-americanos Yussuf Naim Kly em 1987. “No entanto, quando consideramos a natureza do sofrimento imposto a eles, é o similar afro-americano da escravização, do apartheid e da assimilação forçada que vem à mente”.

Desde então, os Estados Unidos e a Índia aboliram as leis formais que definiam seus sistemas de castas — os Estados Unidos em uma série de leis de direitos civis na década de 1960 e a Índia mais de uma década antes, a partir de 1949 —, mas ambos os sistemas de castas vivem em corações e hábitos, instituições e infra-estruturas. Ambos os países ainda vivem com o resíduo de códigos que prevaleceram por muito mais tempo do que não.

Nos dois países e, muitas vezes, ao mesmo tempo, as castas mais baixas trabalhavam para seus senhores – afro-americanos nos campos de tabaco ao longo de Chesapeake/Virgínia ou nos campos de algodão do estado do Mississippi. Já os Dalits, colhendo chá no estado indiano de Kerala e o algodão no distrito de Nandurbar, no estado de Maharashtra. Ambos trabalhavam como escravos e, mais tarde, pelo direito de viverem na terra que cultivavam, afro-americanos no sistema de partilha, Dalits no equivalente indiano, conhecido como saldari , ambos ainda confinados a seus papéis fixos no fundo do poço em suas respectivas sociedades.

Enquanto as portas se abriram para as castas subordinadas na Índia e nos Estados Unidos nas décadas desde que a discriminação foi oficialmente proibida, os mesmos espasmos de resistência atingiram os dois países. O que é chamado de “ação afirmativa” nos Estados Unidos, na Índia é chamado de “reservas”. São igualmente impopulares com as castas superiores de ambos os países, com o rastreamento de idiomas na etapa de bloqueio, com queixas de discriminação reversa em um e casteísmo reverso em outros.

Existem muitas semelhanças gerais com os sistemas de castas dos países, mas não são iguais na forma bem como estruturados ou como operam. O sistema norte americano foi fundado como uma hierarquia basicamente de duas camadas, com seus contornos definidos pelo grupo superior, aqueles identificados como brancos e pelo grupo subordinado, aqueles identificados como negros, com imigrantes de fora da Europa, formando castas médias borradas que tentavam ajustar-se dentro de uma estrutura bipolar. Já os povos originários, nativos dos tempos antes dos chamados norte americanos, exilaram-se em grande parte fora dela.

O sistema de castas indiano, por outro lado, é uma elaborada rede de milhares de subcastas, ou jatis , correlacionados com região e vila, que se enquadram nas quatro varnas principais – o brâmane, o kshatriya, o vaishya, o shudra e o quinto excluído, os dalits. E este sistema é mais complicado ainda pela presença de não-hindus – incluindo muçulmanos, budistas, sikhs e cristãos — que estão fora do sistema de castas original, mas que se incorporaram ao funcionamento do país, às vezes diante de resistência e ataque, e podem ou não possuir classificações informais entre si e em relação às varnas.

Diz-se que o sistema de castas indiano é historicamente estável e inquestionável por quem está dentro dele, por ter vinculação à religião e à crença hindu na reencarnação. Ou seja, a crença de que uma pessoa exerce nesta vida o carma dos anteriores, sofre a punição ou colhe os frutos de ações em vidas passadas e quanto mais se seguir as regras da casta em que nasceu, mais elevada será sua posição na vida seguinte.

Alguns observadores dizem que é isso que distingue o sistema de castas indiano de qualquer outro, que as pessoas da casta mais baixa aceitam seu lote, que é fixo e inflexível, sendo que os Dalits presumivelmente vivem seu carma decretado pelos deuses e fazem seu trabalho humilde sem queixas, sabendo não sonhar com mais nada. Para sobreviver, algumas pessoas em uma casta subordinada podem aprender e acreditar que a resistência é inútil. Mas essa visão condescendente desconsidera gerações de resistência e o trabalho do amado líder Dalit Bhimrao Ambedkar e do reformador Jyotiba Phule antes de B.Ambedkar. Também foi assumido erroneamente que com os africanos escravizados e desconsidera uma verdade fundamental da espécie: de que todos os seres humanos almejam a liberdade.

Os Dalits não estavam mais satisfeitos com a sorte do que qualquer um. Em um sistema de castas, a conformidade conflitante com a aprovação é desumanizante por si só. Muitos Dalits observavam além de sua terra natal, pesquisavam as pessoas oprimidas em todo o mundo e identificavam as pessoas mais próximas de suas lamentações. Eles reconheceram um destino compartilhado com os afro-americanos, poucos dos quais teriam conhecimento do sofrimento dos Dalits. Alguns sentiram um parentesco tão forte com uma ala do movimento norte americano pelos direitos civis e o acompanharam tão de perto que, na década de 1970, criaram os Dalit Panthers, inspirados no Partido dos Panteras Negras.

Vários anos atrás, um grupo de professores majoritariamente afro-americanos fez uma viagem a uma vila rural no estado indiano de Uttar Pradesh. Lá, centenas de moradores da subcasta mais humilde, os catadores, se reuniram para uma cerimônia de boas-vindas aos norte americanos.

Os moradores cantaram canções de libertação Dalit para a ocasião. Então eles se voltaram para seus convidados norte americanos e os convidaram a cantar uma canção de libertação própria. Um professor de direito da Universidade de Indiana, Kenneth Dau-Schmidt, começou uma música que os manifestantes pelos direitos civis cantaram em Birmingham e Selma antes de enfrentarem os cães dos xerifes e as mangueiras de incêndio. Quando chegou ao refrão, os anfitriões Dalit se juntaram e começaram a cantar com seus colegas norte americanos. Através dos oceanos, eles conheciam bem as palavras “Nós venceremos”.

O Mudsill e o Jati

Quando uma casa está sendo construída, a peça mais importante da estrutura é a primeira viga de madeira presa à fundação. Essa peça é chamada de soleira, placa que corre ao longo da base de uma casa e ancora toda a estrutura acima dela. As vigas e sub-pisos, os tetos e janelas, as portas e os telhados, todos os componentes que fazem dela uma casa são construídos sobre esta soleira. Em um sistema de castas, a soleira é a casta inferior em que tudo o mais repousa.

No sistema de castas indiano, uma hierarquia infinitamente mais elaborada, a subcasta ou jati , na qual uma pessoa nasceu, estabeleceu a ocupação que sua família cumpria, de lavadores de latrinas a sacerdotes nos templos. Aqueles que nasceram de famílias que coletavam lixo ou curtiam os couros dos animais ou lidavam com os mortos eram vistos como os mais poluídos e os mais baixos da hierarquia, intocáveis ​​por causa da temida e ingrata, embora necessária, tarefa que presumivelmente nasceram para cumprir.

Da mesma forma, os afro-americanos, durante a maior parte do tempo nesta terra, foram relegados aos empregos mais sujos, degradantes e menos desejáveis ​​por definição. Após a escravização e até o século XX, eles se restringiram principalmente ao papel de mão de obra básica e de empregados — domésticos, jardineiros, motoristas e zeladores. O máximo que aqueles que conseguiram obter educação poderiam esperar era ensinar, ministrar, atender às necessidades de saúde ou enterrar outras pessoas de casta subordinada.

O estado da Carolina do Sul, logo após a Guerra Civil, proibiu efetivamente os negros de realizarem qualquer trabalho que não fosse o trabalho agrícola ou doméstico, definindo seu lugar no sistema de castas. Na Carolina do Norte, durante a escravidão, as pessoas da casta mais baixa eram proibidas de vender ou comercializar mercadorias de qualquer espécie ou serem sujeitas a 39 chicotadas, um costume que ecoou na era do compartilhamento de mão de obra. Isso bloqueou a rota principal para ganhar dinheiro com seus próprios trabalhos agrícolas e os forçou a depender economicamente da casta dominante, como pretendido.

“Qualquer coisa que faça com que o negro aspire se elevar acima do cabo do arado, a panela — em uma palavra, as funções de um servo”, disse o governador James K. Vardaman, do Mississippi, eleito em 1903, “será a pior coisa na terra para o ele. Deus Todo-Poderoso o designou para ser um servo; ele não serve para mais nada”.

Aqueles que conseguiram ir para o norte depois da Guerra Civil e nas ondas maiores da Grande Migração, começando durante a Primeira Guerra Mundial, descobriram que podiam escapar do Sul, mas não de sua casta.

Eles entraram no norte pela parte inferior, abaixo dos europeus do sul e do leste, que talvez ainda não tivessem aprendido inglês, mas que foram admitidos em sindicatos e em bairros mais bem servidos que barravam cidadãos negros cujo trabalho havia limpado o deserto e construído a riqueza do país. Embora não houvesse lei federal restringindo as pessoas a certas ocupações com base na raça, os estatutos no Sul e os costumes no Norte mantinham as pessoas de castas inferiores em seu lugar. As indústrias do norte costumavam contratar afro-americanos apenas como destruidores de greves e os sindicatos os impediam de negócios independentes reservados a brancos, como instaladores de tubos ou encanadores. Os inspetores da cidade se recusariam a assinar o trabalho dos eletricistas negros. Uma fábrica em Milwaukee/Winsconsin afastou homens negros à procura de emprego enquanto caminhavam em direção ao portão da frente.

Assim, as linhas de castas na América do Norte podem ter parecido ainda mais sombrias do que as da Índia. Em 1890, “85% dos homens negros e 96% das mulheres negras eram empregados em apenas duas categorias ocupacionais”, escreveu o sociólogo Stephen Steinberg, “agricultura e serviços domésticos ou pessoais”. Quarenta anos depois, quando a Depressão se instalou e os afro-americanos se mudaram para as cidades do norte, as porcentagens de negros na base da hierarquia trabalhista permaneceram as mesmas, embora até então quase metade dos homens negros fizesse trabalho manual chamado apenas para serviços braçais. Apenas 5% foram listados como trabalhadores de colarinho branco — muitos deles ministros, professores e proprietários de pequenas empresas que atendiam a outros negros.

A histórica associação entre trabalho braçal e negritude serviu para prender ainda mais os negros em um círculo de subserviência na mente norte americana. Eles foram punidos por estarem na condição de serem forçados a suportar. E a imagem da servidão sombreava-os na direção da liberdade.


À medida que avançamos em nossas vidas diárias, a casta é a arrumadeira sem palavras de um teatro escuro, a lanterna lançada nos corredores, nos guiando para nossos assentos designados para um espetáculo.


À medida que o sistema de castas evoluiu no século 20, a casta dominante encontrou maneiras cada vez mais elaboradas de reforçar a hierarquia ocupacional. “Se pessoas brancas e de cor são empregadas juntas”, escreveu o sociólogo Bertram Doyle na década de 1930, “elas não se envolvem nas mesmas tarefas, geralmente, e certamente não são iguais”. Ele continuou: “Os negros raramente, se é que alguma vez tiveram, autoridade sobre os brancos. Além disso, o negro espera permanecer nos escalões inferiores; se elevado, se é que existe, será apenas sobre outros negros”. Não importa o quão bem ele faça seu trabalho, Doyle escreveu: “ele não pode esperar muitas vezes por promoção”.

Desde o início do século 20, os afro-americanos mais ricos — de Louis Armstrong a Muhammad Ali — são tradicionalmente artistas e atletas. Mesmo agora, em um ranking recente dos afro-americanos mais ricos, 17 dos 20 melhores — de Oprah Winfrey a Jay-Z e Michael Jordan — ganharam sua riqueza como inovadores e depois magnatas, foi na indústria do entretenimento ou nos esportes.

Historicamente, esse grupo passaria a predominar o reino esculpido para eles, muitas vezes comemorado, a menos que se enfrentassem contra uma pessoa da casta dominante, assim como o boxeador preto Jack Johnson quando ele foi colocado contra o boxeador branco James J. Jeffries, em 1910. Muitos brancos se ressentiram com Johnson depois que ele se tornou o primeiro campeão dos pesos pesados ​​negros em 1908. Eles fizeram uma campanha para convencer Jeffries, o ex-campeão invicto, a desistir da aposentadoria para recuperar o título que acreditavam ser deles, os brancos. Em uma época de ódio racial virulento, a imprensa alimentou paixões ao chamar Jeffries de “a Grande Esperança Branca”.

Os dois se enfrentaram no dia 4 de julho em um estádio lotado, construído apenas para esta ocasião, em Reno/Nevada. Foi anunciado como a “Luta do Século”, com apostadores favorecendo fortemente Jeffries para vencer. Johnson derrubou Jeffries no 15º round e foi declarado vencedor, com zombarias e epítetos. Foi tomada como uma afronta à soberania branca e provocou tumultos brancos por todo o país, no Norte e no Sul, incluindo 11 em Nova York, onde multidões brancas atearam fogo a cortiços negros e tentaram linchar dois homens negros por causa da derrota. A mensagem era que, mesmo em uma arena em que a casta mais baixa havia sido permitida, eles deveriam conhecer e permanecer em seu lugar.

Identidade equivocada

Alguns anos atrás, eu era correspondente nacional do The New York Times, com sede em Chicago, e decidi fazer um artigo leve sobre a Magnificent Mile de Chicago, trecho privilegiado da Michigan Avenue que sempre fora a vitrine da cidade, onde agora vários grandes nomes ligados ao luxo de Nova York e de outras metrópoles, estavam prestes a se estabelecer. Imaginei que os varejistas ficariam felizes em conversar com a imprensa. Enquanto planejava o artigo, entrei em contato com eles para entrevistas. Todo mundo que liguei ficou emocionado ao descrever sua incursão em Chicago e serem entrevistados pelo The Times.

As entrevistas ocorreram como esperado até a última. Eu tinha chegado alguns minutos mais cedo para ter certeza de que poderíamos começar a tempo, dado o prazo que eu estava enfrentando.

A boutique estava vazia a essa hora tranquila do final da tarde. A assistente do gerente me disse que ele chegaria em breve de outro compromisso. Ela foi para um canto nos fundos enquanto eu ficava sozinha no showroom. Um homem de terno e gravata finalmente entrou, atormentado e sem fôlego. No canto de trás, ela concordou que era ele, então fui me apresentar e começar. Ele estava sem fôlego, agitado, ainda estava com o casaco e checando o relógio.

“Oh, eu não posso falar com você agora”, disse ele, passando por mim. “Estou muito, muito ocupado. Estou atrasado para um compromisso”.

Fiquei meio confusa no começo. Teria ele marcado outro compromisso exatamente na mesma hora? Por que ele agendaria dois compromissos ao mesmo tempo? Não havia mais ninguém na boutique, a não ser nós dois e a assistente dele lá atrás.

“Penso que seja eu o seu compromisso”, disse eu.

“Não, este é um compromisso muito importante com o The New York Times”, disse ele, tirando o casaco. “Eu não posso falar com você agora. Vou ter que conversar com você noutra hora”.

“Mas eu sou do The New York Times”, disse a ele, caneta e caderno na mão. “Eu conversei com você ao telefone. Fui eu quem marcou a consulta às 16h30”.

“Qual o seu nome?”

“Isabel Wilkerson, do The New York Times”.

“Como eu sei disso?” respondeu, ficando impaciente. “Olha, eu disse que não tenho tempo para conversar com você agora. Ela estará aqui a qualquer momento”.

Ele olhou para a entrada da frente e novamente para o relógio.

“Mas eu sou Isabel. Deveríamos ter a entrevista agora”.

Ele soltou um suspiro. “Que tipo de identificação você tem? Como um cartão de visita?”

Esta foi a última entrevista para a publicação, e eu já havia distribuído todos quando cheguei a este.

“Eu estive entrevistando o dia todo”, disse a ele. “Estou sem nenhum agora”.

“E a identificação? Você tem alguma licença?”

“Eu não deveria ter que mostrar minha licença, mas aqui está ela”.

Ele deu uma olhada superficial.

“Você não tem nada com o The New York Times?”

“Por que eu estaria aqui se não fosse para entrevistá-lo? Todo esse tempo já passou. Estamos aqui e ninguém mais apareceu”.

“Ela deve estar atrasada. Vou ter que pedir para você sair para que eu possa me preparar para a minha consulta”.

Saí e voltei ao escritório do Times, atordoada e irritada, tentando descobrir o que acabara de acontecer. Foi a primeira vez que fui acusada de estar passando por mim mesma. Suas noções de casta sobre quem deveria estar fazendo o quê na sociedade o haviam cegado tanto, que ele descartou a ideia de que o repórter que ele esperava ansiosamente, animado para conversar, estava bem na frente dele. Parecia não lhe ocorrer que um correspondente nacional do The New York Times pudesse estar encaixado numa embalagem como a minha, apesar de todas as indicações de que era eu que estava envolta nela.

O artigo foi publicado naquele domingo. Por não ter conseguido entrevistá-lo, ele não recebeu nenhuma menção. Teria sido uma boa publicidade para ele, mas as outras entrevistas a tornaram desnecessária no final. Enviei a ele um clipe do material junto com o cartão de visita que ele havia pedido. Até hoje, nunca quis pisar nesta loja. Não mencionarei o nome, não por causa da censura ou por um desejo de proteger a reputação de qualquer empresa, mas por causa de nossa tendência cultural de acreditar que, se apenas identificarmos este comportamento ofensivo supostamente raro, teremos erradicado o problema . O problema poderia ter acontecido em qualquer lugar, porque o problema está, de fato, na raiz da estrutura da sociedade.

A corrida para entrar na tenda branca

Na virada do século 20, quando o país começou a refinar as regras de admissão à casta dominante e intensificou ainda mais as restrições sobre as pessoas de baixo, Ybor City, na Flórida, como em outros lugares do sul, começou a segregar em seus bondes. Os cubanos, incertos quanto à classificação, ficaram aliviados “ao descobrirem que podiam se sentar na seção branca”, segundo o pesquisador histórico Jan Voogd.

Ao estender o sonho de domínio sobre a terra e tudo o que estiver nela, para qualquer um que pudesse atender à definição de branco, o sistema de castas norte americano tornou-se uma aposta do tipo tudo-ou-nada para o escalão superior.

Os permitidos a estar sob a tenda branca poderiam colher os frutos da cidadania plena, subir para cargos de alto status (ou na medida em que seus talentos os levassem), obter acesso ao melhor que o país tinha a oferecer ou, no mínimo, ser concedido o respeito nas interações cotidianas de grupos subordinados que arriscaram agressão por qualquer passo em falso. Um sistema de castas de duas camadas elevou as apostas pela brancura, levando a um tribunal cheio de pessoas na linha limítrofe que buscavam admissão na casta superior.

Um imigrante japonês chamado Takao Ozawa vivia nos Estados Unidos há mais de 20 anos. Ele tentou afirmar que era digno de cidadania e deveria se qualificar como branco porque sua pele era mais clara do que a de muitas “pessoas brancas”. O que significava ser branco se alguém com pele branca realmente não era branco? Seu caso foi até a Suprema Corte. Em 1922, o tribunal decidiu por unanimidade que o branco não significava cor da pele, mas “caucasiano” e que os japoneses não eram caucasianos, apesar do fato de que poucos americanos brancos tinham origem nas montanhas do Cáucaso da Eurásia e que aqueles que o faziam eram exatamente os que vinham sendo mantidos de fora também.

A decisão de Ozawa e outras daquela época foram uma catástrofe comovente para os asiáticos em busca de cidadania. Com o sentimento pró-Europa Ocidental em alta, o governo começou a rescindir a cidadania naturalizada de pessoas de ascendência asiática que já estavam aqui. Isso representou o abandono de pessoas que viveram legalmente nos Estados Unidos durante a maior parte de sua vida adulta, como ecoaria um século depois com imigrantes sem documentos cruzando a fronteira dos EUA com o México.

Um imigrante indiano chamado Vaishno Das Bagai estava nos Estados Unidos há 10 anos, quando foi destituído de sua cidadania em 1925, como resultado dessas decisões. Naquela época, ele tinha uma esposa e três filhos e seu próprio armazém geral na Fillmore Street, em São Francisco. Ele perdeu o negócio que havia construído, por causa de uma lei da Califórnia que restringia os direitos econômicos de pessoas que não eram cidadãos. Ficou sem passaporte e, portanto, foi frustrado em sua tentativa de voltar para a Índia, tornando-se assim um homem sem pátria. Ele estava longe de sua casa original e rejeitado pela nova. Um dia, viaja sozinho para San Jose e aluga um quarto. Lá, ele ligou o gás e terminou com sua vida.

Não importa qual rota um candidato limítrofe tenha adotado para obter aceitação, o sistema de castas mudou de forma afim de manter a casta superior pura, por seus próprios termos. Que fio fino e desgastado mantinha as ilusões unidas. Um romancista japonês observou uma vez que, no papel, de qualquer maneira, era um único sinal, um apóstrofo, que ficava entre a rejeição e a aceitação à cidadania de um Ohara japonês versus um O’Hara irlandês.

Esses casos revelaram não apenas o absurdo, mas a imprecisão desses rótulos artificiais e a percepção de pureza ou poluição imputado por eles. Ao mesmo tempo, expuseram a rigidez inflexível de um sistema de castas, desafiador diante de evidências contrárias à sua fundação, como ele se mantém firme contra o assalto à lógica.

A intrusão da casta na vida cotidiana

Em uma tarde de domingo em outubro de 2018, uma mulher branca começou a rastrear um homem negro na Geórgia quando o viu sair com duas crianças brancas. O homem negro, Corey Lewis, era o cuidador das crianças e, no carro dela, ela o perseguia enquanto ele as conduzia de um supermercado, Walmart, para um posto de gasolina e depois para sua casa. Ela começou a rastrear Lewis depois que ele não permitiu que ela, uma completa estranha, conversasse com o mais velho dos dois para confirmar, para satisfazer sua avaliação, se estavam bem.

Se existe algo que distingue a casta na América do Norte, é, primeiro, o policiamento dos papéis e comportamentos esperados das pessoas com base em sua aparência e, segundo, o monitoramento de limites — o desrespeito aos limites das castas subordinadas ou a construção apaixonada deles por aqueles na casta dominante, para se manter a hierarquia de pé, no seu lugar.

Os protocolos de castas dos dias de hoje são frequentemente menos sobre ataques evidentes ou hostilidade consciente. Eles são como o vento, suficientemente poderosos para derrubá-lo, mas invisíveis à medida que realizam seu trabalho. Eles são sustentados pela memória muscular da posição relativa e pelas expectativas de como uma pessoa interage com outras com base em seu lugar na hierarquia. É uma forma de hipervigilância de status, o direito da casta dominante a intervir e afirmar-se onde quer que escolha, a monitorar ou descartar, como entender, aqueles que são considerados inferiores.

Naquela tarde, Lewis, um mentor de jovens que dirige um programa depois da escola, notou a mulher que o seguia e começou a registrar a situação no celular. Em um vídeo, as crianças podem ser vistas calmas e imperturbáveis, presas nos cintos de segurança na traseira do carro.

Sua voz é tensa e incrédula. “Esta senhora está me seguindo”, diz ele, “porque eu tenho duas crianças no banco de trás que não se parecem comigo”.

A mulher ligou para o 911 e perguntou se ela deveria segui-lo. Mesmo que lhe dissessem que não, continuou a segui-lo. Logo depois que Lewis chegou em casa com as crianças, um carro de patrulha parou atrás dele. Um oficial saiu e foi em sua direção.

O policial disse às crianças, um menino de 6 anos e uma menina de 10 anos, para sairem do carro de Lewis, e a voz de Lewis começou a ficar tensa. O resultado desse encontro policial, sua segurança e sua própria vida dependiam do que aquelas crianças diriam e ele pediu que dissessem ao policial quem ele era.

“Por favor”, ele disse a eles.

O policial perguntou às crianças repetidamente: “Vocês estão bem?”

“Jesus tem piedade – o que há de errado com este país?” uma mulher negra lá fora chorou.

Satisfeito que Lewis era, de fato, seu cuidador e que as crianças não estavam em perigo, o policial deu um passo adicional ao ligar para os pais, que estavam saindo para jantar.

“Isso nos derrubou da cadeira”, disse o pai das crianças, David Parker, ao The New York Times.

A casta havia se imiscuído em todas as suas vidas. O direito à casta não se refere a carros e relógios de luxo, clubes de campo e bancos privados, mas sabendo, sem pensar, que se está acima de outro, com base em regras não estabelecidas no papel, mas reforçadas em comerciais, programas de televisão e outdoors, nas salas de reuniões a redações e a subdivisões restritas para quem é morto primeiro na primeira meia hora de um filme, afetando todos, de cima a baixo, na hierarquia. Essa é a banalidade da casta às escondidas.

Após o incidente, um repórter perguntou à menina de 10 anos, Addison, o que ela diria à mulher que os seguiu naquele dia. Seu pai disse ao The Times sua resposta: “Gostaria de pedir a ela que, da próxima vez, tente nos ver como três pessoas, em vez de três cores de pele, porque poderíamos ser os filhos adotivos de Lewis”.

O narcisismo inevitável da casta

Não por culpa de qualquer indivíduo nascido dele, um sistema de castas centraliza a casta dominante como o sol em torno do qual todas as outras giram e a define como o padrão de normalidade, intelecto, beleza, sobre o qual todas as outras são comparadas, medidas , classificadas em ordem decrescente por sua proximidade fisiológica à casta dominante.

Elas estão cercadas por imagens de si mesmas, dos comerciais de cereais a comédias, como sendo as merecedoras, diligentes e superiores na maioria dos aspectos da vida norte americana e seria rara a pessoa que não absorvesse a centralidade construída pelo grupo dominante. Seriam os raros discordantes que se esforçariam para experimentarem o mundo pela perspectiva daqueles considerados abaixo deles ou mesmo para pensarem neles de uma maneira ou de outra. E o sistema de castas não exige isso deles.

A sociedade constrói um alçapão de auto-referência que, sem nenhum esforço por parte das pessoas da casta dominante, involuntariamente lhes impõe um isolamento narcísico daqueles designados para as categorias inferiores. Ele replica na estrutura dos sistemas familiares narcísicos, a interação de papéis coadjuvantes concorrentes — a criança de ouro das castas médias das chamadas minorias modelo, a criança perdida dos povos indígenas e a casta do bode expiatório na parte inferior.

A centralidade da casta dominante não se perde naqueles considerados abaixo dela na hierarquia. Os degraus mais altos e mais baixos são vistos tão distantes que parecem imóveis, plantados no seu lugar. Assim, aqueles que estão no meio podem sucumbir à maior angústia e incerteza, à medida que aspiram a um degrau mais alto.

Todos no sistema de castas são treinados para cobiçar a proximidade da casta dominante: um imigrante iraniano sente necessidade de mencionar que um parente tinha cabelos loiros quando criança; um filho de segunda geração de imigrantes do Caribe rapidamente esclarece que eles são dominicanos e categoricamente não são afro-americanos; um imigrante mexicano gabando-se de que um de seus avós no México “parecia um norte americano” — cabelos loiros e olhos azuis —, e neste ponto ele é lembrado por um afro-americano de que os norte americanos têm todas as cores de cabelos e olhos.

Aqueles que estão acostumados a ser a medida de tudo o que é humano podem depender da garantia de que, embora possam ter problemas em suas vidas, pelo menos não estão no fundo. Enquanto os habitantes designados de baixo permanecerem no seu devido lugar, suas próprias identidades e seu futuro parecerão seguros.

“Não importa o quão degradadas sejam suas vidas, os brancos ainda podem acreditar que possuem o sangue, os genes, o patrimônio da superioridade”, escreveu o cientista político Andrew Hacker em seu livro de 1992, Duas Nações. “Não importa o que aconteça, eles nunca podem se tornar ‘negros’.” Hacker continuou: “Os brancos norte americanos de todas as classes acharam reconfortante preservar os negros como uma casta subordinada: uma presença que, apesar de toda a sua dor e problemas, ainda oferece aos brancos consolo em um mundo estressante”.

Estamos acostumados ao conceito de narcisismo — uma condição complexa de direito auto-engrandecedor e desconsideração dos outros, que cresce devido a uma insegurança oca — como se aplica aos indivíduos. Mas alguns estudiosos o aplicam ao comportamento de nações, tribos e subgrupos. Freud foi um dos primeiros psicanalistas a conectar um diagnóstico psiquiátrico a Narciso da mitologia grega, o filho do deus do rio que se apaixonou por sua própria imagem em uma piscina de água e, sem perceber que era ele quem estava “desprezando” seu carinho, morreu em desespero. “Narciso não conseguia conceber que estava apaixonado por seu próprio reflexo”, escreveu a psicóloga clínica de Harvard Elsa Ronningstam em seu livro de 2005, Identificando e compreendendo a personalidade narcisista. “Ele foi pego em uma ilusão”.

Assim também acontece com grupos treinados para acreditar em sua soberania inerente. “A essência dessa superestimação da própria posição e o ódio por todos que diferem dela é o narcisismo”, escreveu Erich Fromm, um dos principais psicanalistas e teóricos sociais do século XX. “Ele não é nada”, escreveu Fromm, “mas se ele pode se identificar com sua nação ou transferir seu narcisismo pessoal para a nação, então ele é tudo”.

Fromm conhecia bem os perigos do narcisismo de grupo, tanto por seu treinamento em psicanálise quanto por sua experiência pessoal. Ele nasceu em uma família judia na Alemanha e atingiu a maioridade durante a Primeira Guerra Mundial, testemunhando o ódio e o fervor que se apoderaram daquele conflito, apenas para vê-lo ressurgir novamente com a ascensão do Terceiro Reich. Ele conseguiu fugir da Alemanha depois que os nazistas tomaram o poder em 1933, forçado a abandonar o instituto psicanalítico que ele havia construído e imigrar para os Estados Unidos.

Ele viu em primeira mão, e pelas lentes de um psicanalista, o poder sedutor dos apelos nacionalistas às ansiedades das pessoas comuns. Quando uma pessoa está profundamente investida no domínio de seu grupo, “tem um sentimento eufórico de ‘no topo do mundo’, enquanto na realidade ele está em um estado de auto-inflado”, escreveu Fromm. “Isso leva a uma grave distorção de sua capacidade de pensar e julgar. … Ele e sua percepção estão supervalorizados. Tudo lá fora está subvalorizado”. E por baixo pode estar o medo de que ele não possa viver de acordo com o ideal construído de sua própria perfeição.

A história mostrou que nações e grupos conquistarão, colonizarão, escravizarão e matarão para manter a ilusão de sua primazia. Seu investimento nessa ilusão lhes dá tanto interesse na inferioridade daqueles que são considerados abaixo deles quanto em sua suposta superioridade. “A sobrevivência de um grupo”, escreveu Fromm, “depende, em certa medida, do fato de seus membros considerarem sua importância tão grande quanto ou maior que a de suas próprias vidas”.

Assim, quando ameaçados, estão dispostos a sacrificar a si mesmos e a seus ideais pela sobrevivência do grupo do qual extraem sua auto-estima. O teórico político Takamichi Sakurai, em seu exame de 2018 das perspectivas ocidentais e orientais sobre o tema, e canalizando Fromm, escreveu sem rodeios: “O narcisismo de grupo leva as pessoas ao fascismo”. Ele continuou: “Uma forma extrema de narcisismo de grupo significa narcisismo maligno, o que dá origem a uma política fascista fanática, um racialismo extremo e assim por diante”.

Fromm identificou esse tipo de narcisismo de grupo em duas nações em particular: “o narcisismo racial que existia na Alemanha de Hitler e que é encontrado no norte americano do sul”, escreveu ele em 1964, no auge da era dos direitos civis. Nos dois casos, Fromm achou a classe trabalhadora entre as mais suscetíveis, abrigando uma “imagem inflada de si mesma como o grupo mais admirável do mundo e de ser superior a outro grupo racial que é apontado como inferior”. Uma pessoa deste grupo “sente: ‘Mesmo sendo eu pobre e sem cultura, sou alguém importante porque pertenço ao grupo mais admirável do mundo — sou branco’; ou ‘eu sou um ariano’.”

Um grupo envolvido em fervor narcisista “está ansioso por ter um líder com quem possa se identificar”, escreveu Fromm. “O líder é admirado pelo grupo que projeta seu narcisismo nele”. O tipo certo de líder pode inspirar uma conexão simbiótica que suplanta a lógica. O grupo suscetível, Fromm nos ensina, vê-se no líder narcísico, torna-se um com o líder, vê sua prosperidade e seu destino como deles.

O preço que pagamos por um sistema de castas

No inverno de 2019 (nt.: relaciona-se ao tempo do coronavírus), uma forma de vida invisível despertou no Hemisfério Oriental e começou a se espalhar pelos oceanos.

A nação mais poderosa da Terra assistiu a trabalhadores distantes, em equipamentos de proteção, testando o que ninguém podia ver e iludiu-se ao acreditar que a excepcionalidade norte americana, de alguma forma, lhe concederia imunidade contra as tristezas de outros países.

No entanto, o vírus chegou a essas margens e se plantou nas brechas da disparidade, nos parentescos e na infraestrutura desgastada do sistema de castas do país, assim como explorou o sistema imunológico enfraquecido do corpo humano.

Logo, os EUA tiveram o maior surto de coronavírus do mundo. O vírus expôs a vulnerabilidade de todos os seres humanos e as camadas hierárquicas.

Embora alguém pudesse contrair o vírus, foram os asiáticos-americanos que se tornaram o bode expiatório simplesmente porque se pareciam às pessoas da parte do mundo que o vírus atacou pela primeira vez. À medida que a crise avançava, foram os afro-americanos e os latinos que começaram a morrer a taxas mais altas. Condições pré-existentes, muitas vezes ligadas ao estresse das pessoas marginalizadas, contribuíram para a divergência. Mas foram as ocupações semelhantes a castelos na parte inferior da hierarquia — balconistas, motoristas de ônibus, entregadores de ‘delivery‘, trabalhadores de saneamento, empregos mal remunerados com altos níveis de contato público — que os colocou em maior risco de contrair o vírus em primeiro lugar. Estes estão entre os empregos mais baixo na soleira em uma pandemia, os empregos com menor probabilidade de garantir cobertura de saúde ou dias de licença, mas que sustentam o resto da sociedade, permitindo que outros se abriguem nesta sociedade.

À medida que o número de mortes subia para o mais alto de todos os países, os Estados Unidos — e aqueles que buscavam liderança — tiveram que aceitar as fragilidades não testadas de seu ecossistema social. A pandemia e a falta de prontidão egoísta do país, muitas vezes egocêntrica, expuseram “uma falha de caráter sem paralelo na história dos EUA”, escreveu Stephen Walt, professor de relações internacionais da Universidade de Harvard, na publicação Foreign Policy. A pandemia forçou a nação a abrir os olhos para o que talvez não quisesse ver, mas precisava.

“Esta é uma civilização procurando por sua humanidade”, disse-me Gary Michael Tartakov, historiador social e cultural, quando discutimos sobre castas nos EUA, em uma conferência em 2018. “Desumanizou outras pessoas para construir sua civilização. Agora ela precisa encontrar a sua própria humanidade”.

Foi no início da primavera que fui forçada a enfrentar o mistério do canto deformado do teto em minha antiga casa, convocando técnicos para tentar resolvê-lo. Um homem usou uma luz infravermelha. Outros entraram no sótão e no telhado. O arco no canto veio de um vazamento antigo que havia aumentado além do esperado, descuidado por uma série de proprietários anteriores. A umidade do vazamento original evaporou por muito tempo, mas deixou o gesso enfraquecido ao longo dos anos, pesado e puxando as costuras adjacentes, polegada a polegada, até que uma parte do teto agora ameaçava desmoronar e talvez levar o resto da estrutura junto.

Não tinha sido eu que tinha causado este problema, não estava lá quando o vazamento se dirigiu pela primeira vez em direção ao teto. Na verdade, eu tinha sido a única a instalar um novo telhado. Mas coube a mim consertar ou sofrer as consequências. Os empreiteiros se ofereceram para emendá-lo, colocando um forro sobre o vazamento. Um estucador disse que poderia recortar a seção frágil para se misturar com o resto do teto antigo. Seria indistinguível a olho nu, mas não protegeria contra mais fraquezas no que restava do gesso original, tenso como nas fragilidades adjacentes.

A única maneira de consertá-lo de verdade, disse ele, era arrancar o gesso, até as vigas, inspecionar e reconstruir o ripado apodrecido e recolocar inteiramente um novo teto. E assim fizemos. Demorou dias para raspar e inspecionar, reformular e reconstruir. Quando terminado, estava discretamente vistoso, como os tetos normalmente são.

E eu pude respirar livre, sabendo, como somos agora chamados a fazer neste nosso tempo, nesta casa que todos nós habitamos, que era sólida e segura, não meramente fazendo remendos e encobrindo as falhas, mas fazendo talvez até melhor do que já foi, tanto para nós mesmos como para as gerações que vieram depois de nós.

Fotografias da fonte, no topo: Martin Luther King Jr. na Índia: Rangaswamy Satakopan / Associated Press. Silhueta de Rosa Parks: UPI / Anunciante diário / Associated Press. Acima: Protesto do veredicto de Rodney King: Alex Brandon / Associated Press. Homem no chão e policial com arma: Jim Wilson / The New York Times. Braços e mãos durante protestos de George Floyd: Malike Sidibe para o New York Times. Ambos, bandeira: Choness / Getty Images.

Tradução livre e parcial de Luiz Jacques Saldanha, julho de 2020.