“Hoje é legal contaminar alguém com agrotóxico no Brasil”, critica procurador.

Em cerca de dez anos, a produção de agrotóxicos no Brasil cresceu entre 80 e 90% e o consumo aumentou aproximadamente 190%. Hoje é legal no Brasil e em outros países intoxicar ou contaminar alguém com agrotóxico, uma vez que a legislação admite um limite supostamente tolerável para o nosso organismo. A realidade é que as coisas não estão sendo ditas como deveriam. Agrotóxico é veneno e não há um uso seguro do mesmo. A avaliação do coordenador do Fórum Nacional de Combate ao uso abusivo de Agrotóxicos, Pedro Luiz Gonçalves Serafim da Silva, é uma advertência à toda sociedade e, em particular, ao Poder Judiciário e aos meios de comunicação, sobre a maneira que o tema vem sendo tratado no Brasil.

 

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/542434-hoje-e-legal-contaminar-alguem-com-agrotoxico-no-brasil-critica-procurador

 

A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada pelo jornal Sul 21, 04-05-2015.

Em entrevista ao Sul21, o procurador regional do Ministério Público do Trabalho de Pernambuco fala sobre a importância de os trabalhadores e a população em geral exercerem o seu direito à informação e exigirem transparência sobre o que está presente nos alimentos e na água que estão consumindo e nos produtos que estão manipulando em seus locais de trabalho. “De 2001 para cá, a mídia está mais aberta a esse tema, mas ainda há problemas. Os meios de comunicação não podem esconder que agrotóxico é veneno, não é defensivo agrícola nem remédio para as plantas como algumas pessoas ainda dizem. É veneno e não existe uso seguro. Deve dizer também que esse não é um problema só do campo, é da cidade, inclusive de quem trabalha na mídia”, diz Pedro Luiz Serafim.

Eis a entrevista.

Como procurador do Ministério Público do Trabalho e coordenador do Fórum Nacional de Combate ao Uso Abusivo de Agrotóxicos, qual sua visão sobre os problemas causados pelo emprego maciço destes produtos químicos no Brasil?

Há um reducionismo no debate sobre agrotóxicos que vem desde a chamada Revolução Verde. Esse reducionismo afirma que o agrotóxico é seguro e seu impacto fica limitado ao campo. A verdade é outra. Não existe uso seguro de agrotóxico e seu impacto está longe de permanecer limitado ao campo. Os agrotóxicos hoje estão na nossa mesa. Então, esse problema diz respeito ao campo e à cidade e está presente na mesa de cada um de nós, tornando-se um tema diretamente ligado à nossa segurança alimentar. Além disso, há o problema da contaminação da água, o que só reforça a ideia de que se trata de um problema que diz respeito a vida de todo mundo hoje.

Além da questão da segurança alimentar, tem crescido também a preocupação com a segurança do trabalhador. O sistema de saúde está começando a preparar os médicos para que possam incluir no diagnóstico a abordagem de temas que, até bem pouco tempo, eram tratados sob a designação genérica de “virose”, e estabelecer o vínculo do problema de saúde com a atividade profissional que a pessoa desempenha.

Como nasceu o seu envolvimento com esse tema?

Em 2001, recebemos no Ministério Público, um relatório do Ministério do Trabalho e Emprego sobre uma situação que envolvia 104 empresas do Vale do São Francisco, 96% delas em situação irregular. A partir deste caso, nós pensamos na criação de algo que pudesse funcionar como órgão de controle social. Surgiu daí um fórum com representantes do Estado, da sociedade e do Ministério Público, no papel de fiscal da lei. Foi assim que surgiu em 2001 o Fórum Pernambucano de Combate aos Efeitos dos Agrotóxicos, com a participação do Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal e Ministério Público Estadual. Este fórum passou a cobrar dos órgãos reguladores a fiscalização sobre o uso abusivo destas substâncias. Nós nos reuníamos uma vez por mês, recebendo denúncias e propondo alterações na legislação estadual, entre outras coisas. Essa iniciativa foi crescendo, avançou e fomentou a criação do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos (PARA), pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

O fórum de Pernambuco teve um papel pioneiro então, estimulando outras iniciativas em nível nacional?

Sim. Com o PARA, em 2001, o governo federal criou inicialmente um programa piloto envolvendo quatro capitais. Esse programa se firmou, foi crescendo e acabou sendo transformado em uma política nacional. Depois do fórum de Pernambuco, foram surgindo outras iniciativas similares em outros estados. Já havia um trabalho sobre esse tema sendo realizando no Paraná. Em 2009, surgiu então o Fórum Nacional Contra o Uso Abusivo de Agrotóxicos, com a participação de entidades da sociedade civil, organizações dos trabalhadores como a Contag (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), dos ministérios da Saúde, do Trabalho, da Agricultura, do Meio Ambiente, com suas respectivas agências, e também dos ministérios públicos federal, estadual e do trabalho.

O fórum nacional definiu três eixos de atuação. Em primeiro lugar, promover o direito à informação sobre temas relacionados aos agrotóxicos, à saúde do trabalhador e à saúde da população de um modo geral. A saúde do trabalhador participa de todo o processo de manipulação de agrotóxicos, incluindo aí, a fabricação, o transporte, o comércio, a aplicação e o descarte das embalagens e recipientes. Essa dimensão do uso destes produtos ficou escondida durante muito tempo. Além disso, há também as questões da saúde do consumidor e do meio ambiente. O segundo eixo é fomentar a criação de outros fóruns e grupos de trabalho pelo país. Já foram criados fóruns no Rio Grande do Norte, no Rio de Janeiro, na Bahia, no Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Acre e Sergipe.

O terceiro eixo, por fim, tem a ver com o tema da tutela mesmo, com ações na esfera administrativa, investigações, inspeções e ações judiciais. Esse trabalho vem crescendo. O Ministério Público Federal já ingressou com ações para reavaliação do uso aqui no Brasil de agrotóxicos banidos em outros países. No Maranhão, há uma ação na Justiça Federal para averiguar a responsabilidade das agências e órgãos do Estado que não atuaram para fiscalizar o uso de glifosato. Outro desdobramento importante dessas ações foi a incorporação do tema na agenda do Conselho Nacional do Ministério Público, que incluiu uma diretriz em seu planejamento estratégico propondo a articulação desse debate no âmbito dos ministérios públicos e com a sociedade.

Há representantes do Poder Judiciário participando desses fóruns e debates. Aqui no Rio Grande do Sul tivemos recentemente uma decisão do Tribunal de Justiça liberando o uso de agrotóxicos que tem o paraquat como produto básico e cujo está proibido na Comunidade Europeia. O Ministério Público recorreu dessa decisão. Como fica essa relação entre os MPs e o Judiciário em torno do tema “agrotóxicos”?

No Brasil e em outros países também, o Poder Judiciário é regido por alguns princípios, entre eles o da inércia de jurisdição. O juiz não toma a iniciativa da ação, ele fica esperando a chegada de alguma coisa que exige julgamento. Então, em tese, alguém pode dizer que o Judiciário não pode participar da discussão prévia de temas sobre os quais eventualmente vai julgar. Isso em tese. Os tribunais superiores, como o Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior do Trabalho, estão promovendo audiências públicas sobre temas importantes como direitos fundamentais, aborto, células-tronco, genoma, com o objetivo de ouvir a sociedade e subsidiar a tomada de decisões em julgamentos. É importante que o Judiciário escute a sociedade para colher informações e opiniões que podem auxiliar a sua tomada de decisões. Além disso, é bom lembrar que os agrotóxicos podem estar chegando à mesa dos juízes também.

Nós precisamos também aperfeiçoar a nossa legislação. A legislação brasileira admite limites para a presença no organismo de uma determinada substância utilizada na produção de agrotóxicos. Mas não há estudos científicos suficientes para avaliar o impacto desse limite tolerado e menos ainda para a possível sinergia entre diferentes substâncias químicas no nosso organismo. Hoje é legal no Brasil e em outros países intoxicar alguém com agrotóxico, pois se admite um limite supostamente tolerável. Em cerca de dez anos, a produção de agrotóxicos no Brasil cresceu entre 80 e 90% e o consumo aumentou aproximadamente 190%. Isso é algo para se pensar.

Aí entra o tema dos transgênicos também. Um dos elementos de propaganda do discurso em defesa do uso de transgênicos consistiu em dizer que eles diminuiriam a exigência de agrotóxicos em função de mudanças genéticas nas plantas. Mas ocorreu o inverso. Foram desenvolvidas sementes transgênicas resistentes a determinados tipos de agrotóxicos. Então, nas áreas onde essas sementes são cultivadas pode-se usar agrotóxicos para matar outras plantas sem afetar as primeiras. Além disso, essas sementes não geram novas sementes, o que exige que os agricultores comprem a cada safra novas sementes transgênicas, fechando um ciclo, onde uma mesma empresa fornece a semente e os agrotóxicos. O fato é que temos um paralelo entre o aumento do consumo de agrotóxicos e o aumento do plantio de transgênicos.

Considerando o período de existência do fórum nacional, de 2009 até hoje, na sua avaliação o problema do uso abusivo de agrotóxicos melhorou ou piorou no Brasil?

A minha avaliação é que esse problema se tornou mais evidente, ganhando mais espaço na mídia. A economia do cresceu muito, mas também cresceram determinadas enfermidades dos trabalhadores e dos cidadãos em geral. O aumento do número de casos de determinados tipos de câncer é um exemplo disso. Merece destaque a criação da campanha nacional contra os agrotóxicos e em defesa da vida, uma verdadeira infantaria da sociedade civil que vem estimulando um debate em todo o país. Há os dois filmes de Silvio Tendler, “O Veneno está mesa” I e II. Várias redes de televisão do Brasil e de outros países fizeram reportagens sobre o tema nos últimos anos. Entidades como a OEA (Organização dos Estados Americanos) e OMS (Organização Mundial da Saúde) também vem chamando a atenção dos países sobre esse problema, principalmente daqueles que têm suas economias mais ligadas à agricultura.

Por outro lado, na medida em que aumentou a visibilidade desse tema, cresceu também a reposta dos setores interessados em manter essa triste realidade, propondo, por exemplo, alterações no atual sistema regulatório que é razoável. Existe uma pressão na Câmara dos Deputados e no Senado para flexibilizar o sistema regulatório. Já temos antecedentes para servir de alerta como o caso do paraquat aqui no Rio Grande do Sul. Não se reconheceu o alerta da área da Saúde sobre os riscos desse produto, o que representa uma quebra do sistema tripartite que o Brasil observa desde a Lei 7802/89, que estabelece que nenhum produto deve ser liberado para uso no país se um de três ministérios (Saúde, Agricultura e Meio Ambiente) se posicionar contrariamente à liberação.

Além desse sistema tripartite ter sido quebrado no Rio Grande do Sul, no caso do paraquat, uma norma recente dá ao Ministério da Agricultura a prerrogativa de decidir sozinho no caso de uma emergência fitossanitária. Isso aconteceu com o benzoato de emanectina, que é extremamente neurotóxico. Em 2007, o Ministério da Saúde recomendou que sua entrada no país não fosse permitida, mas ele acabou sendo liberado. Houve uma praga com uma lagarta na Bahia e, supostamente, só esse produto poderia acabar com ela. Inicialmente ele foi liberado por meio de uma portaria do Ministério da Agricultura. Uma iniciativa do Ministério Público conseguiu barrar essa liberação, mas posteriormente foi liberado graças a uma Medida Provisória que deu essa prerrogativa especial ao Ministério da Agricultura.

Mais recentemente já mudaram o formato da Anvisa no que diz respeito aos agrotóxicos e querem criar um instituto ou um modelo tipo CTNBio, uma CTNAgro, que concentraria as decisões sobre a liberação desses produtos. Isso é muito preocupante. E é preciso assinalar ainda que muitos dos agrotóxicos comercializados hoje no Brasil têm isenção tarifária, alíquota zero ou reduzida, não só de ICMS, mas também em relação a outros impostos. Hoje, pode acontecer que um trabalhador seja contaminado por agrotóxicos em alimentos ou na manipulação no trabalho de produtos que não pagam impostos e, depois, quando ele vai comprar remédio para enfrentar esse problema ele pagará imposto pelo medicamento. Esse procedimento não é razoável, chega a ser surreal. E, às vezes, a empresa que produz o veneno é a mesma empresa que produz também o remédio, como é o caso da Bayer, para citar um exemplo. O Judiciário deveria considerar esses fatos na hora de tomar suas decisões.

Quais as prioridades do Fórum Nacional de Combate ao Uso Abusivo de Agrotóxicos para o ano de 2015?

Nós estamos sugerindo que seja fortalecida a ação local nos Estados e municípios, conclamando a sociedade. Os trabalhadores, as donas de casa, os movimentos sociais e sindicatos, todo mundo tem que participar deste debate pois ele diz respeito diretamente à saúde de todos. Só a partir dessa mobilização se terá força para enfrentar os poderosos interesses econômicos dessa indústria. A decisão sobre o consumo é uma da cidadania nesta luta. Se o pimentão ou o morango são apontados como reis do agrotóxico, cabe ao cidadão dizer “não compro esse morango nem esse pimentão”. Ele deve exercer o seu direito à informação e exigir que se diga o que há no produto que está comprando e também qual é a procedência.

Qual sua avaliação sobre o modo como os meios de comunicação vêm tratando desse tema?

Acho que, de 2001 para cá, a mídia está mais aberta a esse tema, mas não há dúvida de que ainda existem algumas interferências. A tarefa da mídia, aqui, deveria ser dizer a verdade e trazer alguns exemplos de fora sobre como essa questão vem sendo tratada na União Europeia, por exemplo, que vem adotando normas cada vez mais restritivas e rigorosas em relação ao uso de agrotóxicos. A mídia não pode esconder que agrotóxico é veneno, não é defensivo agrícola nem remédio para as plantas como algumas pessoas ainda dizem. É veneno e não existe uso seguro. Deve dizer também que esse não é um problema só do campo, é da cidade, inclusive de quem trabalha na mídia. A mídia ainda não diz tudo, mas alguns setores dela têm avançado neste tema.