Aqui aparece o que realmente cresceu no mundo! Foto: AFP
https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/crescimento-seis-decadas-ilusoes/
Ann Pettifor, é uma economista britânica que assessora governos e organizações. Ela publicou vários livros. Seu trabalho se concentra no sistema financeiro global, reestruturação da dívida soberana, finanças internacionais e desenvolvimento sustentável
24/07/2024
[NOTA DO WEBSITE: Uma reflexão muito oportuna face a todas as mazelas que a humanidade sofre, talvez, deste momento histórico em diante. Em torno de 50 anos depois da trágica proposta hegemonia econômica trazida pelo Reino Unido e pelos EUA, estamos num impasse. Como romper de forma pública e social, o poder das economias serem geridos pelas nações e que foi, irresponsavelmente, transferido para os ‘empreendedores’, os ‘meritocratas’? Agora, cada um e todos nós do planeta, vivemos ao seu bel prazer. Estão submetendo a humanidade a um sofrimento inquestionável em todas as áreas face sua autocracia econômica. E então? Como as pessoas e as nações poderão retomar o domínio de suas vidas econômicas depois de estarem completamente à mercê dos humores dos rentistas, com se egocentrismo e sua voracidade de Fantasmas Famintos que demonstram jamais saciarem sua fome e sua sede de ‘dinheiro’?].
Este ensaio faz parte de uma série de artigos, editada por Stewart Patrick e originada do Grupo de Trabalho Carnegie sobre Reimaginar a Governança Econômica Global.
“Crescimento” é um termo usado por economistas que têm em vista uma atividade econômica ampliada: um aumento no investimento, emprego, bens e serviços. Também é usado, de forma pejorativa, por ambientalistas convencidos de que a expansão interminável da atividade econômica em um mundo com recursos finitos é insustentável. Eles empregam mais comumente seu antônimo, “decrescimento” – como em The Future Is Degrowth: A Guide to a World beyond Capitalism [“O futuro é decrescimento: Um guia para um mundo além do capitalismo”]. O uso e a evolução de “crescimento” e sua ligação com o PIB representam uma etapa importante no surgimento do sistema atual de governança econômica global, baseado nas expectativas de “crescimento” contínuo, por sua vez facilitado pela desregulamentação financeira e mobilidade de capital (nota do website: essa visão sobre como encaminhar a economia global foi uma imposição do neoliberalismo capitaneado, nos anos 80, pela ditadora inglesa, ‘dama de ferro’ Margareth Thatcher, e pelo presidente dos EUA, ‘canastrão de Hollywood’, Ronald Reagan. Hoje colhemos os frutos desta dupla que destroçou as relações entre os povos com esta visão de mundo). Tal “crescimento”, no contexto do capitalismo financeirizado, levou a desequilíbrios ecológicos, sociais e econômicos que ameaçam provocar colapso sistêmico (nota do website: destaque em negrito dado pelo site).
Os fluxos globais de liquidez, consequência do desenvolvimento do sistema financeiro, são canalizados em grande parte por instituições financeiras não bancárias, também conhecidas como “bancos-sombra” [shadow banks]. Segundo o Conselho de Estabilidade Financeira, o valor total dos ativos financeiros detidos pelos bancos-sombra em 2022 totalizou 217 trilhões de dólares – mais que o dobro do PIB mundial. Por definição, essas instituições operam além do alcance da democracia regulatória, embora estejam vinculadas aos bancos centrais do mundo. Suas atividades impactam a formulação de políticas econômicas pelos Estado e representam riscos sistêmicos para a economia mundial.
Para reimaginar a governança econômica global, precisamos voltar no tempo e examinar o surgimento de um sistema de “não governança” econômica global, ou um “não sistema”, para citar o economista colombiano José Antonio Ocampo. Uma “não governança” que levou à criação do sistema bancário sombra e a desequilíbrios financeiros e econômicos globais desestabilizadores.
As Origens do “Crescimento” e da Desregulamentação
A história começa com o economista britânico John Maynard Keynes. Na década de 1930, Keynes desempenhou um papel muito maior na criação e construção das contas nacionais do Reino Unido (e, por fim, do mundo) do que geralmente se reconhece. Fez isso não com o propósito de contabilidade, mas para avaliar o nível existente de renda em relação ao nível potencial, sob certas condições políticas.
O valor do que então era conhecido como “renda nacional”, e que veio a ser definido por Simon Kuznets como “PIB”, era de menor interesse para Keynes. Como explica Geoff Tily, Keynes considerava a criação desta conta como um meio para um fim, não um fim em si mesmo. “As contas nacionais foram desenvolvidas para apoiar a política: resolver a crise do desemprego da Grande Depressão e ajudar no uso pleno dos recursos nacionais para a condução da Segunda Guerra Mundial.” É importante reconhecer, continua Tily, que
essas iniciativas teóricas e práticas visavam ao emprego ampliado, e em seguida pleno, dos recursos; e à plena extensão da produção nacional – muito mais do que ao crescimento da atividade. Nesta fase, não havia noção, por parte dos formuladores de políticas, de que o nível de atividade poderia ser estimulado de maneira sistemática ou uniforme de ano para ano; a intenção era alcançar mudanças de nível pontuais. Não há dúvida de que eles foram bem-sucedidos nesse objetivo e em sustentar esses ganhos na era dourada do pós-guerra.
A Revolução do “Crescimento”
Essa abordagem das contas nacionais mudou radicalmente no final dos anos 1950 e início dos anos 1960. No Reino Unido, vários economistas profissionais – entre eles, Sir Samuel Brittan, colunista proeminente do Financial Times – defenderam um novo conceito de “crescimento” contínuo e se definiram como “os homens do crescimento” [the growthmen]. Foi uma abordagem que mudou o caráter da política ao longo da era pós-guerra. Abandonando o objetivo de fixar o nível de emprego e de produção em níveis sustentáveis, os governos passariam a estabelecer uma meta sistemática e improvável: perseguir o crescimento. Ninguém parece ter parado para considerar se o crescimento – calculado como a taxa de variação de uma função contínua – era uma maneira significativa ou válida de interpretar as mudanças no tamanho das economias ao longo do tempo, escreve Tily.
Em paralelo, a política econômica passou a enfatizar cada vez mais as abordagens a partir da produção [supply-side approaches]e, na prática, um compromisso com a desregulamentação da atividade econômica. Isso é exemplificado pelo Conselho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) que adotou, em 12 de setembro de 1961, um “Código para a Liberalização dos Movimentos de Capital”. Esse código, uma estrutura para a remoção progressiva de barreiras aos fluxos de capital entre países, presumivelmente foi projetado para viabilizar o que Tily chama de “ambição ridícula de crescimento rápido e incessante, independentemente da capacidade do mercado de trabalho”.
Em outubro de 1961, a OCDE realizou uma conferência sobre “Crescimento Econômico e Investimento em Educação” no Brookings Institution em Washington. Encorajada por economistas “clássicos” e desanimada com os níveis de atividade econômica – que eram altos, mas sustentáveis – a OCDE propôs impulsionar drasticamente as economias do Reino Unido e de outros países. Na época, o Reino Unido estava na feliz situação de assegurar pleno emprego. Nas palavras do então primeiro-ministro Harold Macmillan, os britânicos “nunca tiveram uma situação tão boa”. Em 17 de novembro de 1961, a OCDE concordou com uma meta de crescimento de 50% para o Reino Unido de 1960 a 1970. Equivalia a 4,1% ao ano. Na época, a taxa de desemprego britânica era de 1,2%.
O resultado destas metas excessivamente ambiciosas era totalmente previsível – uma época de inflação desenfreada nos anos 1970, seguida por períodos de excessos financeiros e crises recorrentes. A culpa por essa inflação tem sido atribuída, injustamente, a Keynes e ao movimento trabalhista. Na verdade, a tentativa de alcançar uma meta de crescimento muito implausível, em condições de quase pleno emprego, levou à desconstrução do legado de Keynes: a “idade de ouro” do capitalismo de 1945 a 1971. Acima de tudo, levou ao desmantelamento do sistema de governança econômica global gerida, que fora estabelecido na conferência de Bretton Woods, em 1944.
A questão Governança Econômica Global
Na introdução de seu livro Who Governs the Globe? [“Quem governa o mundo?”], Deborah Avant, Martha Finnemore e Susan Sell argumentam que o termo técnico “governança” obscurece o papel desempenhado pelos que dirigem de fato do mundo. Tais abstrações absolvem de sua responsabilidade indivíduos e instituições poderosas, incluindo atores não estatais. Além disso, como elas explicam,
As estruturas estatais não dão conta (…) da governança real existente no mundo hoje. Apenas uma pequena fração da atividade de governança global envolve representantes do Estado negociando apenas entre si (…) Globalização, desregulamentação, privatização e mudança tecnológica capacitaram atores não estatais. Grande parte da literatura sobre governança global a equipara, implícita ou explicitamente, à provisão de bens públicos globais… [Na verdade,] os resultados da governança frequentemente estão desconectados tanto do público quanto do bem. A inação global sobre as mudanças climáticas, a falta de acesso às vacinas contra HIV/AIDS e COVID são exemplos proeminentes. O colapso financeiro global de 2007–09 é outro.
A ausência de governança pelos Estados na economia global levou a um sistema econômico internacional que, na prática, é governado não por autoridades públicas (ou seja, democráticas), mas privadas – mesmo quando instituições públicas financiadas pelos contribuintes desempenham o papel de subsidiar, reduzir riscos e resgatar instituições financeiras privadas.
Graças à mobilidade do capital, atores privados no sistema financeiro internacional exercem influência indevida sobre políticas vitais para a estabilidade econômica dos Estados, incluindo taxas de câmbio, taxas de juros e fluxos globais de investimento, capital e comércio. Essa perda de autoridade pública sobre as economias global e doméstica levou à desilusão com a democracia. Acima de tudo, gerou níveis obscenos de desigualdade dentro e entre os Estados. Essa desigualdade, como Michael Pettis e Matthew C. Klein ilustram em seu livro Trade Wars Are Class Wars [“Guerras comerciais são guerras de classe”] ajudou a criar desequilíbrios nas contas comerciais e de capital entre os Estados.
O modelo econômico global que surgiu da revolução do crescimento dos anos 1960 volta as economias não para a esfera doméstica – mas para os mercados de capitais internacionais desregulados e as exportações. A orientação para exportação de economias como a da Alemanha e a China aumenta a renda do 1% mais rico – os proprietários e acionistas de corporações orientadas para exportação. As rendas dos 99% restantes – os salários dos trabalhadores na economia doméstica – são deprimidas. A Fundação British Resolution calcula que, após quinze anos de estagnação, as rendas no Reino Unido estão em média £230 [R$ 1700] abaixo de antes da crise financeira global de 2007–2009. O Congresso dos Sindicatos [Trade Unions Congess] argumenta que os trabalhadores suportaram o mais longo aperto salarial desde as guerras napoleônicas, no início do século XIX.
No entanto, o problema é: o 1% mais rico não gasta toda a sua renda. Há limites para o número de superiates, jatos particulares e propriedades luxuosas que seus integrantes podem comprar. Em contraste, os 99% gastam toda a sua renda—usando-a para manter seu teto, comprar comida, proteger sua saúde e enviar seus filhos para a escola. No entanto, como as rendas caíram em termos reais, as populações passaram a carecer do poder de compra necessário para adquirir tudo o que é produzido pela economia orientada para exportação. Não é que o poder de compra da sociedade esteja buscando bens e serviços escassos; há, ao contrário, muitos bens e serviços disponíveis, disputando o pequeno poder de compra das maiorias. Esse desequilíbrio levou a altos níveis de dívida privada, à medida que os 99% tomam dinheiro emprestado para habitação, saúde e alimentação, ao mesmo tempo em que as empresas (que não conseguem vender tudo o que produzem) tomam empréstimos para compensar a queda nas vendas.
As consequências são o oposto da teoria econômica convencional: superprodução, altos níveis de dívida privada e rendas em queda. A experiência mostrou que todos esses elementos levam a crises financeiras globais.
O que precisa ser feito?
As políticas de Keynes para níveis estáveis de produção e emprego exigiam um sistema econômico global que apoiasse a formulação de políticas domésticas – em vez de se opor a elas. Ao preparar o Tesouro Britânico para a conferência de Bretton Woods, Keynes explicou à Câmara dos Lordes em 1944 que sua “principal tarefa nos últimos vinte anos” tinha sido garantir que
no futuro, o valor externo da libra esterlina estará conforme a seu valor interno, estabelecido por nossas próprias políticas domésticas, e não o contrário. Em segundo lugar, pretendemos conservar o controle sobre nossa taxa de juros doméstica, para que possamos mantê-la tão baixa quanto convier aos nossos próprios propósitos, sem interferência do fluxo e refluxo dos movimentos internacionais de capital ou voos de dinheiro especulativo. Em terceiro lugar, embora pretendamos prevenir a inflação em casa, não aceitaremos a deflação ditada por influências externas. Em outras palavras, rejeitamos os instrumentos de taxa bancária e contração de crédito operando através do aumento do desemprego como um meio de forçar nossa economia doméstica a se alinhar com fatores externos.
Keynes assumiu que um sistema monetário voltado principalmente aos interesses das finanças e da riqueza se opunha a níveis estáveis de produção e emprego doméstico e, em última análise, a relações comerciais e financeiras equilibradas entre Estados. Dado o entendimento científico atual sobre os recursos finitos da Terra, é evidente que um sistema econômico global baseado em juros compostos sucessivamente acumulados e em concentração de capital também se opõe a um clima e ecossistema estáveis. A crença na viabilidade e continuidade de tal sistema é utópica. Dada a crise ambiental, as populações que se defrentam com condições climáticas cada vez mais duras e com quebras de colheitas e de geração energética terão que transformar urgentemente o “não sistema” mundial, para estabilizar as economias domésticas.
A estabilidade econômica global exigirá a restauração do equilíbrio ao sistema comercial internacional e a reorientação das economias. Ao invés de dirigidas para o sistema financeiro global, elas precisarão priorizar aos interesses econômicos domésticos, em particular os da maioria: os 99%. Em outras palavras, a economia global precisa ser levada para longe dos interesses da riqueza globalizada e em direção aos interesses dos trabalhadores na economia doméstica. Devemos novamente construir uma economia para o trabalho—especialmente o trabalho de restaurar o equilíbrio ao ecossistema—e não para a riqueza.
Se queremos manter a aposta na democracia e afastar a ameaça das forças autoritárias, as sociedades devem cooperar para ajudar a restaurar a autoridade pública, democrática e responsável sobre a economia global e doméstica. Essa transformação só pode ser alcançada se a comunidade internacional trabalhar em solidariedade para restringir e gerenciar os fluxos globais de capital e comércio. Para isso será necessária uma nova forma de governança econômica global, baseada na cooperação e coordenação internacional—e em atividade econômica equilibrada e sustentável.
Um dos modos de fomentar a solidariedade internacional é desmantelando o sistema financeiro com mobilidade de capital irrestrita, baseado em uma moeda de reserva hegemônica—um sistema tão prejudicial aos cidadãos do hegemon quanto a muitos outros Estados, como argumenta Michael Pettis. E é essencial para qualquer movimento rumo a “um mundo além do capitalismo” abandonar o sistema que turbinou a globalização: o mito do “crescimento”, visto como variação de uma função contínua.