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MORDECAI KURZ, Professor emérito de economia na Universidade de Stanford
15 de março de 2024
[NOTA DO WEBSITE: Longo texto e complexo, mas que deve, pelo menos, por todos nós, ser reconhecido e procurarmos, no seu desdobrar, encontrar pontos que vão nos aumentando nossa capacidade cognitiva de entrarmos em temas que podem nos parecer de ‘outro mundo’. Há alguns destaques e conexões com outros textos já publicados que vão nos dando os fios das meadas do mundo excludente que a civilização ocidental, apoiada na ideologia do supremacismo branco eurocêntrico, tem nos levado via esse capitalismo devastador e desumano que aumenta sua influência global, cada vez mais. Não nos deixemos adormecer em cima de nosso desconhecimento e de nossa preguiça].
Desde a década de 1980, o capitalismo americano foi transformado numa economia em que o vencedor leva tudo, na qual uma ou algumas empresas tecnologicamente dominantes monopolizam cada setor à custa dos consumidores, dos trabalhadores e do crescimento global. E com o poder de mercado permanente vem o tipo de poder político que é antitético à democracia.
STANFORD – O capitalismo de mercado livre apoia a democracia ou desencadeia forças antidemocráticas? Esta questão surgiu pela primeira vez na Era do Iluminismo, quando o capitalismo era visto com otimismo e acolhido como um veículo de libertação da rígida ordem feudal. Muitos imaginaram uma sociedade de oportunidades iguais de pequenos produtores e consumidores, onde ninguém teria poder de mercado indevido e onde os preços seriam determinados pela “mão invisível”. Sob tais condições, a democracia e o capitalismo são duas faces da mesma moeda.
A propaganda interna nos Estados Unidos promoveu a mesma visão otimista ao longo do século passado, com o objetivo de convencer os eleitores de que o capitalismo de mercado livre é essencial para o “American Way” e que a sua liberdade depende do apoio à livre iniciativa irrestrita e da desconfiança no governo. Mas a evolução econômica nas últimas décadas sugere que deveríamos reexaminar tais crenças.
Para perceber porquê, permitam-me primeiro esclarecer algumas ideias básicas sobre o que chamo de competição tecnológica entre empresas inovadoras que procuram acumular poder de mercado. Essa concorrência difere da concorrência convencional de preços, pois produz apenas um ou alguns vencedores, em vez de permitir que todas as empresas sobrevivam com lucros mais baixos.
Os vencedores das corridas tecnológicas estão numa posição única para consolidar o seu poder de mercado através de diversas estratégias – incluindo a emissão de atualizações tecnológicas periódicas, a aquisição de concorrentes ou a construção de barreiras à entrada com patentes (alcançando muitas vezes um poder de mercado muito maior do que o pretendido pela legislação de patentes). A dominação tecnológica é, portanto, a base para alcançar poder de mercado sobre os produtos vendidos aos consumidores, o que por sua vez permite a uma empresa extrair lucros de monopólio.
Em tais situações, o poder de mercado torna-se tão arraigado que os potenciais rivais preferem cooperar com a empresa de topo em vez de competir com ela. As políticas laissez-faire que permitem o crescimento de monopólios apenas aumentam esse poder. Como resultado, o poder de mercado torna-se uma característica permanente de uma economia capitalista. A competição tecnológica é ineficaz e a destruição criativa não restaura a eficiência econômica.
O poder de mercado permanente altera o capitalismo ao inaugurar uma economia em que o vencedor leva tudo, na qual uma ou algumas empresas tecnologicamente dominantes monopolizam cada setor. Uma tal economia não só utiliza recursos de forma ineficiente; produz também uma concentração de poder econômico e político que ameaça a democracia, cuja sobrevivência se torna então dependente da criação de novos instrumentos políticos para a proteger.
A SEGUNDA ERA DOURADA
A Primeira Era Dourada (1870-1914) é um ponto de referência essencial para a compreensão do momento atual, porque o seu culto antidemocrático ao poder empresarial minou a visão otimista do Iluminismo sobre os mercados. É verdade que foi um período de extraordinário progresso tecnológico e econômico, que proporcionou a maioria das principais inovações do século XX. Entre 1895 e 1904, contudo, mais de 2.000 empresas foram fundidas em 157 grandes conglomerados, deixando praticamente todos os setores da economia dos EUA dominados por um poderoso monopolista.
Aqueles que criaram estes trustes acreditavam que estavam fazendo a obra de Deus de fortalecer a economia, salvando-a de uma concorrência “ruinosa”. Apoiados nas ideias do eugenista Francis Galton e na teoria do darwinismo social de Herbert Spencer, os líderes empresariais viam-se como os homens superiores e inteligentes que tinham prevalecido no processo de seleção natural.
Este processo de seleção também se aplicava às suas empresas, através das quais estavam a construir uma nova sociedade na qual alguns homens fortes liderariam. Seguiu-se que as empresas pequenas e fracas deveriam ser eliminadas ou engolidas por monopólios fortes. Estas últimas eram vistas como superiores a todas as empresas incapazes que iam à falência em depressões frequentes. Os grandes monopólios também eram considerados organizações progressistas. Como disse John D. Rockefeller (nt.: acesso a um texto importante para se saber quem foi esse personagem e o que um dos seus descendentes construiu em relação ao Brasil, exatemente por essa expressão dita a seguir por J.D.Rockefeller), a monopolização era imparável porque era “a lei de Deus”.
Estas ideias foram rejeitadas pelos reformadores progressistas e pelos que perseguiam a aplicação da legislação antitruste sob o presidente Theodore Roosevelt depois de 1901, e sob o presidente Franklin Roosevelt na era do New Deal. Os americanos nestes períodos escolheram a democracia e rejeitaram a oligarquia adoradora do poder, resultando numa longa era de crescimento econômico com prosperidade partilhada.
Mas essa história terminou em 1981, quando uma política econômica renovada de laissez-faire conduziu à economia contemporânea em que o vencedor da tecnologia leva tudo. Nesta Segunda Era Dourada, a adoração do poder e da riqueza regressou com força total. Os fortes incentivos do capitalismo à inovação e ao crescimento permanecem, mas a sobrevivência da democracia depende da capacidade de conter os efeitos mais destrutivos do sistema.
Numa economia em que o vencedor da tecnologia leva tudo, o poder de mercado conferido pela inovação leva a que uma ou algumas empresas monopolizem cada indústria. Uma empresa pode oferecer produtos caros e de alta qualidade, enquanto uma segunda pode oferecer produtos de baixo custo e qualidade adequada. Todos estes produtos são marcas registadas e todos os lucros de monopólio são considerados “inocentes” por lei, porque resultam de inovações “espontâneas” e não estão sujeitos à aplicação da legislação antitrust.
Neste ambiente, as pequenas empresas marginalizadas são vulneráveis a atos hostis ou a aquisições por empresas maiores. As empresas dominantes têm facilidade em adquirir tecnologias inovadoras concorrentes, porque as pequenas empresas estão relutantes em arriscar perder uma guerra econômica contra poderosos operadores históricos.
Quando uma empresa aumenta o seu preço e obtém lucros de monopólio, isso leva a uma utilização ineficiente dos seus recursos econômicos, resultando em última análise numa produção significativamente mais baixa e numa menor procura de fatores de trabalho e de capital. A título aproximado, a produção e os fatores de produção de uma empresa monopolista podem ser reduzidos até metade. Quando o poder de mercado é generalizado, isto resulta num investimento mais baixo, em salários mais baixos e numa taxa mais baixa de crescimento salarial. O resultado agregado são níveis mais baixos de rendimento, consumo e estoque de capital.
Além disso, quando os preços são demasiado elevados, muito poucos consumidores se beneficiarão das novas inovações – como se verifica frequentemente no caso dos medicamentos dispendiosos. Existem provas substanciais de que o poder de mercado conduz a abusos de poder extensivos de forma mais ampla. Estas podem incluir a construção de grandes barreiras à entrada de potenciais concorrentes, a supressão de inovações concorrentes, esforços para obrigar a aquisição de concorrentes, e assim por diante. O resultado é um produto nacional bruto que cresce mais lentamente do que é tecnologicamente viável.
RENDA DE CAPITAL E LUCROS DE MONOPÓLIO
A existência de lucros monopolistas altera a contabilidade empresarial. Em condições competitivas, o rendimento criado por uma empresa é dividido numa parcela de trabalho e numa parcela de capital. Mas com poder de mercado permanente, o rendimento de uma empresa é dividido em três partes: trabalho, capital e lucros de monopólio.
Esta distinção entre rendimento de capital e lucros de monopólio é central para o tipo de capitalismo tecno-vencedor-leva-tudo. O rendimento líquido pago ao capital consiste em pagamentos de juros às taxas de mercado prevalecentes, enquanto os lucros monopolistas extraídos através de preços superiores aos custos incrementais são pagos à fonte de poder de mercado: principalmente tecnologia de propriedade privada e outros direitos de propriedade intelectual.
O fato das empresas lideradas por tecnólogos “explorarem” tanto o trabalho como o capital é o cerne da história, separando o capitalismo tecno-vencedor-leva-tudo da visão socialista, na qual o capital explora sempre o trabalho.
O aumento do poder de mercado fez com que a maioria dos americanos experimentasse um declínio ou, na melhor das hipóteses, um aumento lento dos rendimentos reais (ajustados pela inflação). A maior parte dos lucros dos monopólios tem origem em inovações, mas a proporção de pessoas que investem em startups de risco ou em empresas envolvidas em inovações de risco é pequena. Aqueles que mais lucram com uma inovação são o inovador e um pequeno círculo de consultores financeiros e investidores iniciais que compram as ações iniciais da empresa a preços baixos.
Quando uma inovação é bem-sucedida, as ações da empresa passam a ser negociadas publicamente e o seu valor aumenta acentuadamente, tornando os proprietários ricos num curto espaço de tempo. Isto explica por que a maior parte dos lucros dos monopólios e dos rendimentos dos executivos obtidos hoje – e a riqueza criada por esses lucros desde a década de 1980 – beneficiaram apenas uma pequena minoria de americanos. A desigualdade de rendimentos e de riqueza aumentou desde então.
A rápida taxa de acumulação de riqueza causada pelas inovações contrasta fortemente com o ritmo lento de crescimento alcançado pela acumulação de capital através da poupança. Uma taxa extremamente elevada de lucros de monopólio é a única forma de acumular riqueza inimaginável durante a vida, e explica porque é que os EUA têm 756 multimilionários.
Numa economia tecno-vencedor-leva-tudo, os lucros medidos convencionalmente são divididos entre capital e poder de mercado. A teoria econômica explica que os pagamentos de juros compensam os proprietários de capital pelas suas poupanças passadas, enquanto uma patente paga royalties por um monopólio sobre uma tecnologia . Estas são duas funções econômicas diferentes . Da mesma forma, o rendimento do capital e os lucros do monopólio são diferentes: um reformado com riqueza poupada é um capitalista que obtém rendimentos do capital, enquanto um empreendedor-inventor que possui uma startup de sucesso em Silicon Valley obtém principalmente lucros de monopólio.
A mesma distinção entre rendimento de capital e lucros de monopólio exige que os mercados diferenciem entre os ativos associados a uma empresa, o capital e a riqueza de monopólio. Enquanto o capital de uma empresa é o valor dos ativos tangíveis que possui (tais como equipamentos, estruturas e inventários), a riqueza do monopólio é a atual avaliação de mercado dos lucros futuros do monopólio que se espera obter.
Em 2019, a maior parte do capital detido pelas empresas dos EUA foi financiado por obrigações, o que implica que o valor do capital das empresas foi expresso principalmente no mercado obrigacionista, deixando o mercado de ações a refletir principalmente a riqueza monopolista. No mesmo ano, a riqueza do monopólio representava 75% do valor total das ações nas bolsas dos EUA. O mercado de ações tornou-se principalmente uma arena para o comércio de riqueza monopolista, e o principal risco de possuir ações ordinárias de uma empresa é o risco para os seus ganhos futuros de lucros monopolistas.
CONSEQUÊNCIAS POLÍTICAS
Estas dinâmicas econômicas e de mercado têm implicações políticas de longo alcance. Uma delas é a elevada desigualdade, que é resultado direto de um elevado grau de poder de mercado. É bem sabido que a desigualdade econômica cria desigualdade política, ao dar aos ricos uma voz mais forte.
Ao pensar sobre esta questão, meço o poder de mercado pela percentagem dos lucros do monopólio no rendimento e considero dados sobre o setor empresarial nacional onde o poder de mercado pode ser exercido. Como mostra o gráfico abaixo, o grau de poder de mercado flutua com elevada persistência no longo prazo. Na Primeira Era Dourada, os lucros do monopólio atingiram 31% da renda corporativa; na Segunda Era Dourada, iniciada em 1981, a sua participação atingiu cerca de 25%. Estes números são compatíveis com outros resultados de investigação, mostrando um aumento acentuado e correspondente da desigualdade pessoal.
O aumento do poder de mercado causará sempre um aumento da desigualdade, beneficiando alguns e prejudicando outros. Mas uma política passiva de mercado livre agrava tais resultados, porque os indivíduos são deixados à própria sorte e as políticas públicas não compensam os prejudicados nem atenuam as suas causas. Os meios de subsistência dos cidadãos inocentes tornam-se então o preço da sociedade pelos ganhos coletivos do crescimento econômico – uma injustiça que tem graves consequências políticas.
Os principais vencedores da política de mercado livre e do aumento do poder de mercado desde a década de 1980 foram os poucos no estrato de rendimento mais elevado e os tecnicamente qualificados com formação universitária, enquanto os trabalhadores não qualificados sem formação universitária foram os mais prejudicados. O resultado é a polarização social, com os pobres confrontados com os ricos e os menos instruídos contra os universitários.
O ponto crítico a lembrar é que esta desigualdade profundamente divisiva resulta da tecnologia e de uma política pública específica de mercado livre. Aqueles que perderam os seus meios de subsistência reconhecem que são vítimas de uma escolha política. Pagaram o preço para que outros se beneficiassem e para que alguns ficassem imensamente ricos, e como resultado a democracia americana foi enfraquecida. As evidências mostram que a maioria dos participantes no ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio eram ex-trabalhadores prósperos que foram deixados para trás.
UMA TRINCA PERIGOSA
Estes resultados refletem o impacto de três fatores: aumento do poder de mercado, automação e globalização. O aumento do poder de mercado, como vimos, causou o declínio ou o crescimento lento de todas as remunerações laborais. Entretanto, a automatização contribuiu para o aumento da desigualdade entre as competências laborais, ao substituir alguns trabalhadores e ao mesmo tempo beneficiar outros (um efeito conhecido como “mudança tecnológica enviesada em termos de competências”).
Consideremos a linha de montagem, que foi introduzida em 1913 para reduzir o custo da mão de obra. A produção foi reduzida a etapas simples que tornaram redundantes a maioria dos trabalhadores qualificados que produziam automóveis naquela época. Para trabalhar na linha de montagem, era necessário apenas disciplina e capacidade mental para realizar uma tarefa repetitiva, o que significa que não era necessário um longo aprendizado, muito menos um diploma universitário.
A linha de montagem aumentou assim a produtividade dos trabalhadores não qualificados e aumentou os seus salários. Criou uma classe de operários altamente produtivos e com baixa escolaridade, cuja experiência de trabalho era o seu ativo mais valioso, que lhes permitiu desfrutar de padrões de vida de classe média.
A automação e a robótica tiveram o efeito oposto, substituindo os trabalhadores não qualificados que executam tarefas repetitivas e fazendo com que perdessem a sua valiosa experiência de trabalho. Alguns encontraram empregos alternativos bem remunerados, mas a maioria dos trabalhadores sem diploma universitário foi forçada a aceitar empregos em serviços sem futuro e mal remunerados. Isto eviscerou a classe média dos EUA, anteriormente povoada por operários bem remunerados.
Igualmente importante, os computadores complementaram o trabalho de trabalhadores qualificados com formação universitária que executam tarefas complexas que podem agora ser executadas de forma mais eficiente, aumentando a produtividade e os salários destes trabalhadores. Contudo, a inteligência artificial provavelmente causará outra reviravolta na composição de competências da força de trabalho dos EUA.
O terceiro fator é a onda de globalização que se originou com a política dos EUA pós-Segunda Guerra Mundial para ajudar a recuperação da indústria japonesa e alemã. O mesmo processo permitiu então o crescimento da China, muito em detrimento dos empregos industriais nos EUA. Após a década de 1980, a tecnologia da informação permitiu aos trabalhadores com maior escolaridade encontrar empregos alternativos satisfatórios, mas o mesmo não aconteceu com os antigos operários com menor escolaridade.
Estas três forças criaram grandes classes de vencedores e perdedores. Embora os diretamente prejudicados fossem principalmente trabalhadores pouco qualificados e com menor escolaridade na indústria transformadora e na mineração, a degradação das suas vidas também corroeu os rendimentos das suas famílias imediatas e alargadas. Como a maioria vivia em áreas geográficas específicas, como o Centro-Oeste e o Sudeste, estas economias regionais experimentaram uma morte econômica lenta. A depressão levou muitos ao álcool, ao abuso de substâncias e ao suicídio, fazendo com que a esperança de vida diminuísse, enquanto os decisores políticos ignoravam, na sua maioria, o problema.
Embora não disponhamos de estatísticas precisas, é seguro dizer que estes desenvolvimentos degradaram a vida de dezenas de milhões de americanos. Os prejudicados consideraram a sua situação profundamente injusta. Estão zangados e perderam a fé no sistema que os traiu.
Isto não é surpreendente. É essencial para a viabilidade da democracia que o público considere justos os efeitos distributivos das políticas públicas . Sem uma política justa que imponha impostos aos vencedores e ajude os perdedores a recuperarem o seu rendimento e a sua dignidade, a democracia ficará enfraquecida. Os prejudicados voltaram-se contra as elites instruídas que conceberam a política e contra os imigrantes que consideram que lhes tiram os empregos e competem por bens e serviços públicos escassos. Encontraram um lar em novos movimentos antidemocráticos, como o MAGA de Donald Trump, que agora assumiu o controle do Partido Republicano (nt.: ver o documentário Cambridge Analytica para entender tudo o que está por trás desse personagem).
ELEFANTES NA SALA
Ao longo do tempo, a economia tecno-vencedor-leva-tudo permitiu o surgimento de um conjunto de centros de poder econômico e político interdependentes identificados pelas grandes empresas, pelos seus gestores de topo e pelos principais acionistas. As grandes empresas – e alguns indivíduos ultra-ricos – exercem um vasto poder através de lobbying e donativos de campanha, mas o seu poder não pára aí. Eles também adquirem grandes quantidades de informações para manipularem nossas compras e dominarem nossos canais de comunicação. Armados com IA, o seu controle sobre grande parte da informação que recebemos provavelmente aumentará ainda mais.
Todos os efeitos nocivos observados até agora são exacerbados pelas redes sociais. Empresas como a X (anteriormente Twitter) e a Meta – cada uma totalmente controlada por um único bilionário – podem ter efeitos decisivos em qualquer eleição, o que dificilmente é compatível com uma democracia saudável. Muito tem sido escrito sobre o impacto destrutivo das redes sociais no funcionamento da democracia e no envolvimento cívico, pelo que o ponto que gostaria de sublinhar diz respeito ao seu estatuto jurídico.
A experiência tem demonstrado que as plataformas de redes sociais são propícias ao comportamento das multidões e à propagação de notícias falsas, teorias da conspiração, discursos de ódio (nt.: precisamos reconhecer por isso o que está acontecendo no Brasil com a passagem do ex-capitão e todos os militares lacaios) e muito mais. Este conteúdo prolifera porque as plataformas são protegidas pela Seção 230 da Lei de Decência nas Comunicações de 1996 (que foi promulgada não para melhorar o bem-estar público, mas para ajudar na reeleição do Presidente Bill Clinton).
Para piorar a situação, o Supremo Tribunal dos EUA contribuiu para a formação de um poder monopolista e tornou-se um grande obstáculo à reforma. Na sua decisão Citizens United de 2010 , eliminou todas as restrições à utilização da riqueza corporativa para influenciar as eleições, ignorando a extensa literatura que mostra que a riqueza afeta substancialmente a política e tem um peso extra no processo político.
A extrema desigualdade de riqueza também tem efeitos culturais antidemocráticos significativos que decorrem da crença dos indivíduos ricos de que merecem ser ricos devido à sua superioridade. Embora os estilos de vida e as atitudes dos ricos e famosos não sejam fundamentais para o meu trabalho, penso que podem dizer-nos algo sobre o impacto da desigualdade de riqueza na vitalidade da democracia.
Considere dois exemplos. O primeiro é Andrew Carnegie, que teve origens humildes, mas que se tornou um dos homens mais ricos do mundo ao construir um vasto império siderúrgico americano verticalmente integrado. Com a intenção de promover a ideia de que as pessoas ricas deveriam dedicar a sua riqueza para ajudar os outros, ele escreveu um artigo em 1889 que foi transformado num livro intitulado O Evangelho da Riqueza.
Ao refletir sobre o que o tornou rico, Carnegie aproveitou as ideias predominantes de sua época. Ele se via entre os espécimes humanos fortes e superiores, naturalmente selecionados para serem ricos. Embora ele se propusesse a encorajar os ricos a contribuirem para causas nobres, as suas conclusões foram deduzidas de uma visão de mundo obviamente antidemocrática.
A falsa teoria da eugenia foi popular durante a Primeira Era Dourada porque oferecia aos ricos uma explicação de por que se sentiam superiores aos menos abastados, fornecendo assim uma justificação para os seus estilos de vida opulentos. Hoje em dia, com o nosso conhecimento moderno de genética, os ricos não podem afirmar abertamente que são mais inteligentes que os outros. No entanto, muitos ainda se sentem superiores e encontraram outras maneiras de expressar isso.
No “The Techno-Optimist Manifesto”, publicado no outono passado, o cofundador da Netscape e capitalista de risco Marc Andreessen prevê um futuro em que a marcha da tecnologia será liderada por tecnólogos que inovam a um ritmo cada vez maior, culminando na criação de uma “máquina tecno-capital” que produza todas as necessidades a custos marginais evanescentes. Neste relato, os tecnólogos não são apenas empresários ricos, mas messias que guiarão a humanidade com as suas inovações e manterão a ordem social lutando contra os seus “inimigos”. Os obstáculos a serem eliminados incluem a responsabilidade social, a gestão de riscos, a confiança e a segurança e as regulamentações.
A visão de Andreessen combina o papel dos tecnólogos como líderes civilizacionais com o dos mercados livres na alocação de todos os recursos. A implicação é que o governo não deverá desempenhar nenhuma função no futuro.
Esta é uma visão decididamente antidemocrática – uma oligarquia do Silicon Valley sobreposta a uma sociedade libertária. De acordo com Andreessen, os papéis e as recompensas de todos os outros serão determinados pela forma como os mercados livres valorizam as suas competências e contribuições econômicas. Não importa que, no seu esquema, o mundo pareça estar a convergir para um sistema econômico onde a maioria das pessoas não terá praticamente nenhum valor de mercado.
Embora Carnegie e Andreessen apresentem pontos de vista diferentes, defendem o mesmo evangelho de riqueza e poder e, portanto, representam o mesmo tipo de ameaça à democracia. Além disso, a sua atitude é partilhada por muitos na comunidade empresarial e acadêmica. A afirmação do cofundador do PayPal, Peter Thiel, de que “a competição é para os perdedores” e que o monopólio impulsiona o progresso equivale à mesma velha adoração do poder. O mesmo aconteceu com o argumento de Joseph Schumpeter de que uma empresa monopolista forte é superior a uma empresa competitiva.
Ideias semelhantes têm sido invocadas desde a década de 1930 para apoiar impostos mais baixos para os americanos ricos, que se diz merecerem o seu suado rendimento e riqueza. Este sentimento de direito permitiu aos ricos justificar o seu descumprimento fiscal e a utilização de paraísos fiscais estrangeiros para esconder a sua riqueza, alimentando por sua vez o crescimento de uma indústria de evasão fiscal em expansão.
A FALÁCIA DE CHICAGO
Mas foram as ideias da Escola de Chicago (nt.: escola à qual o ex-ministro Paulo Guedes se dizia fazer parte) sobre o monopólio que tiveram o maior impacto nas últimas décadas. No final da década de 1970, o economista Aaron Director e o jurista Robert Bork argumentaram com sucesso que a Lei Antitruste Sherman foi projetada para proteger os consumidores apenas garantindo que eles pagassem o melhor preço atual, uma interpretação que ignora as estratégias mencionadas anteriormente, usadas para se construir monopólios ao longo do tempo e outros efeitos adversos do poder de mercado.
Toda uma geração de juristas e advogados acreditou então na falácia de que a concorrência tecnológica pode criar monopólios progressistas que beneficiam os consumidores. Esta ideia foi exposta na declaração do juiz da Suprema Corte, Antonin Scalia, no caso Verizon Communications Inc. vs. Law Offices of Curtis V. Trinko, LLP (2004):
“A mera posse do poder de monopólio e a concomitante cobrança de preços de monopólio não só não são ilegais; é um elemento importante do sistema de livre mercado. … a posse do poder de monopólio não será considerada ilegal a menos que seja acompanhada por um elemento de conduta anticoncorrencial .”
Como poderia um jurista distinto aceitar um raciocínio tão falho e simplista? As teorias da eugenia e do darwinismo social foram desacreditadas, mas foram substituídas pela eficiência do mercado como a nova “lei de Deus” antidemocrática. O mercado é apresentado como um mecanismo de seleção natural que permite a sobrevivência dos fortes e eficientes. Se um monopolista triunfar no mercado, isso significa que é a melhor organização para oferecer aos consumidores preços correntes baixos. Com este raciocínio errado, fechamos o círculo: graças ao seu poder superior, os monopolistas são os melhores promotores do bem-estar do consumidor!
DE VOLTA À DEMOCRACIA
Os efeitos nocivos do capitalismo tecno-vencedor-leva-tudo exigem inúmeras mudanças políticas. Descrevo muitos em meu livro The Market Power of Technology , mas posso mencionar apenas alguns aqui. Eles dividem-se em três categorias, começando pelos dados: Precisamos de dados nacionais e setoriais precisos sobre os lucros e a riqueza dos monopólios, a fim de desenvolver políticas públicas robustas.
A segunda categoria diz respeito às restrições ao poder de mercado da tecnologia. Entre outras coisas, deveríamos colocar limites estritos à capacidade das empresas de adquirirem tecnologias para expandirem o seu alcance tecnológico; exigir padrões mais elevados para questões de patentes; reduzir as pirâmides de patentes inter-relacionadas (que são utilizadas como barreiras de entrada), encurtando a duração das patentes secundárias (aquelas cuja descrição depende de outra patente); rever as leis laborais para melhorar o equilíbrio de poder no mercado, facilitando a organização e a negociação coletiva dos trabalhadores; e impor imposto de renda corporativo sobre os lucros dos monopólios.
Finalmente, precisamos de políticas econômicas que reforcem a democracia. Estas incluem reformas que tornam a restrição do poder de mercado tecnológico um objetivo explícito da lei antitruste; aumentar as taxas marginais de imposto sobre o rendimento (para mais perto de 50%) sobre os que ganham mais; revogar a Seção 230 e considerar propostas para se transformar as mídias sociais em serviços regulamentados; e investir extensivamente na educação e saúde precoce dos filhos das famílias de baixos rendimentos (o que a investigação indica ser o caminho mais promissor para a estabilização da classe média americana e da democracia a longo prazo).
Por último, mas não menos importante, deveríamos estabelecer “direitos de recuperação” para aqueles prejudicados por eventos adversos apoiados por políticas. Os trabalhadores deslocados por forças como o poder de mercado da tecnologia, a automatização, a globalização ou mesmo a política monetária da Reserva Federal teriam direitos legais à assistência para a reabilitação, à aquisição de novas competências ou à compensação direta. Isto eliminaria a negligência que permeia a política existente. Uma abordagem semelhante já é utilizada na Escandinávia, com efeitos positivos na estabilidade democrática. Tais políticas podem ser concebidas para serem universais e com um mínimo de discrição burocrática.
Alguns membros da esquerda radical acreditam que o capitalismo, tal como os marxistas o descrevem, está morto e foi substituído pelo capitalismo de vigilância, pelo tecnofeudalismo, pelos sistemas controlados digitalmente ou por qualquer outra coisa. E, no entanto, o profundo impacto da tecnologia e a existência de um terceiro requerente no rendimento nacional mostram que o capitalismo está tão criativo e forte como sempre.
O que aconteceu é que o capitalismo foi mudado drasticamente pela tecnologia. A visão de Milton Friedman sobre Capitalismo e Liberdade parece agora fora de sintonia com a realidade econômica. No entanto, porque muitos ainda se apegam a isso, as reformas políticas de que necessitamos estão sendo bloqueadas. Sem uma maior mobilização pública para os apoiar, a ameaça à democracia continuará a crescer, na América e em todo o mundo.
Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, março de 2024.