O Autóctone e o Bem Viver. A filosofia do Bem Viver indígena postula-se como uma “terceira via” às duas grandes opções políticas e econômicas do século XX.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/549055-o-bem-viver-indigena-vai-alem-do-capitalismo-e-do-socialismo
O Autóctone e o Bem Viver. É o que traz esta reportagem é de Enric Llopis e publicada por Rebelión, 13-11-2015. A tradução é de André Langer.
O capitalismo baseia-se na obtenção da mais-valia, do lucro, da “plata”. O socialismo atende à satisfação das necessidades materiais e espirituais do ser humano. O Bem Viver, apesar das coincidências com o socialismo, dá um passo além na defesa de um princípio geral, a vida, explicou o ministro das Relações Exteriores daBolívia, David Choquehuanca, em um ato público organizado em Valência pelo consulado deste país.
O ser humano, assim como as plantas e os animais, alimenta-se do leite da mãe Terra, a água. “Todos fazemos parte dessa grande família”, destaca o chanceler. Esta é a razão pela qual as populações indígenas defendem a necessidade da harmonia com a natureza. “O ser humano faz parte de um todo, é uma parte muito pequena daPachamama”. Mas, acrescenta o ministro das Relações Exteriores, “vivemos as consequências de um modelo de desenvolvimento aplicado até hoje”, que se traduz em uma crise alimentar, energética, financeira e na mudança climática. Os seres humanos fazem parte do “Taj Pacha” (“tudo o que existe”, na língua aimara).
Originário da comunidade aimara de Cota Cota Baja (município de Huarina, no departamento de La Paz), David Choquehuanca começou a participar das lutas sociais e políticas na década de 1980. A mudança de vida ao se transferir do campo para a cidade, para fazer o curso de Filosofia em La Paz, permitiu-lhe constatar as situações de discriminação e exploração dos grupos mais vulneráveis. Por essa razão apoiou as organizações do movimento camponês, particularmente a Confederação Única de Camponeses da Bolívia (CSUTCB), o que o levou a participar dos bloqueios de estradas, greves de fome e de cursos de capacitação. Outro foco de resistência em que se envolveu foi a Campanha “500 anos de resistência” realizada pelo movimento indígena. Em 1998, começou a trabalhar noPrograma NINA, como coordenador nacional, o que o levou à assessoria de organizações e de deputados indígenas nos últimos seis anos.
O discurso do chanceler apela continuamente a transcender os padrões ocidentais. “Nas comunidades, nós não tomávamos as decisões de maneira democrática, mas pelo consenso”. Além disso, “as assembleias não são convocadas quando o ser humano quer. Não se faz, por exemplo, uma assembleia no tempo da lua minguante”. David Choquehuanca introduz o termo “pensasinto” (compartilhar o que uma pessoa pensa, mas também o que ela sente). Na democracia “tradicional”, as maiorias podem submeter as minorias, razão pela qual na Bolívia, aponta o ministro, se esteja trabalhando com a democracia representativa, participativa e direta. Nas comunidades indígenas propõe-se a complementaridade na vida cotidiana do avô com a criança, do homem com a mulher e do ser humano com as plantas e os animais.
Quando se fala em termos genéricos de “sociedade”, explica o ministro das Relações Exteriores, a referência são as pessoas. Também quando se apela à “Justiça”. Mas existe uma dimensão superior. Na II Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e Defesa da Vida, realizada entre os dias 10 e 12 de outubro de 2015 em Tiquipaya(Cochabamba), marcou-se como objetivo a criação de um Tribunal Internacional de Justiça Climática. A Conferência Mundial sobre os Povos Indígenas, realizada em setembro de 2014 na sede da ONU em Nova York, pediu que aAssembleia Geral das Nações Unidas adotasse uma Declaração Universal dos Direitos da Mãe Terra. “Atualmente, vivemos as consequências das leis feitas pelo homem, mas o Cosmoser vai além”, conclui David Choquehuanca. Quando uma pessoa trata de conhecer uma planta ou um jaguar o faz de “fora”, mas “do ponto de vista do cosmoser somos planta, brisa, jaguar…”.
Os códigos ocidentais, dos países do Norte, são insuficientes. “Não é a mesma coisa comer ou alimentar-se; hoje apenas comemos, ou talvez, estejamos nos envenenando com os transgênicos”. De fato, recorda o ministro, a 42ª assembleia da Organização de Estados Americanos (OEA) realizada em Tiquipaya (junho de 2012) assumiu a defesa da “segurança alimentar com soberania” e o reconhecimento do acesso à água como direito humano básico. “Não é a mesma coisa balançar e dançar. Também não deixamos descansar o nosso organismo: deveríamos jejuar semanalmente e não o fazemos; nos desenergizaram e desatomizaram e devemos recuperar as faculdades que estão dormindo em nosso ser para nos convertermos novamente em pessoas integrais”.
O relato de David Choquehuanca Céspedes não se limita aos princípios genéricos do Bem Viver , mas aterrissa na realidade material, política. Em 1999, durante a presidência de Hugo Bánzer, foi aprovada a Lei do Serviço de Água Potável e Esgoto Sanitário, que privatizava a pedido do Banco Mundial a água potável no município de Cochabamba. A mobilização camponesa contra a desnacionalização promovida pelo consórcio multinacional Aguas del Tunari, conseguiu que, em abril de 2000, a legislação fosse anulada. A Constituição Boliviana de 2009 reconhece, no artigo 16, que toda pessoa tem direito à água e à alimentação; e o artigo 373, que a água constitui um “direito fundamental para a vida, no marco da soberania do povo”. David Choquehuanca também recorda que graças ao Decreto de maio de 2006 de nacionalização dos hidrocarbonetos, 82% dos lucros dos recursos naturais, que antes ficavam com as petroleiras, passaram às mãos do Estado.
Em junho de 2014, a UNESCO declarou Patrimônio Mundial o sistema viário andino Qhapaq Ñan (“caminho para bem viver”), uma rede de caminhos de quase 60 mil quilômetros de extensão, eixo do poder político e econômico doImpério Inca, que a Bolívia compartilha com a Argentina, Chile, Colômbia, Equador e Peru. Um mês depois o mesmo organismo das Nações Unidas declarou a Bolívia “território livre de analfabetismo”, objetivo alcançado mediante a metodologia do Programa “Eu Posso”, concebido em Cuba. O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento destacou, no relatório de 2014, que a Bolívia foi o país da América Latina em que houve a maior redução da pobreza (32% entre 2000 e 2012).