A análise da Conjuntura da Semana é uma (re) leitura das Notícias do Dia publicadas diariamente no sítio do IHU. A análise é elaborada, em fina sintonia com o Instituto Humanitas Unisinos – IHU, pelos colegas do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, parceiro estratégico do IHU, com sede em Curitiba-PR, e por Cesar Sanson, professor na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN, parceiro do IHU na elaboração das Notícias do Dia.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/520837-conjuntura-da-semana-10-06-2013
Governo democrático popular repete os militares: “O índio não pode deter o desenvolvimento”
Diante dos acontecimentos das últimas semanas envolvendo os povos indígenas, o sociólogo Ivo Lesbaupin levanta uma inquietante questão: “Qual a diferença entre a política indigenista do atual governo e aquela da ditadura de 1964?”.
O professor da UFRJ e assessor dos movimentos sociais lembra que os militares nos anos 1970 imbuídos de uma concepção desenvolvimentista – Brasil Grande – passaram por cima dos povos indígenas que ousaram resistir. “O índio não pode deter o desenvolvimento”, dizia em 1971 o general do exército Bandeira de Mello, na época presidente da FUNAI.
A confirmação da fala do general está vindo agora à tona com o caso do extermínio de dois mil índios waimiri-atroari e de fatos relatados no Relatório Figueiredo. Ambos os casos são amostras das atrocidades cometidas pelos militares no período da ditadura contra os índios.
Passaram-se 50 anos do início da ditadura militar, porém, a concepção desenvolvimentista que veem os índios como um estorvo, um empecilho e um obstáculo permanece intacta. Como afirma Roberto Liebgott do Cimi-RS em entrevista exclusiva à revista IHU On-Line desta semana, “os conceitos de entraves e obstáculos foram amplamente utilizados no período da ditadura militar pelos governos autoritários, quando se pretendia abrir estradas ou construir barragens em terras que habitavam comunidades e povos indígenas. O argumento dos ditadores, era de que os interesses da nação não poderiam ser atrapalhados pelos índios, por isso eles precisavam ser removidos”.
“Fazendo um paralelo, diz Liebgott, com os discursos recentes de autoridades públicas, especialmente da ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, constata-se que a concepção que se tem dos povos indígenas em nosso país (em um governo ‘democrático e popular’) é o mesmo dos governos da ditadura militar. Disse a nobre ministra: ‘Não podemos negar que há grupos que usam os nomes dos índios e são apegados a crenças irrealistas, que levam a contestar e tentar impedir obras essenciais ao desenvolvimento do país, como é o caso da hidrelétrica de Belo Monte. O governo não pode concordar com propostas irrealistas que ameaçam ferir a nossa soberania e comprometer o nosso desenvolvimento’”.
O dirigente do Cimi lembra que “não raras vezes o ex-presidente Lula, em discursos inflamados pela defesa das grandes obras, disse que os direitos dos índios, quilombolas e ambientais eram penduricalhos. Essa é a concepção que o governo brasileiro tem dos povos indígenas”.
Antes o governo ditatorial, os militares, os generais, majores e coronéis das Forças Armadas como Sebastião Curió que não titubeavam em afastar o “obstáculo”- os povos indígenas – com o uso da manu militari. Hoje, o PT, o PCdoB, o PMDB e seus aliados. Antes, os generais Costa e Silva, Médici, Geisel, o uso da Lei de Segurança Nacional, as forças políticas em torno da Arena – a direita. Hoje, Dilma Rousseff, o PT, ministros de Estado progressistas – a esquerda.
A afirmação do general do exército em 1970 de que “o índio não pode deter o desenvolvimento” é hoje reafirmada pelas lideranças de um governo que se autodenomina democrático-popular, como destaca Roberto Liebgott. Ainda mais espantoso, entre os porta-vozes que insinuam que os índios são um “obstáculo” muitos são de lideranças no interior do PT que se posicionam à esquerda no debate interno do Partido, como o ministro da justiça José Eduardo Cardozo e o governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro ou ainda de ministros como Gilberto Carvalho e Gleisi Hoffmann, o primeiro ligado anos atrás aos movimentos da Teologia da Libertação como a Pastoral Operária, e a segunda, promessa de modernização do Partido dos Trabalhadores.
As forças autoritárias, retrógradas, conservadoras e portadoras da ideia de que o índio tinha que ser “emancipado” da sua terra e assimilado pela sociedade produtivista de ontem é reproduzida pelas forças políticas de hoje que se afirmam progressistas. “A história parece estar se repetindo, o que está em questão tanto na época da ditadura quanto hoje é a concepção de desenvolvimento (…) Hidrelétricas, mineradoras, agronegócio, desenvolvimentismo, neodesenvolvimentismo versus direitos dos povos indígenas: qual a diferença entre a política indigenista do atual governo e aquela da ditadura de 1964”? pergunta Ivo Lesbaupin.
Diz ele: “Foi o governo Lula que ressuscitou um projeto do tempo da ditadura, a usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu. “Este projeto, diz o sociólogo, iniciado em 1975, foi interrompido em 1989, em razão da resistência dos povos indígenas. O Banco Mundial, que financiaria a construção, desistiu da obra. Somente se voltou a ouvir falar neste projeto quase vinte anos depois, no primeiro mandato do governo Lula”.
Segundo Lesbaupin, o projeto foi remodelado e empurrado goela abaixo daqueles que resistiram a ele, mesmo depois da promessa de que isso não aconteceria. Ivo Lesbaupin lembra que “houve inúmeras tentativas de povos indígenas, de movimentos sociais, de setores da Igreja católica, inclusive do bispo local, D. Erwin Kräutler, de demover o governo deste projeto”. De nada adiantou. O mesmo modus operandi retorna agora com o projeto do complexo hidrelétrico no Tapajós.
Repete-se o desrespeito aos direitos dos povos indígenas. O governo na sua obsessão crescimentista, para usar um conceito surgido nos debates da 5ª Semana Social Brasileira, enquadra o Ibama, a Funai, e não ouve as graves denúncias do Ministério Público Federal. Ainda mais, “rasga” reiteradamente a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que determina a consulta prévia às populações tradicionais afetadas por empreendimentos em seus territórios.
Os indígenas impactados de maneira definitiva pelos projetos de usinas hidrelétricas na Amazônia nunca foram consultados previamente, da forma definida pela Constituição brasileira e pela Convenção 169. Por esse motivo, o governo brasileiro responde a três processos judiciais, movidos pelo Ministério Público Federal no Pará e no Mato Grosso.
Ameaças aos povos indígenas vêm do Estado e do agronegócio
O sofrimento e a ameaça de desterritorialização a que estão submetidos os povos indígenas não se resumem, entretanto, aos grandes projetos. Faz parte da vida cotidiana de muitas comunidades indígenas a queima de barracos, intimidações, destruição de plantações, sequestros e assassinatos seguidos até mesmo do desaparecimento de corpos de lideranças indígenas. É o que se tem visto, particularmente no Mato Grosso do Sul, palco recente do cruel assassinato do cacique Nisio Gomes e do assassinato dias atrás do terena Osiel Gabriel.
Aqui a ponta de lança da sombra da morte sobre os indígenas é do agronegócio que conta muitas vezes com a omissão, a conivência ou até mesmo a participação do braço armado do Estado. Segundo o missionário Egon Heck, “o que se está fazendo com os povos e direitos indígenas neste país, só teve precedentes, na década de sessenta e setenta, com um processo de genocídio programado e planejado pela ditadura militar e interesses econômicos ávidos por assaltar os recursos naturais das terras indígenas”.
Passadas décadas, pouco ou quase nada mudou. A direita e a esquerda se encontram na mesma vertente desenvolvimentista e continuam sacrificando os povos indígenas no “altar do progresso”. Tristemente constata-se que nos oito anos de governo do ex-presidente Lula e nos dois primeiros da presidente Dilma Rousseff, 560 índios foram assassinados no Brasil — média de 56 por ano. Os dados são do Conselho Indigenista Missionário – Cimi.
Antes o modelo imposto pela ditadura, pela dominação direta e bruta. Agora pela busca gramsciana da hegemonia, do consenso que joga e se vale do imaginário comum e simplista, até mesmo entre setores esclarecidos na academia, de que os índios estão atrapalhando o desenvolvimento do país. Basta ver o silêncio de figuras de proa da intelectualidade da esquerda brasileira que em seus blogs, sites e colunas se calam sobre o acontecimento mais importante da conjuntura brasileira nas últimas semanas: o ataque virulento às conquistas conseguidas pelos povos indígenas às duras penas na Constituinte de 1988.
Ontem, os militares aliavam-se aos interesses das mineradoras, dos fazendeiros, das multinacionais que tinham interesse na exploração de “territórios” ricos em jazidas. Hoje, a esquerda se junta aos seus novos aliados, o agronegócio.
Sintomática, a fala da líder maior do agronegócio brasileiro Kátia Abreu. Questionada sobre o que mudou na relação com o governo de Dilma Rousseff, a líder do agronegócio ga¬rante que não foi ela: “Meu ponto de vista não mu¬dou em nada. Os governos anteriores não tinham uma compreensão tão aberta da agrope¬cuária brasileira como a presidente Dilma tem demonstrado”, diz a senadora, para completar que quem mudou foi o governo do PT – “o que me aproxima da presidenta Dilma é a concordância de ideias”, disse a senadora.
A presidente da Confederação Nacional da Agricultura – CNA faz questão de destacar que a sua aproximação com a presidente não se deu no campo político-ideológico, e sim no campo das ideias na defesa do agronegócio brasileiro. Afirma que considera Dilma uma petista diferente: “Não só eu como um grande segmento do país, não identifica a presidente Dilma como petista na sua essência, ela é quase uma mandatária suprapartidária, que defende os interesses do país de forma racional conversando com todos os segmentos”, diz a senadora, que afirma ter muitas semelhanças com a presidente da República.
A opção brasileira por um modelo altamente dependente da exploração de matérias-primas, em especial de commodities agrícolas e minerais para exportação [soja, etanol, pecuária, minérios…] associado aos grandes projetos de matriz energética ancoradas nas grandes hidrelétricas tornaram os povos indígenas uma ameaça ao Estado brasileiro.
É nesse contexto que devem ser compreendidos os acontecimentos dos últimos meses, entre eles: a Operação Tapajós na qual o governo se valeu de recursos sórdidos como infiltração de agentes policiais nas comunidades indígenas e a ocupação do seu territórios – fatos que lembram os anos da ditadura.
É também nesse contexto que se explicam os conflitos em torno da ocupação do canteiro de Belo Monte.
Mas as ações anti-indígenas não ficam por aí. De todos os lados é pesada a artilharia contra os povos indígenas, ora partindo dos ruralistas (PEC 215, PEC 38, PEC 237, Projeto de Lei 1610) e ora do governo (Portaria 303, Decreto nº 7.957/13, Portaria Interministerial 419/11).
Escalada da tensão. Como resolver a questão indígena?
É a partir do modelo, das opções do governo que se compreende o gigantesco retrocesso no marco regulatório da demarcação das terras indígenas encabeçado pela ministra da Casa Civil a mando de Dilma Rousseff. “Com tal medida fica evidente a responsabilidade da ministra Gleisi Hoffmann pela radicalização da tensão no Mato Grosso do Sul e que atinge também outros povos de outros Estados. O governo erra ao escolher lidar com o problema pelo caminho da protelação e do desmonte constitucional das funções da Funai”, afirma carta aberta endereçada à presidente Dilma Rousseff assinada por defensores dos Direitos Humanos.
Segundo análise do Cimi, “o governo Federal dá mostras cada vez mais evidentes que não entende e que não está disposto a entender os povos indígenas brasileiros”. A organização destaca que “o governo Dilma aprofundou o processo de retração de demarcações das terras indígenas”. O Cimi comenta que “a presidente Dilma ainda não recebeu os povos indígenas para qualquer conversa ao longo destes mais de dois anos de mandato. No entanto, somente no mês de maio, a presidenta reservou tempo em sua agenda para ao menos cinco encontros com representantes dos ruralistas, inimigos históricos dos povos indígenas”.
O assassinato do terena Osiel Gabriel é resultante da escalada da tensão promovida pelo agronegócio com a conivência do governo federal. Essa tensão tende a crescer. Os ruralistas anunciam para os próximos dias atos em todo o país e afirmam que poderão ocorrer “novos e dramáticos confrontos de consequências imprevisíveis”.
No Mato Grosso do Sul, os ruralistas não admitem nenhuma demarcação. Um dos porta-vozes dos fazendeiros na região, o deputado Nilson Leitão (PSDB-MT) diz que “o governo não tem o direito de transformar o Brasil em uma nação indígena. Principalmente em uma área que é um cinturão agrícola. Não dá para ser uma grande reserva indígena e ao mesmo tempo uma potência agrícola”, afirma o parlamentar.
O que o parlamentar não conta é que o território, hoje de posse do agronegócio, já foi território dos povos indígenas: “Com o final da Guerra do Paraguai (final do século XIX), houve a anexação de áreas que não integravam o território brasileiro. Para garantir a soberania do país na região, a União fomentou a vinda de colonos para o então estado de Mato Grosso, propagando a riqueza do solo e a certeza de um pedaço de terra aos colonizadores”, afirma o Ministério Público Federal do Mato Grosso do Sul.
Essas terras, diz o MPF do MS “ocupadas por comunidades indígenas, foram tituladas em sua grande maioria pelo Estado de Mato Grosso e, em alguns casos, pela União a particulares, via de regra de modo oneroso, e os índios que moravam nessas áreas foram confinados em reservas indígenas, criadas no século XX, sem respeitar as diferenças étnicas e grupais”.
A mesma história é contada pelo antropólogo Levi Marques-Pereira da Universidade Federal da Grande Dourados – UFGD em entrevista à IHU On-Line.
Tomando como referência a fazenda Buriti, palco do conflito que resultou na morte de Oziel Gabriel, o antropólogo comenta que “a partir da última década do século XIX se inicia o processo de ocupação das terras até então ocupadas pelos Terena na região de Buriti. A titulação das terras se estende até as primeiras décadas do século XX, mas a expulsão dos Terena foi gradativa, se prolongando pelo menos até a década de 1970. Em muitos casos os próprios Terena foram incorporados nos trabalhos de formação de fazendas sobre os seus territórios, já que essa se tornava a única alternativa, além de constituir uma estratégia para permanecerem em seus territórios”.
A modernização do campo, a partir da década de 1970, explica Levi Marques-Pereira, impôs a “retirada total das famílias, obrigadas a se recolherem na área de acomodação de 2.090 hectares, constituída como reserva em 1926”. Somente mais de 70 anos depois, em 2001, a Funai reconheceu o direito dos Terena de Buriti sobre uma área de 17.200 hectares. “A partir de então a região tem vivido forte tensão, com os Terena pressionando para que o governo conclua o processo de regularização de suas terras de ocupação tradicional”, menciona.
Para ele, “o vínculo dos Terena de Buriti com a terra que reivindicam é histórico e cultural”. Na opinião do antropólogo, “o Estado deve assumir o ônus de ter titulado terras indígenas em nome de particulares, deve reconhecer seu erro e ressarcir tanto os indígenas como os atuais proprietários”. Portanto, as terras que os ruralistas reivindicam como suas, foram na verdade roubadas dos povos indígenas.
Semelhante opinião tem o Ministério Público Federal (MPF) no Mato Grosso do Sul para quem “os conflitos fundiários em Mato Grosso do Sul são históricos e resultam de uma série de ações e omissões do Estado brasileiro”. Segundo o MPF, “para se entender a tensão do campo, é preciso antes analisar a história de ocupação do estado, que resultou no esbulho de comunidades indígenas de seus territórios tradicionais e na concessão de títulos públicos a particulares”.
Para o MPF, a solução para o conflito seria a reparação do dano causado aos fazendeiros pela titulação errônea de terras indígenas: “Por mais que a sugestão possa vir a beneficiar os produtores rurais, objetiva tornar mais célere as demarcações de terras indígenas em Mato Grosso do Sul, permitindo o retorno dos índios às suas terras tradicionais e, em consequência, a manutenção de sua cultura, usos, costumes e tradições”.
O procurador da República Emerson Kalif Siqueira diz que “falta vontade política para solucionar a questão indígena no estado. São muitas as propostas para minimizar a tensão fundiária, mas a postura da União – de apenas receber um lado do conflito e de ignorar que grande parte da situação decorre principalmente da titulação errônea de terras, a cargo da administração pública como um todo -, só tem agravado a situação, chegando ao ponto de batalhas judiciais perdurarem durante anos e de casos de violência se tornarem frequentes no estado”.
O Procurador é duro com o governo: “Não se trata a questão indígena como caso de polícia. Se forem necessárias horas ou dias de conversa e negociação, que se explique, enfatize, converse, negocie. O que não se pode é deixar que a inapetência da polícia – que não tem experiência em conflitos rurais – transforme populações tradicionais em alvo de violência”, afirma ele.
A forma como será resolvida a questão indígena no Brasil “dará o tamanho da régua que apontará a medida da evolução democrática de nossa sociedade”, afirmam em carta ativistas ligados à defesa dos direitos humanos.
Indígenas são vítimas de preconceito e discriminação
Os indígenas são vítimas ainda para além do Estado brasileiro e do agronegócio. Sofrem dos mesmos preconceitos de outras minorias/maiorias. Nas cidades, são encontrados vendendo artesanato, quando, para muitos, deveriam estar procurando um emprego. Considerados vagabundos, esmoleiros e sujos, são cobertos pela capa da discriminação. Causam repugnância e enfeiam as cidades. Para a maioria da população, são “invisíveis”, embora estejam à vista de todos. As manifestações de resistência que presenciamos são, certamente, uma maneira de dizer que eles existem e querem ser respeitados em seus direitos fundamentais.
Para a maioria da população, ainda, sua presença e atuação representam um estorvo da ordem social. O mundo seria melhor se não existissem. São, para retomar e resignificar uma expressão cunhada pelo recentemente falecido sociólogo francês Robert Castel, “os inúteis do mundo”: não produzem e são contrários aos grandes projetos de desenvolvimento econômico.
Neste contexto, é ilustrativo recordar o que já disse um antropólogo francês Pierre Clastres, que morreu muito jovem, mas que conheceu várias etnias brasileiras, entre elas a dos guaranis. “Um dos livros de Clastres, escreve Washington Novaes, trata exatamente dessa etnia – e do que ele designava como ‘sociedade contra o Estado’. Esse é o título de outra obra sua, onde mostra que nós, não índios, nos habituamos a descrevê-los não pelo que têm, e sim pelo que não têm – não usam roupas, não detêm nossas tecnologias, não vivem como brancos”.
“Com isso – prossegue ainda Washington Novaes – nos esquecemos do que têm e pode ser muito importante:
1) a não delegação de poder (o chefe não dá ordens; é o conhecedor da história e da cultura, o grande mediador de conflitos, mas não dá ordens – até porque seria recebido com espanto);
2) a autossuficiência no nível pessoal (um índio, na força de sua cultura, sabe fazer sua casa, plantar sua roça, colher, fazer seus instrumentos de trabalho e adorno, sua rede, conhece as plantas nativas úteis, etc., não precisa de ninguém para nada); e
3) o privilégio de conviver com a informação aberta, ninguém dela se apropria para transformar em instrumento político ou econômico.”
Uma cultura, um “outro” que, cinco séculos depois, continua a representar uma ameaça. E por se estruturarem como uma sociedade contra o Estado, os guaranis tornam-se indesejáveis para a nossa sociedade e o Estado hegemônicos. Sem eles, no entanto, estariam escancaradas todas as portas para a saciedade insaciável da vontade de poder do grande capital e do agronegócio. Na sua existência e resistência plasma-se uma reserva moral, antropológica e econômica; um outro modelo de desenvolvimento, social e ambientalmente menos impactante, é possível.
Indígenas são o movimento social mais ativo da atualidade
Ironia da história, os indígenas, que pareciam quase extintos, renascem das cinzas, como uma fênix. Ao longo da história do Brasil (ao menos na mais recente, aquela que coincide com o processo de industrialização e modernização de nosso país), nunca foram considerados um movimento social de transformação. Segundo a concepção hegemônica, a transformação social vinha do mundo urbano (especialmente do movimento operário) e se fazia na esteira da lógica da racionalidade ocidental europeia.
Nas últimas décadas, têm dados sinais de grande vitalidade e originalidade. Desde os anos 1990, quando emergiram na Selva Lacandona, no México, com o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), contra a globalização, os povos indígenas têm mostrado que estão vivos em toda a América Latina. São protagonistas de primeira linha na Bolívia, Equador e Brasil; têm protagonismo também no Chile, Peru e, com menos intensidade, na Argentina.
O protagonismo dos indígenas no continente latino-americano tem sido objeto de diversas análises, que tiveram a preocupação de auscultar as novidades e contribuições deste movimento, na perspectiva de vislumbrar elementos para a construção de um outro modelo de desenvolvimento econômico e social, plural, sustentável, igualitário e justo. A pergunta de fundo é esta: que apelos o movimento indígena faz a uma esquerda social? A questão indígena cabe nos atuais projetos de esquerda?
Os focos de tensões envolvendo indígenas encontram-se neste momento na Região Sul, no Mato Grosso do Sul e no Pará (Belo Monte). No começo deste mês, comunidades indígenas organizaram ocupações em fazendas em Mato Grosso do Sul, bloquearam rodovias no Rio Grande do Sul e ocuparam a sede do PT em Curitiba. No Pará, ocuparam o canteiro de obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu.
Quem está com os indígenas?
O conflito indígena tem praticamente as dimensões do Brasil. Atualmente, as demarcações de terras indígenas estão provocando conflitos em 212 áreas do país. Além desses, a Funai tem mais 339 pedidos de demarcação parados na mesa de seus técnicos e que ainda não passaram sequer pela análise inicial. Isso para dimensionar, minimamente, a questão. A título de exemplo, no Paraná, são 7 as ares sob risco de conflito entre índios e ruralistas; e no Rio Grande do Sul, 17. Mas, como o movimento social e eclesial tem se posicionado em relação aos últimos acontecimentos envolvendo indígenas em diversas partes do Brasil?
De modo geral, e timidamente, o movimento social tem se manifestado. No começo de março, organizações nacionais e internacionais publicaram manifesto em apoio e defesa dos povos indígenas do Mato Grosso do Sul. Cerca de 90 entidades, manifestam “que é obrigação da nação brasileira, tanto governo, como sociedade civil, a defesa intransigente do direito à vida, a integridade física e mental, da liberdade e da segurança pessoal dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, entendendo que qualquer forma de violência física ou mental contra qualquer membro dessas comunidades devem ser exemplarmente punidos”. Trata-se da referência à morte do indígena Kaiowá Denilson Barbosa, de 15 anos, morador da aldeia Tey’ikue, que foi encontrado morto em 17 de fevereiro, no município de Caarapó (MS). Ao mesmo tempo, “apoiam incondicionalmente a defesa da posse das terras tradicionais pelos povos indígenas, bem como, apoiam as demarcações das terras indígenas e do amplo acesso desses povos aos recursos nelas existentes, única forma de colocar fim às violações de direitos e à violência contra que vem sendo imposta a esses povos, sendo urgente que o Estado Brasileiro, através do Governo Federal assuma as obrigações constitucionais de respeitar, proteger e garantir a vida e os direitos humanos dos povos indígenas”.
Outro manifesto é dos movimentos sociais, entidades e organismos de defesa dos direitos humanos de Mato Grosso do Sul. Lançado no começo deste mês, os signatários manifestam “irrestrita e incondicional solidariedade com o Povo Terena”, condenam e repudiam os fatos acontecidos na Terra Indígena Buriti e responsabilizam pelos mesmos o Governo do Estado do MS, o Poder Judiciário, o Estado Brasileiro e o Governo Federal. Além disso, exigem a imediata libertação dos 18 indígenas que estão presos na Policia Federal.
Também a CUT e a Via Campesina se manifestaram. De modo geral, as manifestações têm sido relativamente tímidas e bem polidas, para não ferir sensibilidades. E isso com a intenção de poder dizer: “Bem, nós nos manifestamos”. Ao mesmo tempo, transparece a preocupação de não se indispor abertamente com o governo.
Um grupo de cinco ativistas ligados à defesa dos direitos humanos e indígenas está circulando na internet uma carta aberta à presidenta Dilma Rousseff, que critica o governo federal e, em particular, a ministra da Casa Civil, Gleisi Hoffmann. Assinam Dalmo Dallari, Gilberto Azanha, Marcelo Zelic, Anivaldo Padilha e Roberto Monte. O texto condena o plano do governo de incluir órgãos ligados ao setor agrícola, como a Embrapa, na análise das demarcações de terras indígenas, considerando-o responsável pelo acirramento dos conflitos entre índios e produtores rurais, em especial no Mato Grosso do Sul.
Mais incisiva tem sido a posição apresentada pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Uma reunião entre o governo e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) deixou claras as opiniões divergentes de ambos sobre o papel da Funai. A ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffmann, afirmou que o órgão não deve ser o único responsável pela demarcação de terras indígenas; já o secretário-geral da CNBB, d. Leonardo Steiner, disse esperar que a fundação não tenha suas funções esvaziadas. Dom Leonardo ressaltou que a CNBB sempre foi contra a suspensão das demarcações, como aconteceu nas últimas semanas no Paraná e Rio Grande do Sul, por ordem expressa da ministra Gleisi.
O secretário-geral da CNBB pediu para a ministra que o Poder Executivo marcasse uma reunião e ouvisse os povos indígenas. Durante a coletiva, Gleisi Hoffmann afirmou que atenderá ao pedido e que as negociações sobre o processo de demarcação serão feitas até o fim do semestre.
A visita de Gleisi Hoffmann à CNBB deve ser compreendida no escopo de uma tentativa de pedir ao secretário-geral para que ele “acalme” o CIMI.
O CIMI – Conselho Indigenista Missionário, ligado à CNBB, que é justamente a grande voz da sociedade civil neste momento: decidido, firme, forte, contundente, sem peias… Após completar 40 anos em 2012, este organismo continua mais vivo do que nunca. Não sofreu os desgastes do tempo. Pelo contrário, à medida que outros movimentos sociais e eclesiais e entidades entraram em crise, o CIMI foi mantendo sua capacidade de fazer a defesa dos povos indígenas, seja durante a ditadura militar, seja em tempos de democracia política. Convém ressaltar que o CIMI não é uma entidade de indígenas – estes têm seus fóruns próprios e autônomos –, mas de assessoria à luta indígena, o que a diferencia, por exemplo, das pastorais sociais.
Em nota divulgada no começo de junho, o CIMI diz que “o governo Dilma aprofundou o processo de retração de demarcações das terras indígenas. É o governo que menos demarca terras indígenas desde a ditadura militar. O governo também tomou medidas administrativas lesivas aos direitos dos povos”. Em outra passagem a nota diz: “partindo de um pressuposto equivocado, o governo adota e anuncia medidas equivocadas para tentar resolver os conflitos por ele criados”.
Em seguida, o CIMI elenca quatro pontos para tentar solucionar verdadeiramente os conflitos envolvendo povos indígenas e o agronegócio: “a) destravar os processos de demarcação, tanto no campo administrativo, quanto no campo judicial; b) ouvir os povos indígenas; c) revogar os próprios instrumentos de ataque aos povos, tais como, as portarias 419/2011 e 303/2012 e o Decreto 7957/2013; d) mobilizar sua ampla base de apoio no Congresso a fim de que se evite os retrocessos almejados pelos ruralistas quanto aos direitos dos povos”.
Em maio passado, foi a vez da Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul – ARPINSUL manifestar-se contra as medidas do governo: “É absurdo submeter à Embrapa, uma empresa de pesquisa do governo, a avaliação dos processos demarcatórios das terras indígenas. Isto é no mínimo um ato nefasto, na medida em que coloca por terra o trabalho sério de técnicos do próprio governo, para desavergonhadamente privilegiar o agronegócio!”. Em outra passagem a nota diz também: “A falha não é da Funai, a falha se deve ao conjunto de decisões equivocadas que o Estado Brasileiro tem tomado em relação aos Povos Indígenas, que agora são colocados publicamente como os inimigos do governo e do agronegócio e consequentemente do desenvolvimento”.
Garantias da Constituição Federal
No contexto deste conflito, alguns analistas retomam o que é uma conquista dos indígenas e seus defensores – e que foi incorporada à Constituição de 1988. Trata-se do artigo 231. “A aplicação do artigo 231 da Constituição resultaria no reconhecimento de terras indígenas em extensão suficiente para garantir a reprodução física e cultural de seus ocupantes. Já há e ainda haverá situações em que sua aplicação não será suficiente para prover terras em extensão mínima que garanta a sobrevivência e a reprodução cultural de grupos específicos. Não faz sentido desprover de direitos as pessoas que dispõem de títulos legítimos e às quais não se pode atribuir responsabilidades por políticas impostas aos índios no passado pela União ou pelos estados”, escreve Márcio Santilli.
Washington Novaes, por sua vez, diz que “precisamos relembrar o parecer do respeitado constitucionalista José Afonso da Silva no processo em que o STF reconheceu os direitos dos índios ianomâmis a suas terras em Roraima. Catedrático de universidades, assessor de Mário Covas na Constituinte de 1988, secretário de Segurança Pública em São Paulo, o professor José Afonso liquidou a questão ao demonstrar que o reconhecimento dos indígenas a terras por eles ocupadas imemorialmente vem da legislação de Portugal, desde 1640”.
Prossegue Novaes: “Foi mantido pela legislação do século seguinte, chegou à nossa primeira Constituição, foi preservado nas de 1934, 1967 e 1988 – nesta, com o reconhecimento de que a demarcação de suas terras é um ato ‘meramente declaratório’, antecedido pelo ‘direito originário’ que está no artigo 231. ‘A demarcação’, diz o parecer, ‘não cria nem extingue direitos, reconhece apenas a situação de fato e o direito consequente’. E sendo assim, ‘a localização e extensão da terra indígena não é determinada segundo critérios de oportunidade e conveniência do poder público, porque o critério que define a localização e a extensão das terras é o da ocupação tradicional, ou seja, a demarcação tem de coincidir, precisamente, com as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, definidas cientificamente por via antropológica’. E isso, conclui ele, não ameaça a soberania nacional nem a atuação das Forças Armadas”.
É preciso recordar que há 25 anos, a questão indígena tinha uma penetrabilidade social bem maior que tem hoje. Hoje, lutam com suas próprias forças. A ocupação do canteiro de Belo Monte, por exemplo, mostra o poder de mobilização que eles têm hoje. Não é qualquer movimento social que consegue parar hoje uma obra gigantesca como essa. Igualmente simbólica é a ida a Brasília para conversar com o Ministro Gilberto Carvalho. Não aceitaram que a conversa se restringisse a uma comissão de representantes – prática comum entre o movimento sindical e social – dos Munduruku. Obrigaram o governo a ceder também neste quesito, fazendo com que disponibilizasse dois aviões para levar cerca de 140 índios para Brasília. Não foram apenas homens, mas mulheres e crianças. Foram recebidos em audiência e saíram insatisfeitos com as propostas do governo.