O ano parece ter começado torto para o país do maple, a árvore que dá a folha-símbolo do Canadá (e um xarope maravilhoso para panquecas). “Argo“, que ganhou o Oscar de melhor filme do ano, não fez desafetos apenas no Irã. Ao retratar o drama da crise dos reféns à embaixada americana em Teerã, em 1979, o ator-diretor Ben Affleck tensiona o público com cenas de fanatismo e massas enfurecidas.
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Ele é o mocinho da história, um agente da CIA enviado a terras hostis para salvar seis americanos refugiados na casa do embaixador canadense Ken Taylor – que, ao dar abrigo ao sexteto, arrisca a própria pele e a de sua mulher. Mas em “Argo” os canadenses são meio coadjuvantes, como se estivessem ali por acaso, retratados com buttons da bandeira na lapela e falando Toronto sem mencionar o segundo “t”. Mereciam muito mais, comentou o ex-presidente Jimmy Carter ao reconhecer que na operação-resgate, “90% do plano era canadense”. Na vida real dos últimos tempos, o governo do primeiro-ministro Stephen Harper abandonou de vez a imagem de país bonzinho.
A reportagem é de Daniela Chiaretti e publicada no jornal Valor, 09-04-2013.
O Canadá vem quebrando sua tradição de bancar fortemente o envio dos “capacetes azuis”, as forças de manutenção da paz das Nações Unidas, para regiões de conflito. Pulou fora de seu compromisso com o clima do mundo ao desistir do Protocolo de Kyoto, vem cortando floresta boreal para extrair galões de petróleo de xisto betuminoso e há poucos dias anunciou que desistiu da Convenção de Combate à Desertificação – um acordo internacional que, basicamente, procura dar recursos a regiões pobres e famintas do planeta. O país de Leonard Cohen vem ganhando fama de vilão ambiental.
O Canadá era conhecido por defender posições mais ventiladas na arena internacional. A Rio 92, a famosa conferência da ONU de ambiente e desenvolvimento, teve um canadense, Maurice Strong, como secretário-geral. Naquela ocasião, há 21 anos, foram produzidas duas das mais importantes convenções ambientais da história – a do clima e a da biodiversidade – e também marcou a gênese de uma terceira, a do combate à desertificação. Não à toa Montreal foi escolhida como sede do secretariado da convenção da biodiversidade. E foi ali, na conferência do clima de Montreal, em 2005, que ficou decidido que o Protocolo de Kyoto teria um segundo período de vida. Mas esta trajetória de vanguarda tem sido minada.
O Brasil também vem emitindo sinais bem nebulosos
Ao se retirar em dezembro de 2011 do Protocolo de Kyoto, os negociadores canadenses disseram que o acordo não tinha futuro e que o país não iria nem cumprir o que tinha prometido no passado, e um abraço a todos. Em 28 de março, o Canadá anunciou outra desfeita inédita à ONU – declarou que está se retirando da convenção de combate à desertificação, degradação do solo e seca. Foi como dar um tapa nas regiões mais pobres do mundo.
A convenção que combate a desertificação foi assinada por 194 países e entrou em vigor em 1996. Tem por objetivo mobilizar recursos financeiros e tecnológicos para países em desenvolvimento afetados pela seca, fenômeno que só irá piorar com a mudança do clima. É bom lembrar que o Brasil tem a região semiárida mais populosa do planeta, o Nordeste, mas são os africanos os mais gravemente afetados pela desertificação. Isso significa mais miséria e fome para quem já é pobre e faminto. O Canadá, rico e industrializado, diz agora que está fora deste compromisso. É um papelão internacional.
Em poucos dias, na Alemanha, uma reunião com representantes de todos os países que assinaram a convenção de desertificação irá definir novos passos do acordo. O Canadá não irá. O país, que tem 60% de suas terras cultivadas em áreas secas, costumava garantir recursos para dar segurança alimentar aos países pobres. Sua contribuição anual (cerca de US$ 300 mil) é 3% do orçamento da convenção. Harper justificou a decisão dizendo que o tratado é muito burocrático. O governo diz que o país continuará a liderar os esforços em garantir a segurança alimentar e a pesquisar formas de aumentar a produtividade agrícola, especialmente na África. Ali, diz, o Canadá ajudou quatro milhões de pequenos produtores em 11 países e distribuiu sementes que resistem à seca. Tudo ótimo. O governo Harper talvez esteja desafiando mais as Nações Unidas do que propriamente virando as costas para a África ao dizer que prefere seguir a trilha do eu-sozinho do que se j untar a esforços mundiais para combater a mudança do clima e a pobreza no mundo.
É uma posição que lembra a dos Estados Unidos, avesso a acordos internacionais. Só que os EUA de Barack Obama investem em energias renováveis e estão reduzindo emissões de CO2, parte pela redução do ritmo da economia e parte pelo maior uso de gás natural frente ao carvão. Mas as emissões canadenses crescem velozmente. Em 2012 estavam 26% acima dos níveis de 1990 em função da expansão das “tar sands” (na expressão dos ambientalistas) ou “oil sands” (para o governo e a indústria). São depósitos de betume monumentais encontrados na província de Alberta. Trata-se de um tipo de petróleo difícil de extrair e a um custo ambiental gigantesco, mas que transforma o Canadá na terceira maior reserva do mundo depois da Arábia Saudita e da Venezuela.
Quando o assunto é mudança do clima e compromissos, o Canadá não está sozinho em suas contradições, embora as exiba de forma radical e atabalhoada. O Brasil vem emitindo sinais muito nebulosos. Nunca discute o potencial de emissões do pré-sal. É verdade que o desmatamento veio caindo e que a matriz energética de base hídrica é limpa. Mas também é verdade que o eterno benefício do IPI dos carros só joga mais poluentes nas ruas sem que se peça nenhuma contrapartida moderna e ambientalmente mais limpa das montadoras. E que o ressurgimento das térmicas a carvão só faz o país emitir mais. O Plano Nacional de Mudança do Clima, que agora entra em processo de revisão, continua um calhamaço com planos setoriais da indústria, da mineração e do transporte sendo eternamente adiados. “Precisamos de um plano de verdade e não de uma mera lista de ações”, diz André Ferreti, coordenador do Observatório do Clima, rede de 31 ONGs e movimentos sociais.