Indígenas podem ajudar a construir as mudanças necessárias na civilização

O líder indígena Cacique Raoni, da tribo Kayapo, faz um discurso durante evento na vila de Piaracu, no Parque Indígena do Xingu. — Foto: Ricardo Moraes/Reuters

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Hoje de manhã pensei duas vezes antes de fazer o café com a água do filtro. Será que já dá para não ficar doente? Continuo bebendo água mineral, embora os seis dias de tratamento com carvão ativado tenham melhorado a coloração do líquido lá em Guandu, como mostra a reportagem do G1. De qualquer maneira, é um desconforto, um gasto de dinheiro que ninguém contava e, para as classes que vivem com um salário mínimo, um medo diário de contrair virose ou coisa mais séria que impeça, inclusive, de trabalhar.

Não está mesmo fácil viver como “civilizados”. E assim, como não podia deixar de ser, a declaração do presidente Jair Bolsonaro de que os índios, cada vez mais, são “seres humanos como nós” soa, no mínimo, anacrônico. Será mesmo que pessoas que têm à disposição, na floresta, água pura e alimentos sem agrotóxicos, anseiam pela vida urbana?

Parte desta resposta está na entrevista concedida ao jornal britânico “The Guardian” por Tuntiak Katan, indígena do povo equador Shuar, que é vice-presidente da Coordenador das Organizações Indígenas da Bacia do Rio Amazonas (Coica) e foi o primeiro indígena a ser convidado para uma reunião de cúpula da ONU que trata de questões climáticas no ano passado. A fala de Katan contradiz claramente o que é dito por Bolsonaro. Diferentemente do que pensa o presidente da República, os indígenas podem ser, isto sim, conselheiros para lidar com a necessidade de preservar solos, rios e florestas.

“Somos os defensores da natureza, da vida das florestas, de nossos territórios. O mundo está investindo muito dinheiro para implementar políticas públicas de combate às mudanças climáticas, ajudar na conservação e restauração. Mas essas políticas são feitas nos escritórios por especialistas técnicos com pouco ou nenhum conhecimento da Terra”, disse ele.

Katan disse ainda que gostaria de ter ido ao Fórum Econômico Mundial, que aconteceu de 21 a 23 de janeiro na cidade suíça de Davos. Comenta que está em contato com os povos da floresta da Indonésia, país que tem dado pouca importância também aos conselhos dos indígenas. E faz um alerta:

“Se as propostas, conhecimentos e práticas de gestão dos povos indígenas não forem ouvidos, haverá mais grandes catástrofes. A questão dos incêndios na Amazônia continuará, a degradação das florestas e da água continuará, o desmatamento continuará”.

Apesar do tom catastrófico, não é difícil concordar com o que diz Katan. Há muito que especialistas têm se debruçado e pesquisado sobre novas perspectivas que permitam endereçar as mudanças de paradigma necessárias para dar à humanidade mais qualidade de vida. Enquanto isso, os indígenas vêm mostrando seu protagonismo na preservação das florestas, solos e rios, como se vê, por exemplo, no novo estudo divulgado pelo Centro de Pesquisa Woods Hole, em Falmouth, Massachusetts. Pesquisadores descobriram que entre 2003 e 2016, 90% das emissões de carbono na Amazônia vieram de terras não indígenas.

“Evidências crescentes apontam para povos indígenas e comunidades locais como amortecedores contra as emissões de carbono em larga escala em uma rede de nove países de territórios indígenas e áreas naturais protegidas. Usando dados publicados sobre mudanças na densidade de carbono acima do solo e cobertura florestal, rastreamos ganhos e perdas na densidade de carbono da conversão e degradação / perturbação da floresta. Descobrimos que as terras indígenas e as áreas naturais protegidas armazenaram mais da metade (58%) do carbono da região em 2016, mas foram responsáveis por apenas 10% da variação líquida”, diz o texto do estudo.

Não é difícil entender porque, para os povos do Xingu, uma região brasileira significativa – são vinte terras indígenas, dez unidades de conservação contínuas distribuídas em 27 milhões de hectares e que corresponde a 50% da Bacia do Xingu como um todo – o termo “Parque do Xingu” já não faz mais sentido. Na publicação “Xingu, Histórias dos Produtos da Floresta”, editada pelo Instituto Socioambiental (ISA), André Villas-Bôas conta que este foi um projeto geopolítico do qual os povos indígenas pouco participaram da sua criação, em 1961.

“Para os xinguanos atuais, o termo ‘Parque’ já não faz mais sentido. Entendem como algo que se refere a um espaço de visitação exótico e não a um território étnico. Querem que seu território seja denominado Terra Indígena Xingu – TIX. Enxergam-se e posicionam-se como protagonistas principais das decisões que regerão seu futuro”, escreve o secretário-executivo do ISA.

Como se vê, há povos indígenas que estão muito distantes da ideia preconizada pelo presidente Bolsonaro, de que estariam melhor se fossem “civilizados”. Penso nisto sempre quando caminho pelas ruas do Centro da cidade do Rio de Janeiro, segundo maior PIB do país, e vejo filas de colchões que acolhem famílias inteiras sem teto espalhadas pelas ruas. São pessoas excluídas pelo mercado. Será razoável imaginar que este mesmo mercado vai incluir os indígenas “civilizados?”

Neste fim de semana que passou, fiz contato com o livro “Ideias para adiar o fim do mundo”, escrito pelo indígena Aylton Krenak (Ed. Companhia das Letras). Ele é uma das lideranças indígenas da tribo dos Krenak e vive com mais 130 famílias às margens do Rio Doce, em Minas Gerais. Em entrevista ao jornal baiano ‘Correio”, Krenak fala sobre a questão da água no Rio de Janeiro – “Se uma cidade do tamanho do Rio chegou a ponto de colapsar a distribuição de água para consumo doméstico, imagine outros lugares que não são tão vitrine como o Rio de Janeiro”? – e comenta sobre a civilização moderna.

“A modernidade é fascinante, ela é como um veneno. Muitos valores que temos, que achamos fundamentais para a humanidade foram criados e foram incutidos na nossa cultura, na nossa mentalidade. Não no sentido individual, mas no sentido de massa, de grandes contingentes. Uma delas é que todos nós temos o direito de consumir. Isso é uma mentira”, disse Krenak à repórter Fernanda Santana.

Como sugere o título de seu livro, Krenak, que é professor e Doutor Honoris Causa da Universidade Federal de Juiz de Fora, consegue enxergar saídas. Fomos convertidos a uma ideia de humanidade, diz ele, mas é preciso revê-la:

“Até no começo do século 20, o mundo do trabalho e da produção era feito com ferramentas e meios que não tinham a potência de exaurir recurso da terra como temos hoje. Desse tempo para cá, sobraram poucas humanidades espalhadas pelo planeta nessas condições de quase humanos. Eles não estão engajados no consumo planetário, não se tornaram consumidores no sentido clientela, eventualmente eles consomem alguma coisa desse mundo industrial, mas não são dependentes disso para continuar existindo. Essa gente é o remédio da Terra”.

É apenas um entendimento de que as coisas se alternam, diz Krenak. E, já que já um desconforto “atravessando as rotinas das pessoas”, está na hora de mexer, provocar mudanças na civilização. E de ouvir aqueles que podem ajudar a construir essas mudanças de forma a garantir saúde para todos.