No fim de 2011, Jessie Mhango (foto abaixo), 43 anos, que vive na vila de Chikanzinga, distrito de Rumphi, no Malaui, país situado no nordeste da África, arrumava as malas para uma viagem que até então seria improvável de acontecer em sua vida.
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Era a primeira vez que Jessie saía da sua vila de 4 mil habitantes, sem eletricidade, horas de distância de uma cidade maior. Mesmo sem falar outra língua além do seu dialeto, seguiu em frente, pois sabia que esta viagem mudaria a vida de sua comunidade. Num grupo formado por 40 mulheres vindas da Tanzânia, Sudão do Sul, Libéria, Peru, Butão e Malaui, Jessie passou seis meses no Barefoot College(Escola dos Pés Descalços, em português), uma escola rural, no Estado do Rajastão, na Índia, feita para pessoas que moram em vilas que sofrem com a falta de eletricidade, difícil acesso a água potável e educação.
A reportagem é de Giselle Paulino e publicada pleo Valor, 20-04-2012.
Baseado no conceito do “learning by doing” (aprender fazendo) e no desenvolvimento das habilidades manuais de cada um, no Barefoot pessoas que nunca frequentaram a escola aprendem a montar sistemas de eletricidade com células fotovoltáicas em pequena escala capazes de iluminar uma casa.
Entre lâmpadas, fiações e sistemas elétricos, elas aprendem a construir painéis solares com capacidade de acender lâmpadas de 40 watts, suficientes para iluminar até três cômodos, fogão solar movido a antena parabólica que acompanha o movimento do sol e técnicas de captação da água da chuva.
São mulheres que vivem com menos de U$ 2 por dia e que frequentaram apenas os primeiros anos da escola formal. Muitas delas vivem em áreas remotas sem nenhuma infraestrutura. As aulas se passam em grandes galpões de um antigo casarão construído durante a colonização inglesa. Nas salas ao lado, homens e mulheres tecem tapetes em tear, fazem colchas, pintura e cerâmica. É um cotidiano sem sinais da cultura ocidental. Mas o que mais chama a atenção é o clima de cooperação entre elas em busca da solução de problemas comuns a suas comunidades.
Jessie, que até então nunca havia ouvido falar em aplicação de células fotovoltáicas para a geração de energia, é hoje uma “engenheira solar dos pés descalços”, como costumam dizer. Ela está apta a voltar para casa e levar luz para sua vila no Malaui. O material necessário é enviado a ela por barco. Dessa forma, poderá replicar a técnica aprendida com outras mulheres da região que enfrentam o mesmo problema de falta de luz.
“Quando não entendemos o professor faz muita mímica para mostrar onde vão as ligações, que luz deve acender e o que deve estar conectado com a bateria. Aos poucos, tudo passou a ser normal, ” diz Jessie. “Quando voltar, vou ensinar as outras mulheres na minha vila.”
Na visão da escola existe uma grande diferença entre ser iletrado e não ter educação. “Na escola, uma pessoa aprende a ler e a escrever. Mas mesmo quem nunca recebeu educação formal, pode ser educado pelos pais, família e comunidade”, diz Bhagwat Nandan, 61 anos, primeiro professor do Barefoot College. “Essas pessoas possuem um conhecimento prático para resolver problemas de suas comunidades que a maioria dos experts das grandes universidades jamais terá. Com um pouco de treino, suas habilidades que estavam escondidas aparecem.”
Estima-se que 1,5 bilhão de pessoas vivam sem eletricidade. Uma família gasta até 60 litros de querosene por ano. Depois da alimentação, este é o maior gasto dentro de uma casa. Quando a peruana Jacinta Mercedes, 34, que mora na comunidade nativa San Pedro Pichanaz, perto da cidade de Cero de Paco, no Peru, contou ao marido e quatro filhos que iria passar seis meses na Índia, ninguém gostou da notícia. Mas a família mudou de ideia assim que colocou os números na ponta do lápis. Toda semana, Jacinta gasta pelo menos, U$ 7 para comprar pacotes de velas e pilhas para lanterna. “É um gasto impressionante”, diz Jacinta. “Além disso, nossas escolas ganharam computadores, mas por falta de energia, nunca foram ligados.”
Dessa forma, o Barefoot já levou iluminação solar a mais de 65 vilas apenas no Estado do Rajastão e outras 600 no resto da Índia. O caso mais emblemático são as vilas dos Himalaias, região montanhosa ao norte do país, de difícil acesso, com baixas temperaturas e comunidades completamente isoladas.
Na Índia, assim como em outros países em desenvolvimento, há centenas de casos de projetos para o desenvolvimento, elaborados por agências internacionais, organizações não governamentais e governos de outros países que resultaram num verdadeiro desastre. São programas na área de educação, saneamento básico ou que envolvem técnicas de engenharia genética. “Sem incluir a população local nos processos de decisões e implementação, sem escutar o que os moradores têm a dizer, esses projetos nunca atingem de fato a necessidade da população”, diz o jornalista indiano P. Sainath, em sua obra “Todo Mundo Ama uma Boa Seca: histórias dos distritos mais pobres da índia”, (publicado pela Pinguim Books) ganhador de 13 prêmios de literatura e jornalismo. O livro é resultado de anos de pesquisa nas vilas indianas e reúne dezenas destes casos.
Por essas razões, quando Bunker Roy, um indiano “com educação elitista” – como ele mesmo costuma dizer – idealizou o Barefoot College, há 30 anos, pensou em criar um lugar feito pelos pobres para os pobres. A escola não dá diplomas e rejeita qualquer tipo de aprendizado imposto, de cima para baixo. Não existem experts e a experiência prática vale muito mais do que a teoria.
Em 1974, quando a escola recebeu a visita de Robert MacNamara, então presidente do Banco Mundial, e Mc George Bundy, então presidente da Fundação Ford, Bunker pediu que os visitantes deixassem suas qualificações de lado e viessem como pessoas comuns. Também não aceitou fundos dessas organizações, já que o dinheiro estaria ligado a planos de desenvolvimento ditados por eles.
Para um país como a Índia, com 1,21 bilhão de pessoas e 70% da população vivendo na zona rural, grandes desigualdades social e econômica, a criatividade é um fator de sobrevivência. Em Tilônia, onde está localizado o Barefoot College, no meio do deserto indiano, chove apenas dois meses por ano. Em julho, a temperatura chega perto de 50º C. Cobertas até os olhos por seus sáris coloridos para proteger-se do sol e da poeira, as mulheres costumavam andar todos os dias cerca de quatro quilômetros para buscar um simples pote d’água.
Para melhorar a situação, a população formou o Global Rain Water Harvesting Colletive (GRWHC), uma organização local para pensar soluções práticas para a falta d’água. Os moradores da vila desenharam um sistema para captar a água de chuva que cai nos telhados e estocá-la em tanques construídos abaixo do chão para que a água não evapore e não seja desperdiçada. Com capacidade para estocar 100 mil litros de água, o sistema custa cerca de U$ 10 mil.
Com fundo do governo indiano e em conexão com outras organizações locais, foi construído um sistema em 1.300 escolas primárias nas áreas rurais de 17 Estados, com capacidade de abastecer 235 mil crianças durante seis meses. Baseando-se no senso comum de que é importante estocar a água da chuva, a tecnologia não requer a contratação de ninguém de fora da vila. “Na área rural, o sistema chega a funcionar melhor do que projetos do próprio governo, são econômicas, e mais fáceis de consertar quando necessário”, explica Bunker.
Com a criação dos tanques, outro problema foi resolvido. As crianças que antes andavam com os pais em busca d’água passaram a frequentar as escolas. O Barefoot College ainda criou outras 700 escolas noturnas nas vilas indianas para atender as crianças que ainda acompanham os pais na busca de água durante o dia. Essas escolas também só puderam ser criadas graças ao sistema solar de energia elétrica do Barefoot que ilumina as salas de aula.