
De Sean McClinton-Holland para o The New York Times
https://www.nytimes.com/2025/02/14/opinion/trash-recycling-global-waste-trade.html
Alexandre Clapp, jornalista e autor de “Waste Wars: The Wild Afterlife of Your Trash”
16 fev 2025
[NOTA DO WEBSITE: Tragédia que os países ricos, fabricantes e proprietários das patentes dos ‘lixos’, pensam que mandando para os confins do planeta, ficarão livres dos efeitos dos venenos que criaram e que não assumem que eles mesmos irão engolir e/ou inalarão como micro e nanoplástico, mais hoje ou amanhã. Canalhice e crime humanitário!].
Nos últimos anos da Guerra Fria, algo estranho começou a acontecer (nt.: quando os ‘ricos’ resolveram ser humanitários exportando ou ‘doando’ seus ‘lixos’!).
Grande parte do lixo do Ocidente parou de ir para o aterro sanitário mais próximo e, em vez disso, começou a cruzar fronteiras nacionais e atravessar oceanos. As coisas que as pessoas jogavam fora e provavelmente nunca mais pensavam — copos de iogurte sujos, garrafas velhas de Coca-Cola — tornaram-se alguns dos objetos mais redistribuídos do planeta, geralmente acabando a milhares de quilômetros de distância. Foi um processo desconcertante, que começou com a exportação de resíduos industriais tóxicos. No final da década de 1980, milhares de toneladas de produtos químicos perigosos deixaram os Estados Unidos e a Europa para as ravinas da África, as praias do Caribe e os pântanos da América Latina.
Em troca dessa cascata de toxinas, os países em desenvolvimento receberam grandes somas de dinheiro ou foram prometidos hospitais e escolas. O resultado em todos os lugares foi praticamente o mesmo. Muitos países que haviam rompido com o imperialismo ocidental na década de 1960 descobriram que estavam sendo transformados em cemitérios para a industrialização ocidental na década de 1980, uma injustiça que Daniel arap Moi , então presidente do Quênia, chamou de “imperialismo do lixo”. Indignadas, dezenas de nações em desenvolvimento se uniram para acabar com a exportação de resíduos. O tratado resultante — a Convenção de Basileia , entrou em vigor em 1992 e foi ratificado por quase todas as nações do mundo, mas não pelos Estados Unidos — tornou ilegal exportar resíduos tóxicos de países desenvolvidos para países em desenvolvimento.
Se ao menos a história tivesse terminado ali. Apesar desse sucesso legislativo, as nações mais pobres do mundo nunca deixaram de ser receptáculos para o lixo cada vez mais proliferante do Ocidente. A situação agora é, em muitos aspectos, pior do que era na década de 1980. Naquela época, havia um amplo reconhecimento de que a exportação de resíduos era imoral. Hoje, a maioria dos resíduos viaja sob o disfarce de ser reciclável, disfarçada na linguagem da salvação planetária. Nos últimos dois anos, tenho viajado pelo mundo — das planícies da Romênia às favelas da Tanzânia — em uma tentativa de entender o mundo que o lixo está fazendo. O que vi foi assustador.
Comecei em Accra, a capital de Gana, onde milhões de eletrônicos vacilantes foram “doados” por empresas e universidades ocidentais desde os anos 2000. Lá, conheci comunidades de “burner boys“, jovens migrantes das franjas desérticas do país que ganham centavos por hora queimando carregadores de celulares e controles remotos de televisão americanos quando param de funcionar. Eles me contaram sobre tossir sangue à noite. Não é nenhuma surpresa: a parte de Accra que eles habitam, um estuário sórdido conhecido como Agbogbloshie, regularmente está entre os lugares mais envenenados da Terra. Qualquer pessoa que coma um ovo em Agbogbloshie, de acordo com a Organização Mundial da Saúde , absorverá 220 vezes a ingestão diária tolerável de dioxinas cloradas (nt.: essas moléculas são as armas químicas do Vietnam, conhecida como AGENTE LARANJA. Nada menos do que isso! O mundo ‘civilizado’ e que tem o paradigma cristão do ‘amor ao próximo’ praticando esse crime civilizatório. Cinismo e desprezo étnico), um subproduto tóxico do lixo eletrônico.
Não é só o seu velho aparelho de DVD sendo enviado para a África Ocidental. O comércio de resíduos de hoje é uma bonança oportunista, uma válvula de escape de responsabilidade ambiental que lucra com o encaminhamento de detritos de toda variedade concebível para lugares que não estão em posição de recebê-los. Suas roupas descartadas? Elas podem ir para um deserto de Atacama, no Chile. O último navio de cruzeiro em que você embarcou? Cortado em pedaços em Bangladesh. A bateria do seu carro descarregada? Empilhada em um depósito no México. Parte dela é administrada pelo crime organizado? Claro. “Para nós”, um mafioso de Nápoles se gabou em 2008 dizendo que: “lixo é ouro“. Mas muito disso não precisa ser. A exportação de resíduos continua escandalosamente subregulamentada e não monitorada. Praticamente
qualquer um pode tentar.
Em nenhum lugar o comércio de resíduos de hoje atinge dimensões mais espantosas do que com o plástico. As escalas de tempo por si só são estonteantes. Garrafas ou caixas de comida para viagem que você possui por momentos, embarcam em jornadas árduas, de meses de duração, que expelem carbono de uma ponta a outra da Terra. Ao chegar em aldeias no Vietnã ou nas Filipinas, por exemplo, alguns desses objetos são reduzidos quimicamente — uma tarefa que consome muita energia e libera inúmeras toxinas e microplásticos nos ecossistemas locais. A capacidade do processo de produzir novo plástico é, na melhor das hipóteses, duvidosa, mas o custo ambiental e de saúde é cataclísmico. O lixo plástico no mundo em desenvolvimento — obstruindo cursos d’água, exacerbando a poluição do ar, infiltrando o tecido cerebral humano — agora está associado à morte de centenas de milhares a cada ano.
O destino de muitos outros resíduos plásticos que são enviados para o sul global é mais rudimentar: eles são incinerados em uma fábrica de cimento ou despejados em um campo. Na Turquia, conheci biólogos marinhos que voam drones ao longo da costa do Mediterrâneo para procurar pilhas perdidas de resíduos plásticos europeus, que entram no país na proporção de um caminhão basculante a cada 15 minutos. No Quênia, um país que proibiu sacolas plásticas em 2017 apenas para o setor petroquímico americano conspirar para transformá-lo na próxima fronteira de resíduos da África, mais da metade do gado que vagueia por áreas urbanas foi encontrado com plástico no revestimento do estômago, enquanto chocantes 69% do plástico descartado acredita-se que entre em um sistema de água de uma forma ou de outra.
Isso ainda empalidece em comparação ao que testemunhei na Indonésia. Em todas as 17.000 ilhas do país, o plástico consumido internamente é tão maltratado que acredita-se que 365 toneladas dele vão para o mar a cada hora. E ainda assim, nas profundezas das terras altas de Java, há paisagens infernais de lixo ocidental importado — tubos de pasta de dente da Califórnia, sacolas de compras da Holanda, desodorantes em bastão da Austrália — empilhados até os joelhos, até onde os olhos podem ver. Muito volumoso para sequer tentar reciclar, ele é usado como combustível em dezenas de padarias que abastecem os mercados de rua de Java com tofu, um alimento básico da culinária. O resultado é uma das culinárias mais letais imagináveis, com venenos de plástico ocidental incinerado ingeridos a cada hora por um grande número de indonésios.
O comércio de resíduos pode ser legislado até o esquecimento? Assim como no tráfico de drogas, pode ser que haja muito dinheiro circulando para consertar o problema. Afinal, o lixo itinerante tem muitas vantagens. Os países ricos perdem uma responsabilidade, e os produtores de lixo são liberados. A necessidade de encontrar um lugar para colocar todo o nosso lixo nunca foi tão terrível: um estudo recente das Nações Unidas descobriu que um em cada 20 objetos que se movem pelas cadeias de suprimentos globais é agora alguma forma de plástico — totalizando uma indústria anual de um trilhão de dólares que vale mais do que os negócios globais de armas, madeira e trigo combinados.
Mais crucialmente, é difícil para os consumidores ocidentais reconhecerem a extensão da crise — que a história que lhes foi contada sobre reciclagem muitas vezes não é verdadeira — quando ela é continuamente tornada invisível, realocada a milhares de quilômetros de distância. Yeo Bee Yin, a ex-ministra do meio ambiente da Malásia, pode ter me dito melhor: A única maneira de realmente impedir que o lixo entre em seu país, ela me disse, seria fechar os portos da Malásia completamente.
Poderíamos, no mínimo, ser honestos conosco mesmos sobre o que estamos fazendo. Nós enviamos nossos resíduos para o outro lado do planeta não apenas porque produzimos muito dele, mas também porque insistimos em um ambiente exorcizado de nossas próprias pegadas materiais. Tudo o que você já jogou fora na vida: há uma boa chance de que muito disso ainda esteja por aí, em algum lugar, sejam fones de ouvido queimados por sua fiação de cobre em Gana ou um pedaço de uma Solo Cup (nt.: tragédia já que esse copo vermelho por fora é feito do cancerígeno estireno que aparece muito como espuma na forma de isolante conhecido como ‘isopor/EPS’) flutuando no Oceano Pacífico .
Aqui o ditado não soa verdadeiro. Raro é o lixo que se torna o tesouro de alguém.
Tradução livre, parcial, de Luiz Jacques Saldanha, fevereiro de 2025