“Se a racionalidade econômica tiver alguma chance de ser levada em conta, a melhor saída será uma inciativa presidencial de garantir (por decretos ou MP) a mais clara, imediata e integral segurança jurídica aos verdadeiros estabelecimentos agrícolas que só tenham desrespeitado o Código antes de 1999, mas sem extensão para imóveis rurais de caráter especulativo. Estes é que querem ver perdoados os desmatamentos sem licença posteriores à Lei de Crimes Ambientais, que efetivou as disposições pertinentes da Constituição de 1988″, escreve José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ), em artigo publicado pelo jornal Valor, 20-03-2012.
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/507664-melhorsaidaaocodigoflorestal
Eis o artigo.
Com o imprescindível rearranjo da base parlamentar do governo, não há como prever quando e como será revogado o quase-cinquentão “Novo Código Florestal“.
Se dependesse apenas de deputados favoráveis à especulação fundiária travestida de pecuária de corte extensiva, com certeza isso não passaria desta semana. Eles contariam com os votos dos inocentes úteis que sempre são solidários à agricultura, de muitos outros barganhados com mercadores fariseus dos templos evangélicos, além dos rotineiramente fisgáveis no imenso pântano de oportunistas que pouco se lixam para as consequências econômicas, institucionais e ecológicas de tão grave decisão.
Tamanha tragédia certamente seria evitada se, ao contrário, o desfecho dependesse exclusivamente da primeira presidente do Brasil, eleita com 55.752.529 votos (12 milhões a mais que o adversário) e há muito convicta de que “a vida quer é coragem”, como conta o excelente livro do jornalista Ricardo Batista Amaral (Sextante, 2011). Que ninguém se iluda: a presidente fará tudo o que estiver ao seu alcance para impedir ou minimizar retrocessos, como afirma com meridiana clareza sua firme resposta à carta aberta que a ex-senadora Marina Silva submeteu aos candidatos do segundo turno.
A grande ironia, contudo, é que a lei que revogará o Código não escapará de convalidar boa parte dos estragos já perpetrados aos santuários de prudência econômico-ecológica que deveriam ter sido todas as “Áreas de Preservação Permanente” (APP). Também não poderá deixar de anistiar agricultores que tenham agido de boa fé.
O problema é que tais fatalidades não devem servir de pretexto para que especuladores imobiliários rurais sejam os principais beneficiários da atualização do Código. Então, se a racionalidade econômica tiver alguma chance de ser levada em conta, a melhor saída será uma inciativa presidencial de garantir (por decretos ou MP) a mais clara, imediata e integral segurança jurídica aos verdadeiros estabelecimentos agrícolas que só tenham desrespeitado o Código antes de 1999, mas sem extensão para imóveis rurais de caráter especulativo. Estes é que querem ver perdoados os desmatamentos sem licença posteriores à Lei de Crimes Ambientais, que efetivou as disposições pertinentes da Constituição de 1988.
Uma vez separado o joio do trigo, certamente ficará bem menos contenciosa a obtenção de razoáveis ajustes sobre ao menos três dos principais retrocessos que foram oportunisticamente inseridos no substitutivo do Senado: 1) capim em APP como simulacro de atividade pecuária, 2) tamanho de imóvel rural no lugar de categoria de estabelecimento agrícola, e 3) inéditos incentivos à destruição de manguezais.
Dos 55 milhões de hectares roubados às APP, nada menos de 44 milhões estão cobertos de imaginárias pastagens. É inaceitável que crime tão hediondo venha a ser “consolidado”. Outros 56 milhões de hectares constituem o hiato entre a área ocupada por imóveis rurais de até quatro módulos fiscais e a área dos estabelecimentos agrícolas familiares. Só minúscula parte desse hiato é de agricultura patronal de médio porte. E dos 1,3 milhão de hectares de manguezais que se estendem por 16 Estados, entre Amapá e Santa Catarina, ao menos 200 mil hectares seriam detonados por salinas e criações de camarão.
Em vez de tomar consciência desses três graves atentados ao patrimônio socioambiental do Brasil, muita gente honesta andou sendo persuadida de que o substitutivo do Senado seria o menor dos males. Principalmente por influência da duvidosa aritmética do colega João de Deus Medeiros, professor do departamento de botânica da UFSC, que foi diretor do departamento de florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA) enquanto tramitou a chamada “reforma” do Código Florestal.
Nessa claudicante avaliação, o substitutivo do Senado levaria à recomposição florestal de 33 milhões de hectares: 18 milhões em reservas legais (RL) de imóveis com áreas superiores a quatro módulos fiscais, quase 13 milhões em APP de margens de cursos d’água (ripárias), e quase 2 milhões em APP de topos de morros. Assim, em 20 anos seria parcialmente honrado o compromisso da presidente de impedir reduções de APP e RL, mesmo que com amplo indulto aos criminosos desmatamentos dos últimos 15 anos.
Essa conta nem consegue dourar a pílula, pois é de 83 milhões de hectares a área que não está em conformidade com o Código Florestal. É o que demonstram os estudos coordenados pelo colega Gerd Sparovek, da Esalq/USP. Então, mesmo que fosse admitida a saída de Poliana proposta pelo ex-diretor de florestas do MMA, a promulgação do substitutivo do Senado significaria escandalosa entrega de 50 milhões de hectares à devastação. Pior, sem significativa vantagem real a milhões de abnegados produtores agrícolas, pois o grosso dessa área está simplesmente travestido de pastagem para fazer com que tais domínios passem por estabelecimentos de pecuária de corte extensiva.
Em suma: a melhor saída é atender o clamor dos agricultores por segurança jurídica, para depois tratar a pão e água os especuladores.